Argentina-França: 22 argumentos para o enredo de uma final histórica

18 dez 2022, 09:14
Estádio Lusail

O Mundial 2022 termina com um duelo de luxo. Duas seleções históricas, a despedida de Messi. A alimentar a narrativa, o mediático frente a frente do 10 da Argentina com Mbappé. E tanto mais.

2022 trouxe o 22º Campeonato do Mundo num palco inédito e num momento inédito, com uma final que se joga quase em cima do Natal. Assim obrigou o Mundial no Qatar. Ao fim de 63 jogos, de muitas surpresas e de muitas, muitas grandes histórias, terá uma final de luxo. Com enorme simbolismo histórico, com Lionel Messi a despedir-se no fim de um Mundial em modo lenda. Um frente a frente entre duas grandes seleções, ambas à procura da terceira estrela de campeã do mundo. Mais o mediatizado frente a frente entre o 10 da Argentina e Kylian Mbappé, que vai subindo mais uns degraus na escada para aquele sítio onde só têm lugar os maiores. O campeão do mundo a tentar revalidar o título, algo que ninguém consegue há 60 anos. Não se podia pedir muito mais. Em 22 pontos, o Maisfutebol deixa alguns dos enredos que fazem desta uma final para a história.

Uma final inédita

Estarão no Estádio Lusail duas das cinco seleções com maior sucesso em Mundiais. A Argentina ocupa o terceiro lugar no ranking histórico, atrás apenas de Brasil e Alemanha. A França é quinta, com a Itália pelo meio. Juntas têm quatro títulos e oito finais, mas nunca antes se encontraram na decisão.

Daqui sairá um tricampeão

Argentina e França somam dois títulos mundiais cada um. Os sul-americanos festejaram em 1978 e 1986, com o capitão Diego Maradona a levar a equipa até ao triunfo, a referência com que até aqui se compara este Mundial de Messi. Os franceses só venceram pela primeira vez em 1998 e voltaram a festejar 20 anos depois, em 2018. Portanto, um deles vai isolar-se. Seja quem for, ficará apenas atrás do pentacampeão Brasil e dos tetracampeões Itália e Alemanha.

A França contra uma maldição com 60 anos

Só houve até hoje duas seleções que conseguiram revalidar o título no Mundial seguinte. A primeira foi a Itália, em 1934 e 1938, a segunda o Brasil, em 1958 e 1962. Os Bleus já conseguiram de resto algo raro. Só houve mais duas seleções a chegar à final como campeãs: a Argentina de Diego Maradona em 1990, quando perdeu para a Alemanha, e o Brasil de Ronaldo em 1998, derrotado pela França. Foi também o Brasil a última seleção a jogar duas finais seguidas, em 2002, no ano em que, de novo com Ronaldo, conquistou o pentacampeonato.

Argentina contra a hegemonia europeia

O Brasil de 2002 foi a última seleção a quebrar o crescente domínio europeu no Campeonato do Mundo. Há cinco Mundiais consecutivos que o título vai para uma seleção do Velho Continente, o que desequilibrou as contas entre as duas únicas confederações que já venceram a competição. Neste momento, a Europa soma 12 vitórias, contra nove da América do Sul. Cabe à Argentina tentar contrariar essa tendência. E também evitar uma derrota que igualaria um recorde. A albiceleste já perdeu três finais (1930, 1990 e 2014). Se perder agora, fica a par da Alemanha, que esteve em oito finais, venceu quatro e perdeu outras tantas.

Golos garantidos (bom, talvez)

Em 21 finais de Mundial, só uma não teve golos: foi em 1994, quando Brasil e Itália se anularam durante 120 minutos, até o escrete levar a melhor no desempate por penáltis. Por incrível que possa parecer, o resultado que mais vezes ocorreu em finais foi 4-2, que se repetiu quatro vezes. A última delas foi 2018, mas na verdade essa foi uma novidade. Os dois Mundiais anteriores à Rússia foram decididos com vitórias por 1-0 e os outros dois deste século não tiveram mais que dois golos. A final do Lusail dirá se 2018 foi apenas uma exceção ou se inaugurou uma tendência. 

A última dança de Messi

O guião foi perfeito até aqui. Aos 35 anos, Lionel Messi está a fazer o seu melhor Mundial. São cinco, agora será a despedida do génio que maravilha o mundo a cada movimento, a cada toque na bola. No Qatar ele inventou caminhos, criou golos, marcou mais do que nunca, tocou a reunir depois da da derrota na estreia, liderou a equipa até à final. Tem cinco golos e três assistências, é o jogador mais influente do Mundial, esteve em campo cada minuto da caminhada da Argentina. De caminho vai batendo recordes. Com 11 golos em Mundiais, já se tornou o maior goleador da Argentina na competição. E mal entre em campo este domingo na Argentina, o 10 fica sozinho lá em cima: torna-se o jogador com mais jogos de sempre em Mundiais, 26 no total, superando Lothar Mathäus. Um Messi mais determinado, mais experiente e também mais leve, um ano depois de ter finalmente vencido um título maior com a Argentina, está agora a um jogo de fechar o ciclo com o maior troféu do planeta.

Mbappé, fenómeno do futuro

Para completar um argumento de filme épico, do outro lado estará o futuro. Kylian Mbappé tem 23 anos e já é campeão do mundo. Em 2018 era um fenómeno emergente e deixou uma marca indelével, com quatro golos na caminhada da França até ao título, incluindo um bis frente à Argentina de Messi e um golo frente à Croácia que o tornou no mais jovem de sempre a marcar numa na final. Chegou ao Qatar já com estatuto de estrela planetária e a sua influência fica expressa nos cinco golos e duas assistências que somou até à final. O percurso e a idade de Mbappé deixam em aberto algo que há pouco tempo poucos se atreveriam a antecipar. Se revalidar o título no domingo, antes de completar 24 anos, fará algo que só Pelé fez. E, com muitos anos de carreira pela frente em perspetiva, pode bem aspirar a igualar o número de títulos do Rei, o único jogador que foi três vezes campeão do mundo.

O clube de elite de Deschamps

Com o título de 2018, o selecionador francês já entrou para um clube exclusivo. Antes dele, só dois homens tinham vencido títulos mundiais como treinador e jogador: Franz Beckenbauer e Mario Zagallo. O brasileiro é aliás o único que venceu o Mundial por três vezes, como jogador em 1958 e 1962 e como treinador em 1970. Didier Deschamps, que era o capitão da França em 1998, pode igualar Zagallo. E tem outro registo histórico na mira. Até hoje só houve um treinador a revalidar o título de campeão do mundo. Foi Vitorio Pozzo, que o conseguiu com a Itália em 1938.  

O quarto duelo Mundial

Argentina e França já se defrontaram por 12 vezes, com seis vitórias da albiceleste, três dos Bleus e outros tantos empates. Em Mundiais este será o quarto encontro e o saldo está em duas vitórias da Argentina e uma da França. Começaram cedo. O Campeonato do Mundo tinha três dias de vida quando a Argentina venceu a França para a segunda jornada do Grupo 1 do Mundial 1930, por 1-0. O autor do golo foi Luis Monti, que quatro anos mais tarde seria campeão do mundo… pela Itália. A albiceleste seguiu até à final, perdida para o Uruguai, enquanto a França, uma das poucas seleções europeias a fazer a viagem até Montevideu, ficou pela fase de grupos. O encontro seguinte só aconteceu em 1978. Na caminhada até ao seu primeiro título, a anfitriã venceu a França de Michel Platini de novo ao segundo jogo da fase de grupos por 2-1, com golos de Passarella e Luque, e um do 10 francês. Mais uma vez, os Bleus ficaram pelo caminho.

A memória de 2018

E depois houve 2018, o jogo que evoca todas as memórias antes da final deste domingo. A atenção já se centrava em Messi e Mbappé naquele confronto dos oitavos de final que foi um grande jogo. Griezmann inaugurou o marcador de penálti e a Argentina reagiu com golos de Di María e Mercado. Seguiu-se um enorme golo de Pavard, antes de Mbappé começar a escrever a sua lenda, com dois golos que arrumaram o assunto, apesar de Aguero ter reduzido nos descontos, a passe de Messi. 4-3, a estrela de Mbappé a brilhar sobre a de Messi.

O campeão que se reinventou

A preparação da França para o Mundial 2022 ficou marcada por uma sucessão de baixas por lesão. Desde logo no meio-campo, onde Didier Deschamps não pôde contar com Pogba e Kanté, a dupla de campeões do mundo. Mas também Nkunku, Kimpembe, depois Benzema, descartado quando já estava no Qatar, e ainda Lucas Hernández, que se lesionou ao primeiro jogo. Deschamps procurou alternativas e encontrou-as, num processo que também demonstra a profundidade das opções da França. No meio-campo, Tchouaméni passou a ser a referência mais recuada, aos 22 anos o jogador mais utilizado até aqui pelos Bleus. Depois ainda há o adolescente Camavinga, mais Fofana para as dobras. Nenhum dos médios que Deschamps levou ao Mundial tinha estado no Mundial 2018. A isso junta-se uma base forte de campeões do mundo, liderada pela estrela Mbappé  – dez dos convocados estiveram na Rússia -, e alicerçada na experiência de vários jogadores que já tinham jogado o Mundial 2014, uma «velha guarda» que inclui Griezmann, reinventado ao centro, Lloris, Varane ou Giroud.

O candidato renascido

Muito mudou desde que a Argentina deixou o Mundial 2018 de cabeça baixa. Depois de um período conturbado que terminou com a eliminação nos oitavos, Jorge Sampaoli saiu para dar lugar a Lionel Scaloni, que integrava a sua equipa técnica. O antigo defesa rodeou-se de outros ex-jogadores, Pablo Aimar, Roberto Ayala e Walter Samuel, e começou por recuperar Messi, que se tinha imposto um período de afastamento. Promoveu uma renovação da equipa, um pelotão de gente nova unida em torno do 10. Além de Messi, só estão no Qatar mais quatro jogadores que fizeram parte dos convocados na Rússia: Otamendi e Di María, ainda referências na equipa, além de Armani e Tagliafico. Em 2021 a Argentina venceu a Copa América, o primeiro grande título da seleção em quase duas décadas. A «Scaloneta» embalou para uma alegre e sólida caminhada. Chegou ao Mundial 2022 com um recorde de 36 jogos sem derrotas, apoiada no fervor de uma nação.

Arranques diferentes, percursos paralelos

Argentina e França estrearam-se no Qatar de forma bem diferente. A albiceleste perdeu o primeiro jogo com a Arábia Saudita e depois do choque puxou dos galões. Soma quatro vitórias, além do empate com os Países Baixos que venceu nos penáltis. A França, que assegurou o apuramento depois de vencer os dois primeiros jogos, tem cinco vitórias, todas no tempo regulamentar, mais a derrota com a Tunísia. Mas as duas equipas equivalem-se em vários indicadores. Ambas sofreram cinco golos até aqui, sendo que a Argentina manteve a baliza a zero em três jogos e a França apenas num. Também utilizaram o mesmo número de jogadores até aqui, 24. Na Argentina, só não jogaram ainda os dois guarda-redes suplentes, Armani e Rulli, enquanto os Bleus ainda não tiveram em campo o guarda-redes Areola. O 26º convocado foi Karim Benzema, descartado por lesão antes do arranque do Mundial e que não foi substituído.

Poder de fogo não lhes falta

Os percursos de França e Argentina também reforçam a expectativa de golos na final. A França, que para já apontou 13 golos e divide o melhor ataque do Mundial com a Inglaterra, só ficou em branco num jogo, a derrota com a Tunísia a fechar a fase de grupos. A Argentina marcou em todos os jogos e tem o segundo melhor ataque no Qatar, a par de Portugal, com 12 golos.

O título de melhor marcador em jogo

Outro motivo de interesse, se fossem precisos mais. Da final do Mundial sairá seguramente o Bota de Ouro da competição. Messi e Mbappé estão para já empatados na frente, ambos com cinco golos. Se terminasse assim, seria o 10 argentino a vencer o troféu, por somar mais assistências. Mas eles têm companhia, um goleador de cada lado: Olivier Giroud e Julian Alvarez somam nesta altura quatro golos. Portanto, esta pode ser uma corrida a quatro.

Messi e Mbappé, o duelo

Messi centraria sempre atenções no Qatar. Como Cristiano Ronaldo, igualmente no seu quinto e último Mundial. Ou Neymar, a estrela do Brasil, ou Mbappé, o cabeça de cartaz da França. A busca de narrativas épicas em jeito de duelo no faroeste começou por se focar num potencial frente a frente entre o argentino e Cristiano Ronaldo, os dois titãs que dominaram o planeta futebol ao longo de década e meia. Mas Cristiano saiu de cena com Portugal nos quartos de final. Tal como Neymar. Mas por esse ângulo a final tem outro enredo de luxo. Messi frente a Mbappé, os dois 10, o presente o futuro. Para mais, são agora companheiros de equipa no PSG. Duas estrelas, ainda que jogadores tão diferentes, em fases tão diferentes da carreira. No Qatar eles assumiram o estatuto, também de formas diversas, ainda que Mbappé tenha sido até aqui bem menos omnipresente no jogo da França do que Messi na Argentina. Messi já ganhou tudo o que havia para ganhar a nível de clubes, múltiplas vezes, Mbappé já foi campeão do mundo. Messi tem 25 jogos em Mundiais e marcou 11 golos, Mbappé tem nove em 13 jogos. Já se defrontaram por três vezes e o francês levou sempre a melhor. Além do duelo no Mundial 2018, estiveram frente a frente no histórico confronto dos oitavos de final da Liga dos Campeões, quando Mbappé marcou um hat-trick no Camp Nou na vitória do PSG sobre o Barcelona, então de Messi, por 4-1. O jogo da segunda mão terminou empatado, com um golo de cada um deles.

E muito mais para lá deles

Messi e Mbappé dominam as atenções e não haverá dúvidas de que o vencedor do prémio de melhor jogador do Mundial será um dos jogadores em campo na final deste domingo. Mas Argentina e França têm mais gente a poder reclamar boa parte do mérito do Mundial que as duas seleções fizeram. Desde logo Antoine Griezmann, o avançado que aos 31 anos recuou para conduzir o jogo dos gauleses, descendo, subindo compensando, enchendo o campo, para muitos o melhor da França no Qatar. Ou Olivier Giroud, o avançado a fazer aos 36 anos a sua melhor fase final, num entendimento feliz com Mbappé. Ou Tchouaméni, a quem o LÉquipe chamou «a melhor notícia» para a França. Ou Julian Alvaréz, o avançado que deixou esta época a Argentina para rumar ao Manchester City e leva já quatro golos, como cartão de apresentação ao Mundial. Ou De Paul, o escudeiro de Messi. Ou ainda Enzo Fernández, o médio que confirmou no Qatar tudo aquilo que mostrou com a camisola do Benfica mal aterrou em Portugal, no verão passado.

Os primeiros campeões da Liga portuguesa?

Os benfiquistas Enzo Fernández e Nicolas Otamendi podem conseguir algo que seria histórico para Portugal. Nunca houve um campeão do mundo que representasse um clube da Liga portuguesa. Já houve quem estivesse perto. O brasileiro Doriva fez parte da seleção do Brasil vice-campeã do mundo em 1998. E em 2014 a Argentina que perdeu a final frente à Alemanha tinha três jogadores a atuar em clubes nacionais, os benfiquistas Garay e Enzo Pérez e o sportinguista Marcos Rojo.

Amigos, amigos…

Esta é uma final de luxo, já se sabe. Mais um dado. As duas seleções reúnem na maioria jogadores a atuar nas principais Ligas europeias. Todos os jogadores franceses jogam nas «Big 5», enquanto na Argentina as exceções são os dois benfiquistas, mais o médio Thiago Almada, que está na MLS, e o guarda-redes Armani, do River Plate. Vai portanto ser uma final familiar para muitos dos jogadores em campo. Muitos deles partilham balneário diariamente nos respetivos clubes. E alguns estarão em lados diferentes da barricada na final. Desde logo Messsi e Mbappé, mas também Lisandro Martínez e Rahael Varane, ambos jogadores do Manchester United, Cristian Romero e Lloris (Tottenham), Molina e Griezmann (Atlético Madrid), e ainda Paredes e Rabiot (Juventus).

Thuram, a primeira dinastia?

Marcus Thuram foi adição tardia à lista de Didier Deschamps e agora o 26 da França, que saiu até agora do banco em quatro partidas no Qatar, está a uma vitória de se tornar o primeiro filho de um campeão do mundo a festejar também o título. O pai, Lilian Thuram, é uma das referências de sempre dos Bleus e festejou em 1998, ao lado de Deschamps. O Mundial tem muitas histórias de pais e filhos em campo para contar, mas até hoje ninguém conseguiu criar uma dinastia com o Campeonato do Mundo como palco.

Até um vírus misterioso a adensar a trama

Há muitas questões em torno do que será em campo a final, desde a forma como a França procurará lidar com Messi – em 2018 foi tarefa do agora ausente Kanté -, às dúvidas sobre as opções da Argentina, que se tem distinguido pela capacidade de adaptação, com diversas variações de modelo tático. Mas, para alimentar ainda mais o drama, há um misterioso vírus a ameaçar os Bleus. Upamecano, Rabiot e Coman falharam a meia-final por «doença», mais tarde foram Varane e Kounaté a treinar à parte, por causa do tal vírus. Os dois centrais reintegraram os treinos na véspera da final. Os responsáveis médicos dos Bleus ainda não explicaram exatamente do que se trata, enquanto os outros jogadores vão tentando desvalorizar. «É só uma pequena gripe, nada de mais», disse Dembelé.

E o Qatar ganhou

Este Mundial esteve envolvido em controvérsia como nenhum outro, desde o momento em que o pequeno país do Médio Oriente ganhou a corrida à organização em 2010. As restrições aos direitos humanos consagradas na legislação do Qatar e as condições de trabalho dos milhares de migrantes que construíram os estádios e as infraestruturas e que conduziram muitos à morte – não se sabe quantos e isso é parte do problema - dominaram a atenção mediática e levaram a tomadas de posição de várias Federações. Mas o Mundial no Qatar avançou mesmo. Foi uma competição entusiasmante em campo, decorreu sem problemas de maior fora dele. Chega ao fim quando continuam a ser conhecidas ainda mais ligações perigosas e investigações criminais envolvendo o regime qatari, ao mais alto nível das instâncias europeias – agora envolvendo uma vice-presidente do Parlamento Europeu. Mas o Qatar teve a sua festa. E terá o bónus de a encerrar com os «seus» dois maiores símbolos em campo. Messi e Mbappé, estrelas do PSG, há vários anos propriedade do regime qatari.

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