Sarou Miguel Ângelo e está no Paraíso da Divina Comédia: João XXI, o único e misterioso Papa português

21 abr, 19:31
Papa João XXI na receção a um dos participantes nas Cruzadas (Carl Simon/United Archives/Universal Images Group via Getty Images)

Erudito e estudioso: era assim antes de chegar ao papado e continuou a sê-lo já enquanto Papa. Pedro Julião - ou Pedro Hispano - foi médico e professor antes de ser eleito Papa. Admirado por muitos e contestado por outros tantos, João XXI teve uma morte "trágica", deixando um legado repleto de obras científicas, em detrimento da governação da Igreja Católica

Pedro Julião ou Pedro Hispano - talvez o conheça por este segundo nome, já que foi atribuído a ruas e avenidas, a um hospital em Matosinhos, bem como a um instituto no distrito de Coimbra e a um centro de estudos em Lisboa. Foi o único português a ser coroado Papa em toda a história da Igreja Católica.

É preciso recuar ao século XIII para conhecer a história do único Papa português. O seu papado está envolto em contornos misteriosos, tal como, de resto, está toda a sua história de vida. Mesmo a sua data de nascimento é incerta: crê-se que Pedro Julião nasceu em Lisboa, algures entre 1205 ou 1210, mas nunca depois de 1226. 

É descrito como um homem erudito e estudioso, dedicando-se ao estudo da medicina, lógica e filosofia. Estudou na escola episcopal de Lisboa e mais tarde na Universidade de Paris. Foi na capital francesa que conheceu algumas das maiores figuras intelectuais da época, como S. Tomás de Aquino. Mais tarde, mudou-se para Itália, onde foi médico e professor na Universidade de Siena. Foi ali que Pedro Julião - ou Pedro Hispano - escreveu algumas das suas obras mais importantes, como o tratado Summulae Logicales, onde incluiu algumas teses de Aristóteles, filósofo grego que questionava a criação do mundo pela mão de Deus.

Foi também autor da obra De Oculi (um tratado de oftalmologia que só foi descoberto no século XIX) e que, tal como o Summulae Logicales, se tornou um manual de referência para os estudiosos, amplamente traduzida e lecionada durante séculos nas universidades europeias. Aliás, reza a lenda que, dois séculos depois, quando o pitor italiano Miguel Ãngelo adoeceu gravemente de uma doença ocular, atribuída ao trabalho intenso e minucioso na Capela Sistina, recorreu à obra de Pedro Julião para encontrar a receita de um colírio oftalmológico designado aquae mirabilis, que lhe sarou os olhos.

O prestígio de Pedro Hispano era de tal forma que o poeta italiano Dante o colocou no Paraíso, uma das três partes fundamentais do poema Divina Comédia (1321), que assinala os grandes nomes da ciência naquela época. Dante descreveu-o como "aquele que brilha em doze livros", numa alusão aos doze tratados da sua autoria.

Apesar da fama e do prestígio, há quem duvide da autoria das mais de 50 obras atribuídas a Pedro Hispano. Vários investigadores defendem que essas obras deveriam ser atribuídas a mais três ou quatro autores, argumentando que, naquela altura, a Península Ibérica era conhecida como Hispânia, ou seja, todos os Pedros ali nascidos seriam "Petrus Hispanus".

Certo é que Pedro Hispano era conhecido como um estudioso - fora-o antes de chegar ao papado e continuava a sê-lo já enquanto Papa. Depois do périplo pelas universidades europeias, regressou a Portugal, onde rapidamente subiu na hierarquia católica - começou por desempenhar cargos na Sé de Lisboa, passando depois para o Porto e mais tarde para Guimarães, até ser nomeado Arcebispo de Braga, em 1273. A sua relação próxima com o Papa Gregório X, de quem era médico pessoal, levou-o a ser convidado a participar no Concílio Ecuménico de Lyon.

O ano de 1276 foi um ano agitado para a Igreja Católica. Depois da morte de Gregório X, foram eleitos dois papas naquele mesmo ano - Inocêncio V, cujo papado durou cinco meses, e Adriano V, que morreu cinco semanas após ser coroado Papa. Assim, pela terceira vez no mesmo ano, os cardeais foram chamados a escolher um sucessor.

Naquela altura, o Papa tinha um poder imenso, já que lhe incumbiam os poderes sobre toda a Cristandade Ocidental. A insalubridade de Roma levou a que a cidade de Viterbo - conhecida como a cidade dos Papas - se tornasse o refúgio dos Papas que abandonavam a capital. Foi ali que surgiram os conclaves - tal como fizeram aquando da eleição de Gregório X, passadas três semanas, os habitantes de Viterbo fecharam à chave a sala onde estavam reunidos os cardeais, ameaçando cortar os alimentos, deixando-os a pão, água e vinho até que fosse eleito um novo Papa.

Poucos dias depois, a 13 ou 20 de setembro - mais uma vez, as datas não são certas - os cardeais anunciaram um nome surpresa: Pedro Hispano, um cardeal sem ligações políticas, fora eleito Papa por unanimidade. Foi o 187.º na ordem cronológica dos Papas. Escolheu o nome apostólico João XXI - uma escolha curiosa, já que, na lista de Papas católicos, nunca existiu um Papa João XX.

O Papa João XXI foi, à altura, um dos líderes da Igreja Católica com maior nível de escolaridade. Estudou, entre outras coisas, Filosofia, Teologia e Medicina (Print Collector/Print Collector/Getty Images)

Tal como os seus antecessores, o seu pontificado foi curto - durou apenas oito meses. Durante esse período, João XXI dedicava os seus dias à investigação científica, em detrimento da governação, delegando esses assuntos administrativos para o cardeal Orisino, que lhe sucedeu como Papa Nicolau III. Tanto assim era que João XXI terá reservado para si o anexo do palácio papal em Viterbo, onde se resguardava para poder trabalhar com maior sossego.

Apesar do pontificado breve, João XXI é recordado como o Papa que procurou a reconciliação com a Igreja Ortodoxa grega - uma iniciativa de Gregório X -  bem como as relações com o império mongol. É descrito como um Papa simples, o que lhe valeu críticas por parte da Cúria romana, já que tanto recebia os pobres como os ricos, e como um pacificador, já que defendia a reconciliação das grandes nações europeias - França, Germânia e Castela - sem sucesso. Tentou resolver as discórdias entre o rei português D. Afonso III e a Santa Sé e empenhou-se na libertação da Terra Santa, na altura ocupada pelos turcos, preparando uma nova cruzada.

Em maio de 1277, João XXI fazia uma vistoria às obras de alargamento do palácio papal em Viterbo, que ele próprio tinha solicitado, quando o edifício ruiu e ficou esmagado pelos escombros. Acabou por morrer dias mais tarde devido à gravidade dos ferimentos. O bispo italiano Lorenzo Chiarinelli descreve a morte de João XXI como "um acontecimento trágico". "Segundo dados que temos, parece que o teto ruiu e ele ficou esmagado. Depois de alguns dias de agonia dolorosa, morreu."

A morte de João XXI, oito meses depois de ser eleito Papa, ainda hoje está envolta em mistério. Na altura, foi considerada um castigo divino por aqueles que o descreviam como um mago ou feiticeiro, tendo em conta a sua dedicação ao estudo das ciências ocultas e da anatomia do corpo humano. Houve também quem tivesse teorizado que o desmoronamento do palácio papel tinha sido causado por uma explosão. O que é certo é que, até hoje, não se sabe se a sua morte foi um mero acidente ou se resultou numa ação dos seus inimigos.

Foi sepultado na Catedral de Viterbo, mas o seu túmulo "andou de um lado para o outro", mudando de localização várias vezes, acabando por ficar escondido atrás da porta de entrada do templo, segundo o investigador Mendes Pinto, numa entrevista ao Expresso sobre o legado de João XXI. Foi preciso esperar até ao ano 2000 para que João XXI fosse trasladado junto do Alta-Mor da Catedral de Viterbo, onde estava inicialmente.

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