Dois anos de obras converteram-se em oito, mas o projeto é o mesmo. O Museu do Design pegou no passado e fez o futuro: funcional e sustentável
Deviam ter sido pouco menos de dois anos de obras, acabaram por ser quase oito - com um processo de insolvência que paralisou a obra durante três anos e a pandemia de covid-19 por outro. Mas, por fim, a azáfama de tapumes, ruído, entulho e obras termina e dá lugar à azáfama dos acabamentos, das lâmpadas enroscadas nos casquilhos dos candeeiros portugueses da futura cafetaria do MUDE, ao entra-e-sai de homens de t-shirt azul com chaves de fendas, aos seguranças a postos, às esfregonas no chão, aos folhetos dobradinhos na entrada, à loja a compor-se, aos vidros a ficarem invisíveis de transparentes, ao ecrã que se liga para projetar fotografias que documentam esta quase década de requalificação… A antiga sede do BNU, aquele museu ‘descascado’ cujas portas abriram em 2009, é, por fim, o Museu do Design, um quarteirão entre a Rua Augusta e a Rua da Prata, a Rua de São Julião e a Rua do Comércio.
Do lado de lá da porta pesada da Rua Augusta, tipo caixa-forte, uma memória do que foi outrora o Banco Nacional Ultramarino, o palco é do edifício. A história tem 300 anos, passa pelo arquiteto Tertuliano Marques, autor do projeto do início do século XX, continua até Cristino da Silva, que ampliou o banco nos anos 60 e lhe deu a maioria dos traços que perduram até aos dias de hoje - o corrimão de alumínio, escadarias de mármore, o icónico balcão do piso térreo, os cofres da cave a que se acede passando o painel do artista Guilherme Camarinha e, no primeiro andar, aquelas salas inacessíveis dos antigos administradores no primeiro andar. É o edifício na sua essência, quase 10 mil metros quadrados prontos a receber exposições temporárias, centro de documentação, serviço educativo e as reservas (à vista e visitáveis). É também o fim da hierarquia vincada deste edifício onde clientes, trabalhadores e administradores não se juntavam. “Uma espaço totalmente democrático”, reforça Bárbara Coutinho.
Desde a abertura do edifício, em 2009, que o MUDE sempre foi um museu diferente - com as marcas de guerra à mostra. Bárbara Coutinho, diretora desde sempre, acarinhou-as, mas o projeto nunca foi, apenas, deixar tijolo à vista. “Tínhamos dois objetivos: primeiro, conseguir dotar o edifício para o MUDE funcionar em pleno conforto, qualidade e acessibilidade, hoje é um edifício sem barreiras. Segundo, preservar o património sem destruir nada, mas ao mesmo tempo fazê-lo pelo valor que ele tem, como uma fonte inesgotável de debate e conhecimento”, explica à CNN Portugal horas antes da abertura.
O projeto museológico nasceu a par do projeto arquitetónico e foi feito “em casa”. A obra é da Sociedade de Reabilitação Urbana, o arquiteto é dos quadros da Câmara Municipal de Lisboa, Luís Saraiva, e “colaboração” é a palavra que ambos usam para falar do que se passou aqui. “Houve debate e tensão, mas colaboração”, entende a diretora. “Fomos apresentando argumentos de parte a parte”, diz Saraiva, que se junta à conversa e mostrará os detalhes do edifício. “A Bárbara sempre viu com muita clareza o que queria e quais as potencialidades do edifício”, prossegue Luís Saraiva, abrindo portas e mostrando as soluções que foram encontradas a cada passo. No mesmo piso, é possível ver tijolo à vista do tempo de Tertuliano Marques e do tempo de Cristino da Silva. As madeiras de pau santo de um lado, o mármore do outro.
A visita requer atenção a detalhes como o pórtico de azulejos de Querubim Lapa que foi resgatado da loja Rampa e que agora faz a passagem para o serviço educativo ou o vão entre o piso três e quatro que pisca o olho à estrutura aberta criada por Tertuliano Marques, que Cristino da Silva viria a fechar e agora está aberta, antecipando a exposição aqui de peças de grande dimensão que fazem parte do acervo do MUDE. Ou, também, os painéis de madeira e a sanca pintada a folha de ouro da sala de reuniões dos administradores, agora centro de documentação. Ficou tudo, incluindo os candelabros de vidro “limpos peça a peça”, indica Luís Saraiva, e veio também uma ampla mesa de pinho onde todos se podem sentar a consultar os títulos da biblioteca, até o mais recente “Edifício MUDE - Transformações na Perspetiva do Design”, lançado ao mesmo tempo que o museu abre portas.
Este é um dos espaços que faz prova das palavras de Bárbara Coutinho sobre as intenções do museu. “Quisemos ter um princípio de economia e sustentabilidade, dar prioridade aos materiais existentes.” Uma política de mínimo desperdício possível, mesmo quando parecia que essa decisão ia ao arrepio da lógica.
É a diretora a trazer para a mesa os valores da obra: as obras do MUDE, financiadas com fundos do Casino de Lisboa, custaram 13 milhões e 400 mil euros, distribuídos por esses 13800 metros quadrados de área bruta, quase 10 mil de área útil e mais de 300 janelas. São cerca de mil euros por metro quadrado.
“Tudo o que se podia usar foi usado”, diz. Até quando a lógica podia aconselhar fazer de novo, aqui a opção foi usar materiais já existentes e com eles fazer mais. É o caso do auditório, uma obra de Daciano Costa, de 1991, que estava em mau estado e agora volta ao azul original.
Na sala do antigo governador, situada no corpo mais antigo do edifício, o gabinete do governador transporta para tempos longínquos. Mesas pesadas, castanhas, dourados. A Fundação Ricardo Espírito Santo trouxe conhecimento à recuperação destas madeiras e estilo. “Napoleónico”, caracteriza o arquiteto Luís Saraiva. Nas paredes, os painéis saíram para permitir o reforço estrutural, que acompanhou todo o edifício, “e os veludos são originais”, sublinha Luís Saraiva, chamando a atenção para o verde escuro da parede superior. Se parecer usado, é mesmo assim.
Não se vê, mas o reforço da infraestrutura foi um dos mais importantes passos dados durante as obras. A ‘gaiola’ de aço corten que se vê nas janelas faz parte desses remédios aplicados ao antigo BNU. Áreas ‘secretas’ como a cafetaria e o auditório assinado por Daciano Costa foram recuperados e estão a funcionar. Do terraço, com vista 360º sobre a cidade, quase se toca o arco da Rua Augusta. Era aqui, neste espaço com um painel de azulejos e lareira de cobre, que funcionava o restaurante dos administradores do banco.
Com o museu aberto, a diretora contraria o mantra de “obras nunca mais”. “Foi uma experiência muito enriquecedora pessoal e profissionalmente”, diz Bárbara Coutinho, retomando a ideia de colaboração que nasceu com o projeto de museologia, um projeto arquitetónico de olho e a defesa sem reservas deste património, sob coordenação da Sociedade de Reabilitação Urbana, a construtora Teixeira Duarte e todos os que trabalharam neste quarteirão, cujas fotos a artista Luísa Sequeira registou e estão agora expostas nas vitrines da rua. Culmina com a abertura desta quinta-feira e a futura exposição de longa duração do amplo acervo do museu, que começou com a coleção de Francisco Capelo e tem vindo a ser ampliado com doações, aquisições e depósitos do acervo de nomes como Carlos Rocha, cujo espólio documenta 100 anos de publicidade em Portugal, António Garcia, o designer do SG Ventil que teve aqui a sua primeira exposição de sempre, José e Salete Brandão (Atelier B2) ou a coleção do Teatro da Cornucópia e Cristina Reis, que trouxe o design de cena e design gráfico. Possui atualmente 17 mil peças e, destas, 1.362 estão integradas na "Coleção Francisco Capelo", comprada ao colecionador pelo município de Lisboa em 2002.
Para o final de setembro fica marcada a inauguração da exposição de longa duração. Um auditório, parte da loja e os serviços educativos entram também em funcionamento. “Apresentaremos o design em contexto, como um processo do seu tempo, nas suas relações socioeconómicas e com uma grande inserção no design português”, define Bárbara Coutinho à CNN Portugal. “Vai ser uma importante fonte de historiografia do design e ele não vive sem o seu conhecimento histórico”. “Sem falsa modéstia, o MUDE fez falta”, diz. E, agora, por fim, as portas estão abertas a todos.