O vinho faz-nos viver mais anos? Há um ministro a insistir nessa ligação (e a encher o protesto de médicos e nutricionistas)

9 nov, 18:00
Vinho (Pexels)

ANÁLISE || O ministro da Agricultura não retira o que disse. A zona do país com maior longevidade “corresponde à região demarcada dos vinhos verdes”. José Manuel Fernandes justifica-se com dados do INE, mesmo que esses dados não façam qualquer associação entre as duas realidades. Médicos de saúde pública e nutricionistas insistem que o “nível seguro” no que respeita ao álcool é “zero”. E descartam que haja evidência que permita associar o vinho à longevidade

“Há regiões do país onde a longevidade é a maior e onde bebem tinto verde, por exemplo”. Foram estas, sem tirar nem pôr, as palavras do ministro da Agricultura, José Manuel Fernandes, à TSF. O governante justificava, na entrevista, a decisão do Governo de não aumentar impostos sobre bebidas alcoólicas, tabaco e refrigerantes.

As palavras alimentaram o protesto dos profissionais de saúde, que acusam o ministro de associar erradamente e sem evidência científica o consumo de vinho à longevidade. Nutricionistas e médicos de saúde pública falam mesmo em desinformação.

A CNN Portugal foi ouvir todas as partes, para que o leitor possa, por si só, tomar as suas conclusões.

Ministro defende-se com dados do INE que não sustentam o argumento

À CNN Portugal, o gabinete do ministro insiste que a posição é “demonstrada pelos dados do Instituto Nacional de Estatística”. Neles vê-se que a esperança média de vida à nascença mais elevada se regista no Cávado, “a única região em que excedeu 82 anos”. “A NUT III Cávado corresponde à região demarcada dos vinhos verdes”, completa fonte oficial.

Ora, nem o boletim do INE partilhado pelo gabinete do ministro, nem os outros balanços do instituto estatístico relativos a esperança média de vida e longevidade, contam com qualquer associação entre as duas realidades. Também não equacionam sequer que estes cidadãos consumam vinho.

“É factual que a maior longevidade em Portugal é no Vale do Cávado. Tal não pode levar à conclusão que aumenta a longevidade. Mas se a longevidade fosse menor também não se poderia atribuir ao vinho verde, como seguramente muitos fariam”, insiste o gabinete do ministro.

Ainda assim, “o senhor ministro concorda e reconhece que declarações retiradas do contexto podem gerar interpretações erradas”.

Fonte oficial justifica ainda que a dieta mediterrânica, “declarada pela UNESCO como Património Cultural Imaterial”, “inclui o consumo moderado de vinho às refeições”.

Vamos analisar, com vários especialistas, cada uma destas justificações.

(Lusa)

"Correlação não significa causalidade". Um risco para a saúde pública?

“O consumo de vinho de forma moderada não faz mal”, disse José Manuel Fernandes. Os médicos de saúde pública discordam em absoluto: para esta classe, não existe um “nível seguro” no consumo de álcool.

“Declarações como as do ministro contribuem para normalizar o consumo, desvalorizam a problemática [do alcoolismo], lançam confusão sobre aquilo que está cientificamente confirmado e acabam por minar o trabalho feito na promoção da saúde”, reage Gustavo Tato Borges, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública.

Por sua vez, o médico de Saúde Pública João Paulo Magalhães insiste que, nesta posição da classe, “não está em causa o bloqueio ou proibição do consumo de álcool”. Antes o vincar de que as declarações públicas de um responsável político podem ter impacto nas práticas e hábitos de uma população. “Há assunções que tínhamos há muitos anos no seio da nossa cultura que não são necessariamente verdade”.

Em Portugal, há muito que acreditamos que um copo de vinho tinto à refeição pode fazer bem - já lá vamos explicar esta parte mais à frente. Depois, muitos têm sido os artigos a destacar os efeitos desta bebida na longevidade. E, mais recentemente, o conceito de “zonas azuis” - as regiões do mundo onde se alcançam mais anos de vida - vincou a importância, na Sardenha, da dieta mediterrânica, onde o vinho é parte integrante.

“Correlação não significa causalidade. É preciso ter cautela nessas interpretações imediatas”, argumenta João Paulo Magalhães. “Há muitos estudos, sim, mas a análise global é de que não existe um benefício efetivo para a saúde”, junta Gustavo Tato Borges.

Os médicos vincam que os efeitos na longevidade são reflexo de um conjunto de fatores, como uma vida ativa, com a prática de exercício físico, e uma dieta equilibrada. São eles, dizem, que acabam por explicar uma maior longevidade. Não o copo de vinho em si.

“Temos de ter cuidados quando analisamos os dados globais da saúde e dos seus riscos. A questão aqui não é a área geográfica onde se consome. Antes as condições de vida, o acesso a cuidados de saúde ou a prática de exercício físico”, alerta Gustavo Tato Borges.

Os especialistas dizem compreender que José Manuel Fernandes queira promover os interesses de um setor que tutela, “mas em termos de saúde necessitamos de uma abordagem mais cuidada”.

Motivos económicos disfarçados de saúde?

A primeira classe a contestar as declarações de José Manuel Fernandes foi a dos nutricionistas. Uma delas é Conceição Calhau, professora catedrática da Nova Medical Schoool, com mais de 30 anos de investigação em alimentos fermentados.

“O ministro quer justificar impostos. E tem de apresentar a todos os portugueses uma razão financeira, económica, estratégica. Tem de argumentar com isso, não com argumentos de saúde”, reage, lembrando que já existe uma discriminação positiva para este produto nos impostos, com IVA a 13%.

“O seguro para o álcool é zero. Quando falamos em estilo de vida, estamos a falar de um conjunto de circunstâncias”, diz, para falar de longevidade.

“A evidência atual não permite afirmar com certeza que o vinho está associado à longevidade. É mais seguro dizer que o consumo moderado de vinho pode fazer parte de um estilo de vida saudável para algumas pessoas. A moderação é fundamental”, completa Diana Picas Carvalho, nutricionista do Hospital Trofa Saúde em Loures e Barcelos.

O vinho pode fazer bem à nossa saúde?

Todos já ouvimos que o vinho faz bem ao coração. E até aqui na CNN Portugal fomos, há uns tempos, perceber porque o tinto tem melhor fama do que o branco. Na altura, nenhuma nutricionista quis associá-lo ao rótulo “saudável”.

“O vinho, sobretudo o tinto, tem compostos químicos que são interessantes do ponto de vista da saúde. Mas isso não deve ser utilizado como argumento”, explica Conceição Calhau, lembrando que esses benefícios podem ser retirados de outros alimentos sem álcool, como os frutos vermelhos.

“O resveratrol é um antioxidante do vinho frequentemente associado a efeitos benéficos, mas são precisos mais estudos em humanos antes de se tirarem conclusões”, junta Diana Picas Carvalho.

Esta nutricionista explica que só integra o vinho em planos nutricionais se houver um pedido expresso do paciente. E desde que exista um estilo de vida ativa, sem problemas de saúde associados. A dose recomendada é de um copo pequeno para mulheres e dois copos pequenos para homens. Pequenos, leu bem. E sempre à refeição, “porque a presença de alimentos retarda a absorção de etanol”.

(Pexels)

E ajuda mesmo o coração?

Se já ouviu que o vinho faz bem ao coração, talvez seja melhor ler o que este cardiologista tem para lhe explicar. Hélder Dores, membro da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, resume deste modo: “Não há dúvidas de que aumenta o risco de várias doenças, incluindo cardiovasculares”.

“Antigamente, havia, de facto, estudos que apontavam para que um consumo ligeiro ou moderado de álcool pudesse ter um efeito protetor em termos cardiovasculares”. Contudo, com o passar dos anos, essa ligação deixou de ser evidente.

O que se tornou claro é que, as pessoas em que se verificavam esses efeitos “praticavam mais exercício físico, comiam melhor, eram menos obesos”.

“Não há benefícios do álcool, nem nenhum estudo que conheça que o diga”, conclui Hélder Dores.

Produtores defendem-se. Vinho também serve para celebrar: e isso dá saúde

Quem tem uma visão naturalmente diferente de todos estes especialistas são os produtores de vinho.

Ana Isabel Alves, da ACIBEV - Associação de Vinhos e Espirituosas de Portugal, defende que a abordagem dos especialistas sobre não haver um “nível seguro” para o consumo de álcool não está assente também em evidências científicas. “É uma constatação política, um conceito criado politicamente pela Organização Mundial de Saúde”, diz. Em reação, João Paulo Magalhães lembra que a “OMS é, por si, a entidade a quem é atribuída autoridade nesta área, assente sempre na melhor evidência científica existente”.

A representante dos produtores argumenta que há “inúmeros estudos científicos, que não são pagos por nós”, a mostrar que “o consumo moderado de bebidas alcoólicas é compatível com um estilo de vida saudável”. E isso, como vimos acima, não é algo de que os profissionais de saúde discordem.

Ana Isabel Alves defende que também foi essa a interpretação que fez das palavras do ministro da Agricultura. E de um estilo de vida saudável, diz, fazem também parte os brindes com os amigos ou a estabilidade económica que o setor permite àqueles que nele trabalham. Recorde-se que o setor do vinho é responsável por exportações de quase mil milhões de euros em Portugal.

Portugal leva o título de maior consumidor per capita de vinho, com 61,7 litros por ano por cada habitante com idade legal para consumir. “Mas temos padrões de consumo de baixo risco, algo que corresponde a um copo de vinho ao almoço e outro ao jantar”.

Os profissionais de saúde ouvidos pela CNN Portugal neste artigo, por sua vez, não deixam de vincar a escala do problema do alcoolismo no país. “Não é proibindo as pessoas de consumir bebidas alcoólicas que se acabam com os problemas ligados ao álcool. É ensinando as pessoas, nomeadamente, desde logo os jovens”, responde a responsável da ACIBEV.

Já Paulo Amorim, outro representante dos produtores de vinho, através da ANCEVE - Associação Nacional dos Comerciantes e Exportadores de Vinhos e Bebidas, explica que, tal como na dose do vinho, também é preciso contenção nas palavras.

“Não podemos exagerar e levar os consumidores a pensar que, quanto mais vinho beberem, mais saúde e longevidade conseguem. O vinho deve ser apreciado com prazer, mas com muita moderação. Faz parte da nossa dieta, da vida, dá alegria, é usado nos melhores momentos de celebração, mas o vinho não é um remédio, uma medicina. Não o podemos associar à longevidade”, justifica à CNN Portugal.

O desafio deixado a José Manuel Fernandes é que, em vez de “declarações avulsas”, se reúna com o setor para “ajudar a contribuir para um plano ambicioso”, perante a crise nesta área, com quebras na produção e nas vendas.

A CNN Portugal contactou ainda a Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos Verdes, que não se mostrou disponível para colaborar com este artigo.

(Pexels)

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