Dados da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais facultados à CNN Portugal apontam para a existência de 58 reclusos por fogo posto e 16 suspeitos em prisão preventiva a aguardar julgamento. O número de condenados tem vindo, no entanto, a subir, e o mês de setembro já conta com o valor mais alto dos últimos cinco anos: entre 2019 e 2022, eram 47 e em 2023 esse número subiu para 50
Nos últimos cinco anos foram investigados mais de 36 mil inquéritos por crimes de incêndio florestal, mas só em 1023 resultaram em acusações, de acordo com números fornecidos pela Procuradoria-Geral da República à CNN Portugal, relativos ao período entre 2019 e 2023. Estes dados surgem numa altura em que o Ministério da Justiça se encontra a preparar uma equipa especializada para combater este tipo de criminalidade após o primeiro-ministro ter alertado para “as coincidências” e os “interesses pessoais” por detrás das ignições que continuam a fustigar a floresta portuguesa, dizimando casas e causando a morte de pelo menos cinco pessoas.
Para o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), Paulo Lona, este número mostra a dificuldade que as autoridades têm em conseguir obter provas na sequência destas investigações, precisamente pelo rasto de destruição causado pelas chamas. “Se não são apanhados em flagrante delito, torna-se muito complicado estes casos resultarem em acusações, precisamente por causa da ausência de prova”, explica à CNN Portugal.
Esta será uma das explicações para o número de processos que acabam por não seguir para julgamento. Do total dos 36.927 inquéritos iniciados entre 2019 e 2023, 32.060 - ou 86% - foram arquivados. Na mesma linha, nos últimos cinco anos existiram 1.478 processos que foram suspensos provisoriamente.
2022 foi o ano em que mais inquéritos foram instaurados
De acordo com os dados da PGR, em 2023 foram instaurados 7.367 inquéritos, dos quais 277 resultaram em acusações, 7.732 em arquivamentos. Já em 2022, existiram 8.588 inquéritos, 163 acusações e despacho de arquivamento em 6.960 inquéritos.
Em 2021, o número ascendia aos 7.025 inquéritos, com 169 acusações e o arquivamento de 5.878. Uma subida comparativamente a 2020, com 6.967 inquéritos, dos quais 5.475 resultaram em arquivamento e 257 em acusações. Já em 2019, foram instaurados 6.980 inquéritos, com a dedução de acusação em 157 inquéritos e o arquivamento de 6.015.
É perante esta realidade que o Governo de Luís Montenegro se encontra a preparar uma equipa especializada para combater o fogo posto. O anúncio aconteceu durante um discurso, na terça-feira, onde avisou que as autoridades “não vão largar” aqueles que "em nome de interesses particulares são capazes de colocar em causa os direitos, liberdades e garantias e a própria vida dos cidadãos" e onde acentuou também a gravidade da situação: "Não podemos perdoar a quem não tem perdão".
Este discurso de Montenegro tem vindo a ser entendido como uma forma de responsabilização da Procuradoria-Geral da República para o elevado número de casos de incendiários que são presos e libertados pouco tempo depois. Mas as palavras do primeiro-ministro também têm vindo a ser alvo de críticas por parte de especialistas que sublinham que este tempo não deveria ser utilizado para criar ainda mais alarme.
Um deles é Joaquim Leitão, ex-presidente da Autoridade Nacional de Proteção Civil, que sublinha que o “primeiro-ministro tem uma preocupação legítima com o número elevado de ignições, sendo que não é normal num terreno muito focalizado termos este número tão elevado”. No entanto, aponta, o “enfoque deveria ser mais em torno da salvaguarda dos bens e dos cidadãos e das suas vidas”.
58 reclusos por fogo posto e 16 em prisão preventiva
Dados da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais facultados à CNN Portugal apontam para a existência de 58 reclusos por fogo posto e 16 suspeitos em prisão preventiva a aguardar julgamento. O número de condenados tem vindo, no entanto, a subir, e o mês de setembro já conta com o valor mais alto dos últimos cinco anos: entre 2019 e 2022, eram 47 e em 2023 esse número subiu para 50.
Além dos detidos em estabelecimento prisional, há duas pessoas neste momento sujeitas a prisão domiciliária e/ou com pulseira eletrónica. O número era muito maior há um ano, altura em que existiam dez pessoas com esta medida de coação.
Desde segunda-feira, porém, o número de detidos tanto pela GNR como pela Polícia Judiciária tem vindo a multiplicar-se. E esta quinta-feira, elementos da PJ conseguiram travar o suspeito de ter sido o autor do fogo de Albergaria-a-Velha que destruiu casas e vários hectares de floresta.
O homem, de 67 anos, estava referenciado desde julho por outros três incêndios que ateou na mesma zona com recurso a fósforos. Segundo apurou a CNN Portugal, o suspeito confessou os crimes e sofrer de uma compulsão relacionada com o fascínio do fogo.
Para o presidente do Centro de Estudos de Intervenção em Proteção Civil "é incompreensível" a decisão do Governo em criar uma equipa especializada - que junta magistrados, elementos da GNR, da Polícia Judiciária e peritos - para investigar as suspeitas de fogo posto. “É incompreensível como é que na análise da situação em presença se pode identificar a necessidade de uma terceira força para proceder à investigação desta tipologia de crime”, afirma Duarte Caldeira, sublinhando que “a PJ já é detentora de um conhecimento extraordinário deste domínio, e tem provas dadas ao longo dos últimos anos”.
Contudo, a novidade de incluir magistrados nesta nova equipa especial é vista como positiva por Paulo Lona, do SMMP, que identifica a necessidade de experiência dos procuradores nesta área que, aponta, “não tem sido muita porque este tipo de crimes estão associados a uma sazonalidade específica”. “Teoricamente faz sentido, porque permite a quem lá está uma formação específica nesta área”, argumenta.
Já entre criminalistas há a noção de uma “falta de sensibilidade por parte da magistratura na forma como aborda este tipo de questões”, aponta André Inácio, ex-inspetor da Polícia Judiciária e perito em Proteção Civil. “A magistratura tem vindo a falhar neste tipo de situações”, aponta, sublinhando que “muitas vezes são colocados indivíduos que podem vir a repetir o crime em liberdade enquanto aguardam por julgamento”. “Nestas circunstâncias, a magistratura tem ignorado a psicologia forense e os especialistas nestas matérias.”
Por outro lado, continua André Inácio, em grande parte dos incêndios que têm origem em fogo posto, "existem interesses económicos que é necessário investigar". "São aqueles que nomeadamente estão relacionados com a compra e venda de terrenos, mas também de madeireiros e de quem negoceia material de substituição na área de segurança." Aliados a isto, destaca o criminólogo, o fogo posto surge "por vezes relacionado também com vinganças pessoais". "Nestes casos, normalmente, há sempre um segundo elemento que é pago pelo primeiro para incendiar uma zona."
Para André Inácio é preciso “efetivar mais medidas de segurança para este tipo de indivíduos”, especialmente quando o país se encontra em situação de risco de incêndios. “Quando chega esta altura dos incêndios é preciso que as pessoas que estejam identificadas por este tipo de crimes estejam efetivamente detidas”, defende. Também o criminólogo João Rucha Pereira é da mesma opinião, destacando que “há muitos casos em que incendiários são tidos como suspeitos, mas ficam em liberdade”.