A CNN Portugal teve acesso aos números da Polícia Judiciária de detenções entre 2013 e 2023, que mostram que a maioria dos crimes envolvem menores
A Polícia Judiciária deteve 97 mulheres por crimes sexuais nos últimos dez anos, a maioria cometidos sobre crianças. Mas o número fica aquém da realidade, diz à CNN Portugal a inspetora Ana Pinho, ligada à criminalidade sexual desde 2012 e que publicou um estudo sobre mulheres abusadoras de crianças, devido à dificuldade em identificar crimes deste género cometidos pelo sexo feminino.
“Estatisticamente, os dados são inegáveis. Temos uma maior fatia, um número percentual muito superior de autores do sexo masculino. Estamos a falar de 97 mulheres, o que corresponde a 2,85%” do total. Ou seja, quase 98% dos detidos são do sexo masculino”, aponta a inspetora da Polícia Judiciária, para quem isto “não quer dizer que elas não existam” enquanto criminosas sexuais.
A CNN Portugal teve acesso aos números da Polícia Judiciária de detenções dos últimos dez anos (2013/2023) e das 97 mulheres detidas: 44 foram por abuso sexual de crianças, 14 por pornografia de menores, 4 por lenocínio de menores, 3 por abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável e uma por atos sexuais com adolescentes. Ou seja, 66 crimes envolvendo menores.
Apesar dos números, para a inspetora da Polícia Judiciária “não existem dados suficientes, ou estudos suficientes, que permitam dizer que os homens são mais abusadores sexuais do que as mulheres”. Estatisticamente, sim, “mas não podemos tirar de imediato essas conclusões, porque ao longo do tempo vamos verificando que cada vez mais situações de autoria feminina têm sido sinalizadas”.
Tal como as queixas e denúncias de suspeitos do sexo masculino estão longe da realidade, na análise da investigadora. No caso das mulheres, os motivos são vários, mas segundo Ana Pinho o papel preponderante do sexo feminino como cuidador afeta a visão da sociedade. “Se entrar um grupo de dez crianças numa casa com uma mulher, ninguém vai pensar nada. Se entrar um grupo de dez crianças com um homem, vão surgir dúvidas”, exemplifica.
O trabalho que tem desenvolvido nos últimos anos não lhe deixa dúvidas de que se olha “para determinados atos que são praticados pela mulher de uma forma diferente do que quando são praticados por um homem”.
“Se uma mulher educadora ajudar a criança a ir à casa de banho, ajudar a criança a limpar-se, mesmo que a criança depois tenha alguma inflamação, essa situação é vista como uma situação comum. Eventualmente porque não se limpou tão bem como devia na zona genital. Mas se estivermos a falar de um homem educador vai questionar-se se será só uma questão de higiene”, exemplifica uma vez mais.
Mas não só. Até as motivações são vistas de forma diferente, nota a inspetora. “Atribuímos aos homens motivações puramente sexuais, satisfação de instintos libidinosos, um chavão que é muito frequente observar em acordos judiciais. E esta motivação exclusivamente sexual não é tão percecionada nas mulheres, porque vemos a sexualidade feminina essencialmente como reprodutiva.”
Muitos dos casos investigados por Ana Pinho “começam numa perspetiva de agradar ao eventual companheiro ou de retirar algum partido financeiro para elas”. Recorda o caso de uma mulher, que era mãe da vítima, e que a penetrava com vários objetos. “Filmava, fotografava e mandava para o companheiro que fisicamente não estava com ela. Podíamos pensar que foi só para agradar ao companheiro. Mas e se ela também tirou partido daquilo que estava a fazer? Não consigo dizer que haja uma grande distinção entre o que é que motiva um homem a abusar ou o que é que motiva uma mulher a abusar.”
A normalização do abuso sexual
Ana Pinho diz também que muitas vezes as queixas apenas identificam um agressor sexual masculino, mas quando se inicia a investigação descobre-se uma coautora. “Já foram várias as situações em que inicialmente temos a denúncia do autor e depois chegamos a uma coautoria. E a coautora é sempre do sexo feminino, que pode ter uma relação com o coautor ou não. Já tivemos ambas as situações”, admite a inspetora.
Outro aspeto importante é o lado das vítimas quando são crianças. “Na maioria das crianças até aos dez anos, até que lhes seja dito que aquele ato não é correto, elas não têm a consciência de que é um ato ilícito. Há uma normalização”, alerta Ana Pinho, que destaca o papel de pais e da escola na abordagem a estes temas.
“No nosso trabalho de prevenção fazemos várias atividades em infantários. E temos uma preocupação, cada vez maior, de tentar explicar o que é um bom toque, o que é um mau toque e que temos de desabafar coisas que não são confortáveis”, observa. Ana Pinho recorda um caso de 2021 em que duas crianças de cerca de dez anos estavam a conversar e uma delas disse que o namorado da mãe também era seu namorado. Uma funcionária da escola ouviu a conversa e, tendo achado estranho, chamou a menina, que lhe repetiu o mesmo de forma espontânea.
A funcionária acabou por pedir ajuda e quando falaram com a aluna viram-se perante uma situação “claríssima” em que se percebe que é o indivíduo do sexo masculino que agride, mas que depois há uma participação da mãe, inclusivamente durante os atos sexuais. “Tinham atos sexuais a três”, conta a inspetora, tratando-se de algo que era percecionado pela menor de “forma perfeitamente normal”.
Ana Pinho recorda outro caso, desta feita de uma professora que “tanto agredia rapazes como raparigas”. Mas “foi atribuída uma maior censurabilidade e gravidade nos crimes que cometeu contra as alunas de sexo feminino”, porque, explica, “a iniciação sexual é mais permissiva em algumas idades no sexo masculino”.
Isso mesmo consta de acórdãos de tribunais, indica a inspetora, em que as idades e o facto de as vítimas serem do sexo masculino tiveram influência. “Há um acórdão em que uma mulher agrediu sexualmente dois rapazes. A senhora era empregada doméstica e agrediu os filhos dos patrões. Acabou condenada a pena suspensa e uma das justificações foi a de que as vítimas estavam próximas do tempo máximo da idade, ou seja, tinham 13 anos, brevemente iriam fazer 14 anos. E também não necessitaram de apoio psicológico, portanto não haveria essa gravidade”, recorda Ana Pinho, defendendo que “não é por ser um rapaz que deixa de ser menos grave a situação”.
Um dos traços comuns mais identificados pelas autoridades em relação às mulheres que cometem crimes sexuais “é a pouca ou nenhuma empatia com a vítima”, diz Ana Pinho. Outro traço comum identificado “é a pobreza das relações emocionais que as agressoras vão tendo". “São mulheres que por norma não têm uma relação afetiva que lhes seja gratificante. Vão tendo várias relações pontuais. É um padrão, independentemente do estrato social em que estejam incluídas, de terem ou não mais formação, esta questão emocional é comum. A todas”, conclui.
Mãe condenada a 16 anos de prisão efetiva
Há um caso que marcou o caminho profissional desta inspetora da PJ e que envolve uma criança que ainda bebé foi retirada à mãe por negligência parental. Durante um largo tempo a progenitora teve acompanhamento para poder cuidar da filha, que, “depois de passar três anos numa instituição, acabou por ser devolvida ao seio familiar”.
Quando a menina tinha sete, oito anos, surgiram novas queixas. Tanto da escola, como de vizinhos, e a menina voltou a ser institucionalizada. “Nesta segunda vez ela começou a apresentar padrões típicos nas vítimas. Não conseguia dormir, era nervosa, tinha eventos gastrointestinais frequentes”, entre outros, lembra Ana Pinho. Até que que um dia foi levada a um estabelecimento de saúde e um pediatra mais atento perguntou-lhe se ela queria contar o porquê de todos aqueles problemas. “Começou a falar de um senhor. Só falou do senhor” e a unidade de saúde contactou de imediato a Polícia Judiciária. “Fomos diretamente falar com a vítima”, porque houve uma “sinalização precoce e a devida comunicação”: “Quando estávamos a fazer a entrevista cognitiva à vítima, percebo que não está só o senhor. É a mãe que a leva, é a mãe que diz o que é que há de fazer, é a mãe que lhe mostra - juntamente com o senhor - revistas pornográficas para lhe explicar as posições em que ela tem de se pôr.”
“A mãe nunca admitiu”, recorda a inspetora. Apesar de a vítima só ter revelado o que se passava meses depois da segunda institucionalização ainda foi possível recolher “algumas evidências físicas” que contribuíram para a pena aplicada. A mulher, que tinha três filhos mais velhos do sexo masculino com os quais não havia registo de qualquer abuso, acabou condenada a 16 anos de prisão efetiva e o coautor a 13 anos.
Este caso tem outros pontos que a inspetora destaca como determinantes, isto é, foi um processo rápido. “A instituição foi ao hospital com a criança, o hospital comunica nesse dia de manhã. Ouço a criança à tarde e, no dia seguinte, o processo dá entrada no tribunal, com o pedido de várias diligências. Em pouco tempo estávamos a cumprir buscas domiciliárias e a criança foi ouvida em declarações para memória futura. Tudo em dois dias”, conta Ana Pinho.
Mas nem sempre é rápido e nem sempre é fácil chegar a tribunal. Esta área de criminalidade é complexa e de prova difícil, principalmente quando se trata de mulheres abusadoras. Mas Ana Pinho diz que o caminho “está a ser feito”.