Cada português manda 19 quilos de roupa para o lixo todos os anos. As etiquetas podem ajudar-nos numa gestão mais sustentável do guarda-fatos

4 jun 2023, 18:00
Etiquetas de roupa (imagem Getty)

Na compra de uma nova peça de roupa, a informação que o consumidor tem à sua disposição é escassa. Contudo, há indicadores de que uma peça é mais ou menos amiga do ambiente. Mostramos-lhe alguns alertas que facilmente podem passar despercebidos

"Assumimos que as alterações climáticas são o nosso grande problema, mas temos de perceber que a causa é o atual modelo de produção e consumo. Os têxteis são o exemplo acabado, o pior exemplo, de tudo o que causa as alterações climáticas", garante Susana Fonseca, vice-presidente da Associação Zero e responsável pela área da sustentabilidade. Rafaela Norogrando, professora de design de moda na Universidade da Beira Interior, concorda e realça que "a moda é a filha predileta do capitalismo". Mas, será mesmo assim?

Cada cidadão europeu desfaz-se, em média, de 11 quilos de material têxtil por ano, segundo o Centro Comum de Investigação da União Europeia. Em Portugal, só em 2020, a Agência Portuguesa do Ambiente contabilizou 189.528 toneladas de têxteis nos resíduos urbanos nacionais, o que representa 4,6% de todo o lixo gerado no país e corresponde a cerca de 19 quilos anuais por cada português.

Será sequer possível ou exequível inverter este ciclo de hiperconsumo? Teoricamente sim, mas a solução tem de passar por três pilares de ação: a regulamentação, a empresa e o consumidor. As pequenas escolhas que cada pessoa faz na altura de comprar roupa não vão mudar o curso desta bola de neve de proporções quase indescritíveis por si só, mas podem motivar as outras duas partes a mudar de rumo. E é aqui que as etiquetas das peças de roupa ganham relevância. A que deve, então, o consumidor estar atento ao ler aquele pequeno pedaço de poliéster com letras, símbolos e números que está preso ao colarinho de uma camisola?

Diagrama explicativo do Hearts & Hands Project, que desenvolve atividades com alunos de licenciatura em Design de Moda e estudantes de 1º ciclo. (Autoria: Rafaela Norogrando, Caroline Loss e Miriam Reis)

As etiquetas costumam apresentar três informações importantes: o tipo de fibras que estão presentes na peça, os símbolos de lavagem da roupa e o país onde o artigo foi fabricado. O que é que isto diz em termos de sustentabilidade? Associações como a Deco proteste, a Zero ou a Fashion Revolution Portugal asseguram que esta informação é escassa, mesmo os profissionais do setor concordam, e até a União Europeia já reparou e prevê que, em 2030, as etiquetas sejam diferentes. O objetivo é que tenham mais informações. Mas para que uma t-shirt não passe a ter "três livros de etiqueta" - como ironiza Marta Barata da Fashion Revolution - a solução deverá passar por um QR Code, onde o consumidor poderá ter acesso a informações como onde foi plantada cada fibra utilizada para fabricar a peça, onde foi feita cada etapa do processo fabrico, a composição da peça em termos de materiais, regras de lavagem e até como poderá ser reciclada.

A composição das peças. Não arrisque e opte pelo 100%

Até 2030, resta ao consumidor trabalhar com a pouca informação que tem ao seu dispor. A regra número um parece ser: se uma peça é composta por mais do que uma fibra, não compre. Porquê? Na reciclagem, cada material tem de ser tratado individualmente - tal como acontece com o papel, plástico e vidro - e, até ao momento, não existe um processo viável e em larga escala para este processo.

Esta mistura de fibras torna-se num problema mesmo em percentagens reduzidas. "Há muita dificuldade, depois no pós-vida da roupa", refere Marta Barata, membro da Fashion Revolution, lembrando que "quando há misturas, a peça é logo um bocadinho menos sustentável, tudo aquilo que esteja abaixo dos 97% de um só material é difícil de reciclar".

Susana Fonseca da Zero sublinha que a "reciclagem do têxtil ainda está na sua infância". A especialista explica que "a mistura de diferentes fibras dificulta muito o processo" e alerta ainda para outra dificuldade, mesmo em casos de peças de um só material: "Fechos, botões e até as próprias etiquetas são sempre materiais diferentes e têm de ser retirados para que se possa proceder à reciclagem". Ou seja, umas calças ou uma camisa, mesmo que sejam 100% de um tipo de fibra, representam uma dificuldade acrescida e para estes casos não existe para já um modelo de larga escala de reciclagem eficaz. 

"A reciclagem, hoje em dia, é uma não-solução. No sentido em que não existe ainda de forma alargada, implementada e com bons resultados", realça Susana Fonseca.

Lavagem, secagem e o ferro. Não ignore os símbolos

Os símbolos de lavagem também escondem detalhes sobre a sustentabilidade da roupa que podem fazer a diferença, tanto no gasto energético, como na longevidade das peças. A indicação mais relevante é a da obrigatoriedade de limpeza a seco. Este é um processo à base de químicos e mais prejudicial para o meio ambiente do que as lavagens tradicionais, tanto à máquina como à mão.

"Deve estar-se mais atento aos símbolos que permitem fazer uma diferenciação dos cuidados a ter com as peças: se tem de ser lavagem profissional ou não, o tipo de lavagem que se pode fazer, mesmo em casa, como se pode secar e também passar a ferro", explica Elsa Agante, team leader da área de Sustentabilidade da Deco Proteste. A especialista lembra que "cerca de 30% do impacto ambiental se deve ao uso", o que inclui todos os processos que decorrem entre o momento da compra e o dia em que a peça chega a um contentor do lixo.

Marta Barata da Fashion Revolution alerta que "uma lavagem a seco não é uma lavagem sem líquido, é uma lavagem sem água". No processo, há vários líquidos que são utilizados e "muitos desses químicos podem ser bastante poluentes", refere a especialista. Ainda assim, Marta opta por se afastar do extremismo contra este tipo de peças: "Fugir é uma expressão muito forte, mas evitar, sem dúvida" e lembra que "a questão do lavar a seco muitas vezes acontece apenas, porque muitas marcas querem minimizar os riscos de estragar a peça numa lavagem em casa".

Também a Zero alerta para estas peças que necessitam de uma limpeza profissional, porque "à partida, vão ter mais impacto ambiental". A vice-presidente Susana Fonseca descreve que este tipo de limpeza a seco "é muito mais impactante do que uma lavagem em casa".

Lavar a roupa a uma temperatura superior à recomendada pelo fabricante, lavar as peças mais vezes do que o essencial e a limpeza a seco tornam a peça menos sustentável. Isto, porque água mais quente implica maior gasto energético, logo terá um maior impacto climático do que lavar a peça exatamente como é sugerido pelo fabricante.

Símbolos de lavagem de roupa, usualmente, presentes nas etiquetas das peças.

Tanto a Deco Proteste, como a Zero e a Fashion Revolution, consideram ser importante que o consumidor esteja atento aos símbolos que identificam a temperatura a que a peça deve ser lavada, ou seja, é preciso olhar para o pequeno alguidar na etiqueta que contém um número no seu interior. Para estes casos, o ideal parece mesmo ser nunca passar dos 30 graus, temperatura a que "as peças normalmente sobrevivem bastante bem", como refere Marta Barata da Fashion Revolution.

A duração da lavagem também é um fator a ter em conta. Não lavar a roupa em programas mais prolongados aumenta o ciclo de vida dos materiais, minimizando o consumismo e o consequente desperdício têxtil.

Elsa Agante da Deco Proteste lembra que peças que têm de ser lavadas à mão também podem não ser a melhor escolha. É uma lavagem que consome maior quantidade de água, mas também porque, tendo em conta o ritmo de vida da maioria dos portugueses, aumenta a probabilidade de uma peça delicada ir juntamente com o resto da roupa para a máquina de lavar e acabar destruída no lixo.

Compreender os símbolos das etiquetas nem sempre é fácil como reconhece Dóris Gonçalves, aluna do mestrado de Design de Moda na UBI e embaixadora-estudante da Fashion Revolution, que reconhece que a camada mais jovem da população tem mais dificuldade em reconhecer a informação. Perante as dificuldades, a Deco Proteste já criou um guia para facilitar a interpretação desta simbologia.

Quanto aos famosos 30 graus nas lavagens, a Deco Proteste - que regularmente testa cada novo modelo de máquina de lavar - garante: "Na maioria das máquinas recentes, estas lavagens a 30 já chegam perfeitamente para limpar qualquer peça. Antigamente, havia máquinas que tinham de ir aos 60 ou 70 graus, mas, nesta fase, e com os detergentes atuais, já não é necessário".

"Não é necessário estar a aumentar a temperatura, porque isso implica aumento de energia, consumo energético e pode também estragar as peças", alerta a Deco.

Estes são os símbolos a que deve ter maior atenção, diagrama ​​do Hearts & Hands Project, que desenvolve atividades com alunos de licenciatura em Design de Moda e estudantes de 1º ciclo. (Autoria: Rafaela Norogrando, Caroline Loss e Miriam Reis)

Perante os possíveis modos de secagem, Elsa Agante considera que esta não é uma área particularmente relevante em termos de sustentabilidade, porque a maioria dos portugueses não tem sequer máquina de secar dado o clima nacional. Ainda assim, a especialista em sustentabilidade alerta que nem todas as peças podem ser secadas nas máquinas de secar e lembra que descuidos podem acabar com peças arruinadas.

O ato de passar a ferro é outro dos perigos e, tal como na lavagem, também aqui é possível controlar o gasto energético. Dependendo do material, é sempre possível regular a temperatura do ferro de engomar. A Deco alerta ainda que já há muitas peças disponíveis que não precisam sequer de ser passadas e outras, no espetro oposto, não podem em qualquer circunstância ser engomadas por haver risco de ocorrerem deformações.

A leitura e compreensão destes símbolos tem particular relevância sobretudo para o prolongamento do ciclo de vida da roupa. Um mau tratamento de uma peça tende a significar que a mesma acabe no lixo e com ciclos de uso reduzidos surge também a necessidade de as substituir por novas, exacerbando assim o atual padrão de hiperconsumismo.

A origem da peça, da plantação de algodão à loja? Porque importa por onde e o Made in?

O "Made in" nas etiquetas de roupa também pode ser um indicador de sustentabilidade ou falta dela ao longo de toda a cadeia de produção. É possível ter uma ideia sobre a questão dos direitos humanos colocada em evidência com o colapso do Rana Plaza - que vitimou 1.134 trabalhadores no Bangladesh em 2013 - e, também é possível avaliar o modo como é feita a gestão dos recursos naturais no país de origem.

Além destas duas informações, torna-se ainda possível ter uma noção da quantidade de combustível fóssil gasto para transportar a peça durante todo este processo. Neste ponto, no entanto, a informação disponibilizada ao consumidor é muito escassa, quem compra tem direito a somente três palavras: "Made in X", ficando por explicar onde foram plantadas as fibras utilizadas, em que países foram feitas cada uma das fases de confeção da roupa e, por vezes, é até dúbio se foi no país dito de origem que foi feita a maior parte da peça.

Dóris Gonçalves acredita que este rastreamento é exequível e iria fornecer mais informações ao consumidor final. A estudante realça, ainda assim, que este progresso também acarreta "um gasto acrescido" para as empresas: "Agora, é preciso ter interesse em que haja essa transparência e é o que atualmente ainda não acontece na grande maioria das marcas e nas marcas de fast fashion".

O preço também pode ser um bom indicativo

Com o Fast Fashion surgiu também a ideia de muito e barato. A professora universitária Rafaela Norogrando explica que o preço que consta na etiqueta de uma peça de roupa também pode ser um excelente indicador de sustentabilidade, em certos casos é claro.

A teoria por detrás da lógica de Rafaela passa por pensar: "Vai comprar uma camisa, então quantos botões é que a peça tem? Depois, quanto é que custa um botão? Então, quanto tempo terá uma pessoa passado para a costurar? Se a camisa é de algodão, esse algodão teve de ser plantado, certo? Também teve de ser colhido por alguém, teve de ser enviado para a empresa que o transformou em fio, que o enviou para outra empresa, que por sua vez teceu aquela malha, que enviou para outra empresa que costurou, que igualmente o enviou para outra, que fez a distribuição, que enviou para outra e só então chegou à sua mão". Por fim, existe uma simples questão: "Será que ao pagar 10 euros por uma camisa, estarei a pagar o trabalho e o material?", questiona a docente.

Dicas, atitudes, mas só há uma solução: "O mais importante é menos. Temos de reduzir de forma drástica"

É facto que a produção de algodão é uma indústria que consome demasiados litros de água, em que é utilizada uma exorbitância de pesticidas e para a qual existem materiais alternativos como o cânhamo, linho ou até a juta, mas seria possível manter os atuais padrões de consumo e a máquina gigante que é a moda a girar somente com estas fibras amigas do ambiente? Susana Fonseca da Zero é perentória: "O mais importante é menos. Temos de reduzir de forma drástica. Não há outra forma de atingir a neutralidade carbónica".

Todavia, nem sempre o hiperconsumismo foi o padrão, por isso, fica a questão: como se chegou aqui? "Transformámos uma indústria que era de produtos duráveis em produtos de curta duração, em que estão sempre a aparecer novas campanhas e novas coleções nas lojas, por isso, chamámos-lhe fast fashion", resume Susana, lembrando que estes novos artigos são muito diferentes dos de outros tempos: "São roupas de baixa qualidade, estragam-se com facilidade, perdem a forma, ganham borboto, ganham buraquinhos, são muitas vezes fibras de baixa qualidade, a própria produção é de baixa qualidade, tudo isto, para garantir apenas uma coisa que é o baixo preço, mas alimentar este modelo é, de facto, totalmente insustentável".

Quanto à qualidade da roupa, Marta Barata da Fashion Revolution lembra que as futuras gerações nunca terão roupa vintage, porque as peças de hoje nunca terão qualidade para resistir como as roupas das nossas avós resistiram. "O ser consciente não é só dizer que é sustentável, verde, de algodão, que é não sei o quê. Não, mesmo nós, na Fashion Revolution também consumimos fast fashion, era impossível, neste estado financeiro e económico em que estamos, exigirmos às pessoas que parem de consumir fast fashion. Não seria lógico sequer", confessa Marta Barata, realçando, contudo, que estas compras devem ser conscientes e bem ponderadas. 

"Atenção, o mais importante é que as peças durem o máximo tempo possível. É este contexto do fast fashion é que é um problema., alerta a especialista em sustentabilidade Elsa Agante da Deco Proteste.

"É uma válvula de escape, tive um dia mau no trabalho, vou dar uma volta no shopping; perdi um relacionamento, vou dar uma volta no shopping; porque me dá um determinado prazer e uma compensação diferente. Mas, aquele saquinho que comprei, chega a casa e vai para um fundo de armário, ou no armário já não há espaço e vai para cima de uma cadeira e este monte cíclico só vai aumentando ", lamenta Rafaela Norogrando.

Atingir a neutralidade carbónica sem uma mudança radical dos padrões de consumo atuais parece ser mera fantasia, mas quem foi o verdadeiro culpado? É certo que o consumidor só consome os bens que tem à sua disposição, mas também é verdade que as empresas apenas colocam no mercado aquilo que os clientes indiretamente pedem.

Susana Fonseca da Zero acredita que "não há um culpado, mas um responsável maior", apesar de "todos termos responsabilidades". A especialista acredita que a mudança terá de partir das empresas e dos políticos, defendendo a implementação de novas regulamentações tal como ocorreu com "os sacos de plástico nos supermercados, em que tivemos imensa sensibilização, mas, de facto, as coisas só mudaram quando os sacos passaram a ser pagos, porque a questão do preço é sempre um fator importante".

"Maior qualidade, maior durabilidade e redução da quantidade, porque este é o único caminho e não esta ideia muito perversa de que não somos suficientes apenas por nós, precisamos sempre de qualquer coisa extra para sermos pessoas, para sermos melhor, para os outros nos aceitarem", garante Susana Fonseca.

Relacionados

Clima

Mais Clima

Patrocinados