Entrevista exclusiva à TVI (do mesmo grupo da CNN Portugal) do motorista da Carris que foi alvo de um ataque durante os motins na Grande Lisboa - que aconteceram após a morte de Odair Moniz. Apontaram-lhe uma arma à cabeça, atiraram-lhe cocktails molotov, incendiaram-no. Ficou com lesão graves e ainda não sabe se são para a vida. Esteve uma semana em coma - e, quando o viu, a filha ficou "chocada". Os suspeitos do ataque foram detidos pela PJ esta quarta-feira - o motorista foi chamado a identificá-los numa linha de reconhecimento (aviso: este artigo contém descrições que podem ferir a suscetibilidade dos leitores)
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"Apontaram-me uma arma à cabeça, atiraram-me os molotovs, peguei fogo. Porquê eu, porquê a mim?": entrevista exclusiva ao motorista atacado no motim em Lisboa (parte 2)
Estava a acabar o turno em Santo António dos Cavaleiros. Abriu as portas do autocarro.
Chego à última paragem, abro as três portas para as pessoas saírem, os passageiros saem todos e, conforme os passageiros saem todos, ouço um barulho de pessoas a correr, que por sua vez estavam escondidas. Chego ao autocarro, rodeio o autocarro, tento fechar as portas e há um indivíduo que entra pela porta do meio. Aponta-me a arma à cabeça e diz 'tu não sais' - e eu no meu lugar. Entretanto eles começam a mandar cocktails molotov para o vidro do autocarro, para a porta da entrada do autocarro, para o meu lugar, para cima de mim. Eu sinto logo que fica um cheiro a combustível e foi só um indivíduo fazer faísca no isqueiro.
Nenhum desses elementos entrou dentro do autocarro?
Não. O líquido derramou em direção à rua, porque o autocarro parou numa rua inclinada. Entretanto ele dá faísca e, conforme dá faísca, eu começo a pegar fogo, porque a chama foi toda ao meu encontro. Eles entretanto fogem. Eu vou a sair pela porta do meio, chego à porta do meio, lembro-me que tinha de ter o telemóvel porque era 01:30 da manhã e eu tinha que contactar alguém.
Precisava de pedir ajuda.
Não tinha ninguém na rua. A rua estava vazia. E eu volto atrás, vou buscar o meu telemóvel, pego o telemóvel assim pela mão esquerda, porque estava a arder a minha mão, apago o fogo da mão, salto pela porta de entrada, onde está o fogo todo. Salto e começo a correr pela rua fora, aos gritos, a dizer 'chamem uma ambulância0 e a apagar o fogo da cara e da cabeça com a mão direita – tanto que eu olho para a mão e a pele literalmente saiu toda. Ficou toda em carne viva. Há uma senhora que sai de um prédio, acode-me e diz 'meta-se aqui para esta rua para eles não virem atrás de si'. Eu meto-me nessa rua, mas quando me sento é quando começam a vir as dores todas. Eu ainda fiquei uns 10 minutos à espera da ambulância.
Ninguém lhe foi buscar água fria, aqueles posicionamentos básicos? Ficou sozinho à espera da ambulância?
Sozinho. A sorte foi que tinha vestido o casaco da farda. O casaco ficou preso pelo elástico de uma manga, porque o resto queimou todo. Eu andava a arrastar o casaco e elas tentaram tirar o casaco, mas eu tinha tantas dores na mão que disse 'não deixem tirar o casaco'. Sentei-me e é quando o bombeiro vem. Eu meti-me numa rua sem saída. A ambulância por azar veio da parte de cima e não conseguia passar porque o autocarro estava a arder. Eu tive de andar o trajeto todo onde eu estava, a pé, até à ambulância.
Quantos metros?
Uns 150 a subir e a cambalear. Chego à ambulância já num estado que estava mais para lá do que para cá. Portanto, eu entro na ambulância e eles induzem-me logo em coma e eu aí apago a minha memória. Só me lembro de eles dizerem 'vamos induzi-lo em coma'. E eu digo '0lhe, eu tenho uma placa'. Dei a placa ao bombeiro e ouvi-os a dizer que íamos para o Hospital de Santa Maria. A partir daí, só acordo uma semana depois a pensar que estava lá dois dias, no hospital.
Portanto, nunca chegaram a dizer-lhe, como nós entretanto soubemos pelas notícias, que estava em estado muito grave, que chegou a poder estar entre a vida e a morte. Tem consciência apenas hoje, depois de lhe terem contado o que aconteceu?
Exatamente, porque os meus olhos - pelo que me dizem, eu não sei, eu estava todo ligado, ventilado -, eu tinha os olhos fora da cara. O inchaço era tanto na cabeça que os meus olhos ficaram fora da cara. Eu não me lembro de nada. Os meus pais foram lá, mais os meus amigos. Dizem que eu disse para terem calma, eu nunca me lembro de nada. Literalmente não me lembro de nada. Só me lembro depois, quando acordo do coma, em que tiro o ventilador e começo a olhar para o teto e digo 'o que é que eu estou aqui a fazer?'. Foi quando me dizem o que é que aconteceu e começa a memória a vir do acidente. Quando a memória vem do acidente, eu só me perguntava 'porquê eu?, porque é que não me deixaram sair e pegaram fogo ao autocarro?'. Eu pedi para me deixarem-me sair.
E em algum momento teve alguma hipótese de fugir?
Não. A única hipótese que eu tive de fugir foi quando eles fugiram.
Alguma vez vai conseguir perdoar o que lhe fizeram?
Isso vai ficar para a vida, porque eu não faço mal a ninguém. Tenho o meu pai com alzheimer. Eu não faço mal a ninguém. A minha revolta é mesmo essa. Eu ajudo quem tenho de ajudar, se não me quiserem ajudar não me ajudam, mas eu ajudo sempre o próximo. E aconteceu-me a mim, não sei porquê. Sinceramente, não sei porquê. Estava no dia errado, na hora errada.
Em termos de lesões no corpo, qual é o estado da sua recuperação neste momento?
São as mãos, os tornozelos e agora estou a fazer exames a nível pulmonar.
Mas ficou com alguma sequela do ponto de vista pulmonar?
Não sei ainda.
Ainda não sabe?
Ainda não sei e hoje vejo que vou ficar marcado para a minha vida, porque eu olho para as minhas mãos e não gosto das minhas mãos. Não tenho paciência. Porque é uma recuperação lenta. Tenho muitas dores, tenho com frio. Não posso apanhar sol, não posso apanhar frio, ou seja, marcaram-me sem motivo aparente. O meu pai não podia lá estar porque não sabia da história.
O seu pai é que tem alzheimer?
O meu pai é que tem alzheimer, a minha mãe ia quando podia.
E você vive com eles?
Vivo com eles neste momento. A minha ex-mulher esteve lá quando pôde, a minha filha foi lá uma vez e ficou chocada.
Que idade é que ela tem?
Tem 15.
O que é que espera que faça o juiz que vai ouvir os suspeitos e decretar medidas de coação?
Espero que faça a justiça.
E para si o que é fazer a justiça?
A justiça é estas pessoas serem presas e pagarem por aquilo que me fizeram porque isto vai ser um marco para a minha vida toda. A minha empresa esteve sempre do meu lado, inclusive foram lá visitar-me, só querem que eu recupere. A primeira coisa que eu fiz quando acordei do coma foi dizer que queria voltar a trabalhar. Agora tudo vai depender da minha cabeça.
Para já não pode?
Para já não posso.
Mas você tinha vontade?
Tenho vontade de trabalhar.
Para se ocupar?
Sim, porque sou uma pessoa que não nasceu para estar em casa sem fazer nada. Tenho de trabalhar e eu gosto de trabalhar. Gosto daquilo que faço e eles deram-me todo o apoio nisso. Eu não tenho nada a apontar seja de quem for.
E desse ponto de vista não ficou com sequela? Ou seja, não ficou com medo?
Não, não fiquei com medo.
Nem de fazer as carreiras noturnas? Não tem medo de voltar a fazer o que fazia?
Não fiquei com medo. Quando entrar no autocarro sozinho e começar a trabalhar, a minha cabeça pode pensar de outra maneira, isso eu não lhe consigo dizer - só no momento, porque a minha vontade é eu voltar a trabalhar.
Este foi o pior momento da sua vida?
Foi, garantidamente. Este foi o pior momento da minha vida porque eu vi a minha vida a fugir.
Sentiu mesmo que podia ficar ali?
Senti. Só que lá está - tive um instinto de sobrevivência. Hoje pergunto como é que eu consegui.
Gostava de dizer alguma coisa às pessoas que o agrediram? E se, apesar de não os conseguir perdoar hoje, aceitaria um pedido de desculpas?
Não, não aceitaria, porque isto não se faz a ninguém, a uma pessoa que ainda por cima que está a trabalhar e que está a fazer o seu trabalho... Acho que não tem desculpa.