Num futuro próximo, em vez de abrir o armário e escolher o que vestir para a sua próxima videochamada, pode antes abrir o guarda-roupa virtual e escolher uma indumentária digital em 3D para “vestir”.
Pelo menos é o que várias pessoas do mundo da moda e da tecnologia esperam que venha a acontecer, já que há cada vez mais empresas a explorar o potencial da moda digital. E estão a apostar na possibilidade de essas roupas virtuais não serem apenas para usar em chamadas no Zoom, mas que possam vir a ser usadas em todo o “metaverso” – o conceito de um mundo virtual partilhado utilizando a realidade aumentada -, em videojogos, nas redes sociais e, quem sabe, vistas no nosso corpo no mundo real através de óculos de realidade aumentada.
No relatório anual “The State of Fashion” da McKinsey & Company e do The Business of Fashion, os líderes de mercado olham para esta fronteira imersiva com uma perspetiva de futuro.
"Há cada vez mais ‘mundos alternativos’ onde nos podemos expressar, mas há provavelmente uma subestimação do valor atribuído às pessoas que se desejam expressar num mundo virtual através de uma personagem virtual”, refere o diretor de marketing da Gucci, Robert Triefus, no relatório.
Vestir as nossas personagens digitais não é nenhuma novidade, seja a criar Dollz pixel a pixel no início da década de 2000 ou, mais recentemente, a comprar novas peças de vestuário no jogo Animal Crossing. A indústria dos videojogos tem vindo a preparar o terreno para a moda digital, com visuais – ou “skins” – em jogos como o Overwatch e o Fortnite a gerar milhares de milhões em receitas.
Algumas das principais marcas de moda já começaram a tirar proveito do mercado dos videojogos. Em 2019, a Louis Vuitton criou skins para o jogo League of Legends, e a Nike e a Ralph Lauren disponibilizaram este ano acessórios para avatares na plataforma de criação de mundos virtuais Roblox. Fora do mundo dos videojogos, os NFT – sigla em inglês para “non fungible tokens”, uma espécie de certificados digitais exclusivos que utilizam a tecnologia blockchain para atestar a autenticidade e os direitos de propriedade de bens digitais – também permitiram que a moda digital pudesse ser monetizada mais amplamente (no outono passado, a coleção em NFT da Dolce & Gabbana foi vendida por 1,885.719 ETH, o equivalente a seis milhões de dólares na altura).
Paralelamente, as discussões em torno dos mundos virtuais foram aceleradas devido à pandemia e ao trabalho remoto. O facto de o Facebook ter passado a chamar-se "Meta" só veio suscitar mais interesse pelo tema. Recentemente, na conferência Connect 2021, organizada pela nova Meta Inc., Mark Zuckerberg admitiu que vamos ter um “guarda-roupa virtual com peças para diferentes ocasiões” no metaverso.
E como não houve desfiles de moda físicos em 2020, os criadores de moda tiveram de ser criativos na forma como apresentaram as suas criações. A marca de luxo africana Hanifa apresentou um desfile virtual que prescindiu dos manequins humanos em favor de figuras flutuantes sem cabeça vestidas com criações novas em 3D, ao passo que os estilistas chineses Xu Zhi, Andrea Jiapei Li e Roderic Wong apresentaram as suas coleções numa montra virtual de realidade aumentada, na Shanghai Fashion Week
"As marcas perceberam que tinham de criar showrooms virtuais e desfiles digitais… para vender as suas coleções em 2020”, disse Karinna Grant, cofundadora do mercado de moda NFT The Dematerialised juntamente com Marjorie Hernandez, via telefone. Em função disso, acrescentou, os consumidores foram expostos a novas formas de ver peças de vestuário apresentadas em formato digital.
E, num piscar de olhos, surgiu a primeira onda de mercados digitais de moda, com websites como o Replicant, o The Dematerialised e o DressX a disponibilizar uma funcionalidade variada, mas ainda algo limitada (atualmente, pode carregar uma fotografia sua no website DressX e, dentro de 24 horas, ver-se vestido com a roupa que a loja online oferece). O Snapchat permite que os seus utilizadores “provem” peças de roupa digitais através de óculos de realidade aumentada, e o Instagram também já testou filtros com vestuário em realidade aumentada.
Marcas como a Gucci, Prada e Rebecca Minkoff estão a entrar avidamente no mercado, tendo a última vendido versões digitais da sua última coleção no The Dematerialised – com preços que iam dos 50 euros aos 500 euros e que esgotou quase imediatamente. Em dezembro de 2020, a Nike anunciou a aquisição da RTFKT, uma startup especializada em calçado digital e outros artigos virtuais colecionáveis.
Substituir o físico pelo digital
Com o crescimento do setor, Grant vê três maneiras de usar peças de roupa digitais: vesti-las nós mesmos através de realidade aumentada, vestir os nossos avatares e transformá-las em NFT para serem colecionadas e comercializadas – a última já viu um rápido crescimento no mercado da arte digital.
Mas porque haveremos de substituir a nossa roupa física? Os defensores desta ideia dizem que a expressão criativa é ilimitada com a indumentária digital, que está cada vez mais refinada devido aos avanços das renderizações 3D e da tecnologia da Realidade Aumentada.
"O vestuário representa a expressão de uma personalidade. Sempre o fez no mundo físico e continuará a fazê-lo no mundo virtual”, disse Simon Whitehouse, antigo CEO da marca JW Anderson e atual CEO da agência de sustentabilidade Eco-Age, via videochamada. O seu coletivo de artistas, o EBIT, lançou recentemente um jogo centrado na saúde mental chamado "Yellow Trip Road", onde é possível comprar peças de roupa digitais, ou "Bumper Jumpers", como NFTs.
No DressX, os clientes podem adquirir visuais futuristas que desafiam a gravidade da marca de "tech-couture" Auroboros que podem levar um atelier de moda (ou um designer de cosplay) semanas a criar fisicamente, com determinados elementos que são totalmente impossíveis de criar. Além disso, os trajes virtuais permitem adquirir peças de marcas de luxo a preços acessíveis – a Gucci, por exemplo, lançou na primavera passada um par de ténis exclusivamente virtuais por apenas 12 dólares.
"Os preços são acessíveis e permitem que possamos adquirir produtos de uma determinada marca de luxo sem gastar uma fortuna”, disse Caitlin Monahan, estratega de tecnologia para o consumidor na empresa de previsão de tendências WGSN, via videochamada.
Para uma marca, é “incrivelmente lucrativo” vender o seu produto sem ter de produzir peças de roupa físicas, explicou. O que, pela mesma razão, significa que a moda virtual também é bastante mais sustentável.
"É reinventar toda uma cadeia de abastecimento”, disse Monahan. “Não há consumo de água e as emissões de CO2 são extremamente reduzidas. Não há envios ou devoluções de amostras. Não há showrooms e não há criação de protótipos físicos.”
Ainda existem poucos dados relativamente ao impacto reduzido da moda digital, mas, segundo um relatório de sustentabilidade elaborado pelo DressX em 2020, a produção de vestuário digital emite 97 por cento menos carbono do que a produção de vestuário físico, e poupam-se 3330 litros de água por peça. As fundadoras da loja online, Daria Shapovalova e Natalia Modenova, começaram por ter como público-alvo a indústria dos influenciadores, na medida em que estes costumam receber peças de roupa das marcas em troca de uma única fotografia, mas a dupla aliou-se recentemente a várias marcas e editores, incluindo a Google Pixel e a Vogue Singapura, para fazer chegar os recursos da empresa a um público maior.
"Estamos a trabalhar para popularizar a moda digital e a sua adoção em massa”, disse-nos Shapovalova via telefone. Dizem que a existência de mercado de NFTs também está no futuro do DressX, dando mais exclusividade a certos designs e a possibilidade de colecionar e vendê-los no mercado secundário.
E embora o vestuário em NFT seja menos sustentável do que outros tipos de vestuário digital devido às emissões de carbono da tecnologia blockchain e das criptomoedas, tanto Whitehouse como Grant e Monahan indicaram formas mais ecológicas de criar plataformas de NFT, tal como utilizar blockchains que operem num sistema de prova de participação mais ecológico ou oferecendo a possibilidade de pagar em papel-moeda em vez de criptomoedas.
"À medida que mais desenvolvedores de software entram no mercado, penso que ainda vão surgir mais alternativas”, disse Monahan.
Qualquer adoção da moda virtual pode trazer um impacto positivo a uma indústria que é das que mais contribuem para as emissões de carbono mundiais e para a poluição dos oceanos com microplásticos, desde que o consumidor consiga substituir algumas peças que tem no armário e não apenas acrescentar mais às que já tem.
"Não precisamos de mais bens físicos no planeta”, disse Whitehouse. “Vejam o que está a acontecer nos aterros sanitários do mundo inteiro. A moda é… uma das cinco indústrias mais poluentes do mundo."
Um futuro interligado
Com a indústria da moda a entrar cada vez mais no mundo virtual, o interesse em apostar neste mercado pode, inicialmente, desenvolver-se mais rapidamente do que a própria tecnologia. Para que um único guarda-roupa possa ser utilizado em vários ambientes gaming, bem como nas redes sociais e noutras plataformas, será necessário que as peças de roupa sejam compatíveis, explicou Irene-Marie Seelig, CEO e cofundadora da AnamXR, que cria experiências virtuais para as marcas. Caso contrário, o casaco de peles digital que acabou de comprar não poderá ser utilizado entre aplicações.
"Neste momento, não há uma forte interligação”, disse Seelig via telefone. “E no futuro, prevejo que a interligação seja muito maior… possibilitando que entremos em diferentes metaversos com o nosso avatar e o nosso guarda-roupa digital.”
Seelig criou os Bumper Jumpers do metaverso Yellow Trip Road do EBIT utilizando o Unreal Engine, um popular motor de jogos que suporta consolas, telemóveis e jogos de PC, bem como realidade virtual. Um dia, as peças de roupa vão poder ser transferidas para jogos como o Fortnite – se esses desenvolvedores de jogos decidirem abrir essa porta.
Há quem olhe para o metaverso com bastante ceticismo, mas, caso este venha a ser uma realidade, a ideia utópica de um “metaverso aberto”, com um único guarda-roupa, será complicada de concretizar por várias razões, sejam elas técnicas – por exemplo, mundos virtuais que necessitem de uma placa gráfica específica ou uma carteira de criptomoedas, explicou Grant – ou mais genéricas, como a questão da propriedade intelectual. Será que as empresas de tecnologia vão querer partilhar o espaço do metaverso?
Ainda não se sabe como tudo se irá desenrolar, mas Monahan mantém-se otimista no que diz respeito à indústria da moda.
"Nas conversas que tenho tido com outras entidades do setor da moda digital, parece haver um grande espírito de colaboração… os ateliers de moda tradicionais são menos reservados relativamente ao seu produto e ao processo de investigação e desenvolvimento”, explicou.
Isto faz com que seja o consumidor a decidir se substituir os seus bens materiais por bens virtuais é vantajoso para si.
"Um dos desafios neste momento é a mudança de atitude relativamente a pagar por algo que não é palpável,” disse Monahan, recordando as reações da Internet às sapatilhas digitais que a Gucci vendeu a um preço mais acessível. "Há imensos comentários a dizer que é uma trafulhice, que é assustador ou que é o início da extinção da raça humana. Houve imensa resistência ao conceito."
Mas Monahan acredita que já existe bastante gente interessada na ideia de mudar as marés e compara o futuro da moda virtual ao futuro do streetwear. A euforia em torno do streetwear fez disparar o mercado secundário do calçado desportivo – e os entusiastas colecionam este calçado para o exibir e não necessariamente para o calçar.
"É quase uma obra de arte, algo com o qual temos uma espécie de ligação emocional – e eu penso que o mesmo acontece com a moda digital”, disse Monahan. “Só porque algo não é palpável, não quer dizer que não tenha valor, e eu creio que demonstrar essa utilidade e essa capacidade de execução será realmente fundamental para a sua adoção em massa."