Luis Padrique: o selecionador que virou «streamer», sem travões

1 dez 2022, 09:06
Luis Enrique no Portugal-Espanha

Fala das cuecas que usa e faz piadas com o jogador que é namorado da filha, mas também aborda as suas ideias sobre o jogo. Luis Enrique chamou a si o foco no Mundial, aliviando a pressão sobre os jogadores. E é um sucesso

«Streamers do mundo: afastem-se, que vou encosta abaixo e sem travões.» Foi assim que Luis Enrique anunciou em meados de novembro que iria estar em direto todas as noites a partir do Qatar. E como cumpriu. Descontraído, divertido e coloquial como nunca o tinham visto, o streamer Luis Enrique – ou Luis Padrique - tornou-se muito mais popular do que o selecionador Luis Enrique. Fala de sexo, das cuecas que usa, dos seis ovos que comeu ao jantar, do jogador da seleção que é namorado da filha, mas também sobre o Mundial e o trabalho com os jogadores, sobre os jogos e sobre a sua ideia do jogo: «A primeira coisa que deviam ensinar nos cursos de treinadores é que isto é um espetáculo.»

A Espanha tem muito talento, está a jogar muito e parte na frente nesta quinta-feira na corrida ao apuramento para os oitavos de final, frente ao Japão. Mas o grande espetáculo deste Mundial é o seu treinador. Teve 150 mil pessoas a assistir ao primeiro direto na Twitch, com picos de 200 mil, tem mais de 750 mil seguidores na plataforma. É um sucesso.

No primeiro direto, ele explicou como se lembrou de fazer isto. «Não me lembro se a ideia foi minha ou do meu filho. Mas vi ou meu filho a seguir muitos streamers e pensei: ‘Porque não o fazemos’?» Antes, tinha explicado no Twitter porque decidiu avançar: «É uma ideia um pouco disparatada mas que acho que pode ser muito interessante. Simplesmente a ideia de estabelecer uma relação direta com vocês, adeptos, a quem possa interessar a informação da seleção, contada de um ponto de vista particular, o meu e o do meu staff. E estabelecer uma relação e uma comunicação mais direta, sem filtros, mais espontânea, mais natural e creio que suficientemente interessante para todos.»

«Boas noites amigos, boas noites inimigos.» Começa assim, ou da forma que se lembrar na altura. Quando ele se senta para iniciar o direto, o chat já fervilha de mensagens. Saudações, perguntas, piadas que passam pelo ecrã a uma velocidade incrível. Há moderação, sim, que elimina nomeadamente mensagens ofensivas. Mas o show é todo de Luis Enrique. Ao longo de uma hora, depois do jantar da equipa, ele lê as perguntas, escolhe aquelas a que quer responder e vai por ali fora. Fala sobre si próprio, faz piadas sobre os jogadores, fala sobre rivais mas também sobre restaurantes e livros. Interessado pela corrente do estoicismo, recomendou um livro, «O Homem em busca de um sentido», que no dia seguinte estava no top dos mais procurados da Amazon. Também revelou que tem na sua equipa de Fantasy Iago Aspas, que não convocou para o Mundial. Também já cometeu gafes, como quando disse que a Costa Rica era uma seleção sul-americana. E prometeu levar a taça para o chat se a Espanha for campeã do mundo.

Aos 52 anos, Luis Enrique voltou a surpreender. Foi assim desde cedo com o asturiano que começou a jogar no Sp. Gijón – num dos diretos contou que levou a camisola do clube para o Qatar -, que foi um dos jogadores mais marcantes do seu tempo e que em 1996 dividiu a Espanha quando trocou o Real Madrid pelo Barcelona, uma transferência com impacto só comparável à de Figo no sentido inverso, quatro anos mais tarde. Campeão olímpico em 1992, Luís Enrique esteve em três Mundiais como jogador, de 1994 a 2002. Logo no primeiro viveu um momento para a história, quando o árbitro o obrigou a sair por sangrar copiosamente do nariz, partido numa cotovelada do italiano Tassotti – também já falou sobre isso nos diretos.

Começou a treinar no Barcelona B, depois levou o Barcelona de Messi, Neymar e Suárez à conquista da Liga dos Campeões em 2014/15. Assumiu a seleção espanhola a seguir ao Mundial 2018. Interrompeu em 2019, quando perdeu a filha de nove anos, vítima de cancro, e voltou quatro meses mais tarde, assumindo a sua proverbial frontalidade quando acusou o substituto, Roberto Moreno, de ter sido desleal e querer ficar com o seu lugar. No verão passado levou a Espanha às meias-finais do Euro 2020.

Obcecado pela forma física, depois do futebol dedicou-se ao atletismo e ao triatlo. Correu maratonas, fez o Ironman, com a mesma aplicação e o mesmo foco que coloca em tudo. As peculiaridades de Luis Enrique já se tornaram famosas. Como o andaime nos treinos de onde assiste aos jogos ou os walkie talkies que entrega a cada jogador para ir corrigindo o que vão fazendo.

Luis Enrique sempre esteve longe de ser consensual e a sua relação com a imprensa espanhola, ou parte dela, é fria. Já era antes de se tornar selecionador. Em 2016, quando treinava o Barcelona, respondeu assim a um jornalista: «Estou-me a borrifar se não gostas do meu estilo, se não gostam do meu estilo. E digo a borrifar-me para o dizer de forma educada.»

Os seus diretos durante o Mundial dividiram opiniões, com muitas vozes críticas nos media e também desinformação. Ainda agora a Cadena Cope se viu forçada a pedir desculpas pela manipulação de um áudio, em que passava uma piada de cariz sexual de uma utilizadora como se tivesse sido dita por Luis Enrique. «Desacreditam-se a si mesmos», comentou o treinador na Twitch.

No Qatar, Luis Enrique mantém as conferências de imprensa e desta vez até tem abordado aí temas que vão para lá do futebol. Falou por exemplo sobre a sua filha, que completaria 13 anos no dia do jogo com a Alemanha. Além disso, os diretos do selecionador têm sido uma fonte inesgotável de conteúdo para os media, que até já fazem relato ao minuto das sessões diárias do treinador.

Manuel Pellegrini, treinador do Betis, foi um dos que duvidou dos benefícios da forma como Luis Enrique está a expor-se. «A função de selecionador é complexa, muita gente contesta as suas decisões. Vê-lo exposto nas redes sociais, onde é habitual discutir-se, ele terá as suas razões. Mas eu acho que lhe trará mais problemas do que vantagens», afirmou o chileno.

«Se a Espanha ganhar o Mundial vai ser graças ao Twitch»

Para já, pelo menos, Luis Enrique está a marcar pontos. Muitos. Com os diretos, o treinador deu um passo novo. Não só estabeleceu uma via direta de comunicação com os adeptos, como foi ao encontro de um público jovem, que não está nos meios tradicionais. O mesmo que lhe chama Padrique, expressão que deriva de «padre» - pai -, e «padrear», no sentido de dominar.

Com os diretos, Luis Enrique colocou também todo o foco sobre si próprio, aliviando a atenção sobre os jogadores, uma equipa muito jovem e com escolhas que não foram consensuais, sobretudo pelas ausências. Essa pode ser a consequência mais significativa dos diretos do selecionador, do ponto de vista desportivo e de gestão do grupo.

Ibai Llanos, streamer e uma das maiores personalidades das redes sociais em Espanha, destacou assim o impacto do que Luis Enrique está a fazer, depois da vitória sobre a Costa Rica no jogo inaugural: «Primeiro jogo: Luis Padrique 7-0. Eu acredito, sinceramente, e não estou a brincar, que se a Espanha ganhar o Mundial vai ser graças ao Twitch. Vou explicar: está a gerar uma união dentro do grupo e um carinho que não teria recebido se não fosse a Twitch.»

Luis Enrique não assume que o objetivo dos seus diretos tenha sido aliviar a pressão sobre os jogadores. «Não creio que os jogadores se sintam mais libertos pelo facto de o seu treinador fazer streamings. Não foi feito com esse objetivo», disse, quando lhe foi colocada a questão na conferência de antevisão do jogo com o Japão: «O único objetivo que marquei para os jogadores ao começar isto é desfrutarem. Copiámos um lema do US Open: ‘A pressão é um privilégio’. Essa frase reflete muito do que esta seleção procura. Estes jogadores sabem o que é a pressão. Somos os eleitos que representamos todo um país. É algo muito bonito.»

Até esta quarta-feira, Luis Enrique já fez dez sessões de streaming. Aqui ficam algumas das coisas que tem dito.

Os streamings

«Como ia esperar 150.000 visitantes no meu primeiro direto? Ou vocês têm muito tempo livre ou estão muito interessados na seleção e isso orgulha-me. Em qualquer caso, bem.»

«Gostava de ler o chat, mas passa tão rápido como o Nico Williams»

«Se estou bêbado? Não, claramente não. Sou assim»

«Gosto que me chamem Padrique»

«117 mil espectadores. Estes não entram todos no Camp Nou, não?»

«Se os streamings serviram para alguma coisa é para ver a energia positiva dos adeptos. Vimos que às vezes o que chega da imprensa é adulterado.»

A seleção

«Se Busquets era o prolongamento de Del Bosque em campo, quem é o de Luis Enrique? Ahahah… Muito fácil. O senhor Ferran Torres, se não a minha filha apanha-me e corta-me a cabeça.»

«Que jogador da seleção me surpreendeu mais? Boa pergunta. No primeiro dia que o Ansu jogou com a Ucrânia, na primeira bola em que tocou fez um túnel ao seu marcador… Entrou na área, fez um par de fintas ao rival e fizeram-lhe penálti. Nesse dia disse: ‘O que é isto? Oliver e Benji, ou quê?»

«O mais brincalhão? O Pedri tem muito sarcasmo, com o sotaque canário e isso. O Jordi Alba passa o dia na palhaçada e é um tipo muito carinhoso, gera boa onda. O Busi (Busquets) controla-os a todos, é o capataz.»

"Uma letra para o hino? Seria maravilhoso. Agora a letra é ‘pumba, pumba, pumba’ e ‘pachín, pachín, pachín’. Uma letra que passe a emoção que sentimos com a Espanha.»

«Se o Ferran Torres fizer um golo vou ficar muito contente, mas se fizer o gesto da chupeta, substituo-o imediatamente, meto-o na bancada e não volta mais a pisar um relvado»

«Vamos acabar com um mito. Nós não jogamos com um falso 9. Jogamos com futebolistas diferentes nessa posição: o Álvaro, o Marco… Acreditamos muito em unir jogadores que se complementem e tentamos colocar jogadores que tenham esse contacto entre eles. Chamem-lhe falso 9 ou como quiserem.»

Ele próprio

«Nesta seleção eu não teria lugar. Na melhor das hipóteses entrava nos 26, faço bom ambiente.»

«No fim de contas isto trata-se de falar, não? Falar por mim tudo bem, era por isso que me expulsavam no colégio.»

«O meu primeiro salário? Foram 165 mil pesetas e dei-o à minha mãe.»

«Jantei seis ovos, três cozidos e três fritos. É um dos alimentos com mais nutrientes. E se assegurares que são ovos de curral… Aqui não sei, espero que haja galinhas a pastar…»

«Desde que falei nos seis ovos parece que só como ovos. Hoje só jantei cinco. Dois cozidos e três fritos.»

«Mister, usas boxer ou slim? Uso tanga. Ahahah. Que é, vocês não usam tanga? Bom, estou a brincar. A minha mulher quando vir isto vai-me matar.»

Sexo? Entendo que é algo muito normal e proibi-lo seria uma estupidez. Mas ir para um bacanal no dia anterior a um jogo não é o melhor. Aqui na seleção não porque estamos concentrados e tudo isso, mas a sou a favor que as pessoas vivam a vida com normalidade. Eu, enquanto jogador, sempre que podia com a minha mulher, fazia o que tínhamos de fazer.»

«Se ganhasses o Mundial apresentavas-te às eleições? Ahahah. Bom, podia ser uma opção. Mas comprometer-me-ia a sair se não cumprisse no primeiro ano 50 por cento das coisas que prometi na campanha.»

«Promessa se ganharmos? Um Ironman? Isso está arrumado, já fiz três. Aceito sugestões, o que quiserem. Já rapei o cabelo muitas vezes e a Elena não gosta. A Elena é a minha mulher. Pinto o cabelo do que quiserem. Ponho um piercing. Se ganharmos trago a taça e fazemos aqui um streaming. Vou tentar trazer um jogador»

«Amanhã (dia do jogo com o Japão) vou fazer 25 ou 30 km. É só manutenção»

O Mundial

«Lista de favoritos? Brasil e Argentina, ninguém no mundo do futebol pode eliminá-los. França, que é a atual campeã. Alemanha, porque ninguém no mundo pode dizer que não é favorita. Espanha, Inglaterra, Países Baixos ou Bélgica.».

«Se não ganhar a Espanha, gostava que ganhasse a Argentina. Um jogador da dimensão do Leo Messi tem que retirar-se com um Mundial naquele que será o seu último Mundial. Ainda que também te diga que acho que podia jogar o próximo. Está no quinto, podia jogar o sexto.»

«Com (Hansi) Flick fiquei a dar-me como um casal. É para nos vermos na final»

«A nível futebolístico não há nenhuma seleção melhor que nós. Ninguém pode surpreender-se com o que fazem a França e o Brasil. Mas não temos medo nenhum em defrontá-las. Procuramos os pontos positivos para reforçar a nossa equipa. Não há seleção que tenha uma recuperação como a Espanha. Nisso e na pressão após a perda a Espanha é número 1. E somos a seleção que tem mais a bola.»

O jogo

«Sabes o quão desesperante é correr atrás de uma bola que perdeste? É uma das nossas armas e a filosofia que tento passar aos meus jogadores. É o ponto em que acho que somos melhores. Que a qualidade futebolística predomine sobre o físico. E quando estamos a ganhar não penso mudar muito. E se faço muitas alterações e isso custa-me o resultado? Não faço esse tipo de planeamento. Penso que sou melhor que o adversário. Por que razão haveria de mudar de estratégia? Se sou melhor, quantos mais golos consiga marcar, melhor.»

«Chegou a um ponto em que perdemos o norte. A primeira coisa que deviam ensinar no curso de treinadores é: «Olha, isto é um espetáculo. Há 50 ou 100 mil pessoas a ver-te no estádio e milhões em casa. É como ir ver uma obra de teatro e ser aborrecida, a certa altura não estará ninguém no teatro.»

«A necessidade do treinador obriga a tanto que todos jogam a defender. Vê-se no Mundial. Aqui só atacam quando já está perdido. Eu vejo doutra maneira, acho que isto é só um espetáculo. Tens de mostrar às pessoas que tens vontade de jogar e fazer os teus adeptos desfrutar. Talvez seja uma tolice minha, mas eu estou convencido disto, e acho que resulta melhor desta maneira. Além disso o caminho - porque não vale só o resultado -, o caminho é muito mais gratificante.»

 

Patrocinados