A hora vai mudar. Outra vez. E os especialistas não estão de acordo sobre isso. Outra vez. De qualquer maneira: convém que cada um de nós se comece a deitar mais cedo antes da noite de sábado para domingo. E atenção às crianças
A neurologista Teresa Paiva considera que as mudanças de hora, sobretudo a de primavera, quando se adianta o relógio, são prejudiciais para a saúde.
“A mudança de hora da primavera tem um aumento do risco de doenças cardiovasculares, cerebrovasculares, de acidentes, de problemas de partos, de abortos e de aumento de erros médicos”, afirma à CNN Portugal. “Na mudança de inverno, os problemas são menores porque a pessoa até dorme geralmente uma hora mais. Mas o problema é a mudança em si. A mudança não é uma boa ideia.”
A médica defende que o organismo humano está adaptado à hora solar natural com a qual viveu durante milhares de anos. “Do ponto de vista da saúde, a Europa devia ter quatro fusos horários distintos”, explica, sublinhando que estudos feitos na Rússia e no Cazaquistão apontam para maior prevalência de cancro em regiões afastadas da sua hora solar.
“Estar fora da nossa hora natural tem consequências. Em Portugal, entre 1966 e 1977 tivemos uma hora fixa de verão e nesses anos registou-se um aumento da mortalidade infantil e masculina. Já se provou que o horário de verão não é saudável em Portugal.”
"Dois ou três dias antes devemos começar a ir dormir um pouco mais cedo"
A cardiologista Beatriz Silva confirma que o corpo reage à mudança, mas pede prudência na leitura dos dados.
“Inicialmente, os primeiros estudos sugeriam que pudesse haver um aumento do risco de enfarte até cinco vezes, mas hoje sabemos que esse impacto não é tão pronunciado como parecia”.
Segundo a especialista, a alteração da hora mexe com o ritmo circadiano, com as hormonas do cortisol e da melatonina, substâncias que regulam o sono, a pressão arterial e o funcionamento do coração.
“O pico dos enfartes ocorre geralmente de manhã, quando há maior libertação de cortisol. Qualquer alteração nesses ritmos pode afetar o risco cardiovascular, mas não podemos dizer que a mudança da hora de inverno, em si, o aumente.”
Ainda assim, a médica alerta para os cuidados com o sono e recomenda ajustes progressivos nos dias anteriores à mudança:
“Dois ou três dias antes devemos começar a ir dormir um pouco mais cedo, para facilitar a adaptação.”
"Em Portugal, a mudança da hora faz sentido"
O astrónomo Ricardo Reis vê a questão por outro prisma: o da luz e da geografia.
“Em Portugal, a mudança da hora faz sentido. Só em latitudes médias é que o aproveitamento da luz solar é significativo”, defende.
Segundo o especialista, a discussão europeia sobre a abolição da mudança da hora, que ganhou força em 2018, baseou-se num inquérito sem validade estatística.
“Dos mais de 500 milhões de europeus, só votaram quatro milhões e três milhões e meio eram alemães. Ora, para a Alemanha, a mudança de hora já não faz sentido, porque têm uma variação de luz muito maior. Para nós, no sul da Europa, ainda faz.”
Ricardo Reis sublinha que o debate deve considerar quatro pilares: luz, fisiologia, segurança e energia. E lembra que o impacto energético mudou nos últimos anos.
“Com o aumento da energia solar, pode haver até vantagens em mudar a hora, porque no verão, quando há maior consumo, o sol ainda está a produzir energia. No Brasil, por exemplo, há estudos que defendem o regresso da mudança da hora para evitar picos de consumo e sobrecargas elétricas.”
"A ausência de luz também procura o escuro em nós"
Para a psicóloga Patrícia Câmara, presidente da Sociedade Portuguesa Psicossomática, o impacto da mudança da hora é mais subtil mas real.
“Negar o impacto é negar que as nossas regulações fisiológicas se fazem também com o ambiente. Há pessoas mais vulneráveis, com tendência depressiva, que sentem a diminuição da luz de forma mais intensa.”
A especialista sublinha que a forma como cada um percepciona a mudança influencia a adaptação:
“É importante não olhar para isto de forma catastrófica, mas também não fingir que não tem impacto.”
E lembra que o inverno pode trazer mais apatia e melancolia, não apenas por causa da hora, mas pela ausência de luz.
“A ausência de luz procura o escuro em nós. Pode ser um tempo de elaboração emocional, mas também pode acentuar vulnerabilidades se não houver rede de suporte.”
Por este motivo, devemos preparar o corpo e a mente para a transição, defende.
“Fazer esta adaptação progressiva ao sono é essencial. Já temos tantas coisas que nos tiram o sono — não deixar que esta seja mais uma.”
Atenção às crianças
Cátia Reis, da Associação Portuguesa do Sono, reforça que a chamada “hora de inverno” é, na verdade, a hora natural.
“As pessoas associam o horário de inverno a algo negativo, mas é o que mais se alinha com o relógio solar. É aquele que respeita o nosso ritmo biológico.”
E alerta que, se Portugal mantivesse a hora de verão o ano inteiro, os dias de inverno começariam com o sol perto das dez da manhã, um desalinhamento que afetaria o sono e o desempenho diário.
“Os nossos ritmos biológicos sincronizam-se com a luz da manhã. Se tivermos luz apenas ao final do dia, torna-se mais difícil adormecer e o sono perde qualidade.”
Para Cátia Reis, o impacto é ainda maior nas crianças e adolescentes, que têm ritmos biológicos próprios.
“Mandar uma criança dormir quando ainda há luz é quase impossível. E os adolescentes têm um atraso natural no seu ciclo biológico. Pedir-lhes que estejam a fazer testes às oito da manhã é uma aberração.”