“O mundo mudou e Francisco dançou com ele — sem perder o passo, sem perder a fé”
Há quem diga que Carlos Gardel nunca morreu. Que vive ainda, no silêncio suspenso de um contrabaixo, na curva melancólica de um bandoneón, no fumo lento de uma milonga de Buenos Aires. Gardel é a Argentina eterna, o tango feito carne e saudade, a elegância que resiste ao tempo. E talvez só um argentino pudesse compreender tão bem que a eternidade se conquista não pelo que se domina, mas pelo que se transforma. Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, compreendeu isso melhor do que ninguém.
Quando ontem, aos 88 anos, o primeiro Papa sul-americano partiu desta vida, o mundo perdeu muito mais do que um chefe espiritual. Perdeu um dos poucos líderes verdadeiramente globais capazes de combinar autoridade moral com coragem política. O último tango de Francisco não foi apenas eclesiástico — foi, profundamente, político. E é impossível compreender a geopolítica e as grandes mutações do século XXI sem compreender o papel que Francisco desempenhou ao longo dos seus 12 anos de pontificado.
Num mundo que se tornou simultaneamente mais fragmentado e mais interdependente, onde os populismos substituíram os programas, e a indignação tomou o lugar da razão, Francisco foi uma voz serena, mas implacável. Um homem que falou dos pobres num tempo de obsceno enriquecimento, que falou da paz quando o mundo redescobria o gosto pela guerra, que falou da casa comum quando os líderes falhavam na preservação do planeta. Ele não falava por falar. Falava para mudar.
Quando se tornou Papa em 2013, a Igreja Católica parecia presa a um ciclo de autorreferência e desgaste. A renúncia de Bento XVI tinha exposto, pela primeira vez em séculos, o esgotamento do modelo tradicional. Francisco entrou pela porta de serviço da história e mudou a arquitetura da própria casa. Simples, direto, pastoral, recusou as vestes de luxo e os protocolos intocáveis. Preferiu as periferias do mundo às cúpulas do poder. E, ao fazê-lo, reconduziu a Igreja ao Evangelho — não o da rigidez doutrinária, mas o da misericórdia, do acolhimento, da reforma com alma.
Mas o que torna o seu papado profundamente político é a forma como se colocou entre os grandes dilemas do nosso tempo: refugiados, clima, desigualdades, guerra, sexualidade, inteligência artificial. Francisco foi a Davos criticar o capitalismo selvagem, visitou os campos de refugiados para lembrar a Europa do seu passado, foi a Lesbos antes dos comissários europeus, escreveu uma encíclica ambiental antes de muitos líderes terem compreendido a urgência climática, acolheu cientistas, ouviu ativistas, enfrentou conservadores.
A sua coragem reformista encontrou resistências ferozes dentro e fora do Vaticano. Desde os que o acusaram de “comunista” até aos que o tentaram travar com manobras teológicas disfarçadas de zelo doutrinário. Mas Francisco dançava com o mundo como Gardel dançava com o tango: com alma, com subtileza, com uma autoridade silenciosa que só têm os que conhecem bem o compasso do tempo.
Francisco reabilitou o diálogo inter-religioso, aproximando-se do Islão de forma inédita, e fazendo pontes com o Judaísmo e as religiões orientais. Tentou, com persistência franciscana, reconciliar a Igreja com os fiéis LGBTQIA+, não através de ruturas, mas de passos firmes no sentido do reconhecimento da dignidade de cada ser humano. Tentou também, embora com menor sucesso, reformar a estrutura vaticana e combater a corrupção interna, esse cancro que fere tanto a autoridade moral como a eficácia institucional da Santa Sé.
Talvez o seu maior legado político tenha sido a capacidade de ser simultaneamente um líder global e um pastor próximo. De colocar no mesmo plano o drama de uma criança síria e a arquitetura do sistema financeiro internacional. De mostrar que a espiritualidade não é uma fuga da realidade, mas uma forma mais profunda de habitá-la. O mundo mudou, e Francisco dançou com ele — sem perder o passo, sem perder a fé.
Entre todas as frases que marcaram o seu pontificado, talvez nenhuma resuma tão bem a sua visão como aquela que repetiu em diversas ocasiões: “A Igreja é para todos, todos, todos”. Disse-o com convicção, com ternura, com firmeza pastoral. E ao dizê-lo, sublinhou uma revolução silenciosa que estava em marcha: a abertura do coração da Igreja a todos os que se sentiam marginalizados por ela.
Francisco compreendeu que uma Igreja fechada em si mesma deixa de ser Igreja e torna-se seita. Que a fé não pode ser usada como arma de exclusão, mas como ponte de inclusão. Que os divorciados recasados, os homossexuais, os pobres, os crentes em crise ou mesmo os não crentes de boa vontade têm lugar à mesa do banquete. “Todos” não era um truque retórico — era uma escolha teológica, pastoral e profundamente política.
Essa sua insistência no universalismo evangélico — num tempo em que o mundo se fechava em fronteiras, muros, identidades fixas — é talvez um dos gestos mais contracorrente e proféticos do seu pontificado. Francisco quis uma Igreja como um hospital de campanha, não como um tribunal. E nesse gesto pastoral estava uma visão do mundo: um mundo ferido, doente, em convulsão, que precisa de cura, escuta e compaixão. Não de julgamentos sumários nem de certezas fechadas.
A sua morte deixa um vazio imenso, não apenas na cátedra de Pedro, mas na consciência coletiva de um planeta em busca de sentido. E deixa também uma pergunta: quem terá, agora, a autoridade e a coragem para continuar o tango?
Tal como Gardel, talvez Francisco não tenha morrido. Talvez continue vivo nos rostos dos pobres que abraçou, nas pontes que construiu, nas consciências que despertou. Porque há danças que, uma vez começadas, não podem ser interrompidas. E há Papas que não passam — ficam.