Primeiro-ministro revelou mais-valia em ações e acrescentou que mais valia não as ter vendido: teria duplicado o lucro. Quem investiu em ações do BCP conhece bem esta saga, de quem muito quis, quase tudo perdeu e depois recuperou. E, assim, nas declarações de Luís Montenegro encontra-se uma notícia política, uma história de poder e uma lição de investimento
“Eu vou-lhe contar isto porque um dia destes vai aparecer a notícia e assim fica antecipado já, pronto.” Pronto, e foi assim que o primeiro-ministro declarou na televisão o que declarará ao Fisco e à Entidade Para a Transparência: uma mais-valia de “cerca de 200 mil euros” em 2024.
Em causa estão ações do Millennium bcp, que Luís Montenegro tinha em carteira e de que se desfez no final de março do ano passado. “Eu decidi vender essas ações na semana anterior a ter tomado posse como primeiro-ministro. Vendi essas ações e tive até uma mais-valia muito significativa, que, aliás, vai constar na minha declaração de rendimento deste ano”, revelou Luís Montenegro na entrevista desta segunda-feira à TVI e à CNN Portugal.
E assim o rendimento do primeiro-ministro disparou no ano passado.
A notícia – o dinheiro que Montenegro ganhou em 2024
Esta é a notícia política, que antecipa assim o que, no atual contexto de verificação da vida patrimonial do primeiro-ministro, seria título quando a declaração de rendimentos de 2024 for pública. O rendimento de Luís Montenegro disparou em 2024.
Segundo as contas depositadas na Entidade para a Transparência, o então líder do PSD recebeu em 2023 rendimentos totais próximos dos 130 mil euros, de várias proveniências. Ora, em 2024, o agora primeiro-ministro terá tido de rendimentos de pelo menos 300 mil euros, um terço dos quais de trabalho (como líder do PSD até fim de março e como primeiro-ministro depois de abril) e dois terços de capitais (das ações do BCP). Os valores são brutos, estão sujeitos a impostos (ver todos os detalhes no fim deste texto)
Mas em 2024 houve alterações também no património, porque Montenegro já anunciou que comprou um apartamento em Lisboa e vendeu as ações do BCP. Ora, em 2023 o património líquido do então presidente do PSD estava avaliado em cerca de 1,15 milhões de euros. Vendendo as ações do BCP e comprando o imóvel, o património declarado terá ficado com um saldo final provavelmente inferior: o valor patrimonial da casa nova é próximo do valor patrimonial das ações vendidas, mas Montenegro terá reduzido o valor dos seus depósitos, recorrido a uma conta caucionada e usado uma outra conta da sua mulher (que não tinha sido declarada à Entidade para a Transparência).
Pelas informações avançadas, Luís Montenegro terá acabado o ano de 2024 com mais rendimento e menos património líquido (ativos menos passivos) do que em 2023.
O investimento – o dinheiro que Montenegro não ganhou em 2025
“Se eu tivesse mantido essas ações, elas já tinham valorizado mais três vezes”, desabafou o primeiro-ministro, depois de explicar que vendeu os títulos há um ano por “uma questão de transparência”. “Como primeiro-ministro, não devia ter ações de uma entidade cotada na bolsa”, disse.
Mais três vezes não valorizaram, mas duplicaram de valor. Na semana anterior à tomada de posse do Governo, as ações do BCP foram negociadas em torno dos 30 cêntimos, quando esta terça-feira cotavam nos 53 cêntimos – ou seja, mais quase 80%. O valor mais alto deste período registou-se a 26 de fevereiro, quando as ações atingiram os 59 cêntimos. Se, por hipótese, tivesse vendido nesse dia, Montenegro teria ganho possivelmente o dobro da mais-valia (para fazer a conta rigorosa, seria necessário saber o preço de conta), ou seja, 400 mil euros.
A história de poder: do BPA em 1998 ao BCP em 2025
Investir no BCP no último ano tem sido uma história de sucesso: uma valorização de 94% nos últimos 12 meses, como se pode ver no gráfico em cima. Uma valorização que reflete sobretudo lucros mais elevados. Muitos investidores bolsistas conhecem esta história, até porque o BCP é das companhias cotadas com mais transações em Portugal.
Investidores um pouco mais antigos conhecem ainda outra história: não foi só no último ano que as ações subiram: nos últimos cinco anos, as ações do BCP valorizaram 375%, beneficiando não apenas de melhores resultados mas também de uma estrutura acionista estável e de rácios sólidos.
Acontece que esta valorização dos últimos meses resulta, em grande parte, da destruição de valor dos anos anteriores. E é também sobre isso que Luís Montenegro falou.
“Em 1998, veja bem, eu ainda era solteiro e comprei umas ações do BPA, o Banco Português do Atlântico.” O BPA – que havia sido nacionalizado em 11 de março de 1975 e privatizado a partir de 1990 - acabou por ser palco de uma guerra de poder em 1994, que envolveu grupos económicos e o próprio Governo, então representado pelo ministro Eduardo Catroga. O BCP acabou por comprar o BPA.
“Na altura, tinha a expectativa de comprar um pequeno número de ações, aquilo foi um aumento de capital, eu tive de fazer um empréstimo de cinco anos para pagar essas ações, fui acumulando essas ações durante muito tempo, elas foram transformadas do BPA em BCP, andei com elas muito tempo até que um dia as vendi e vendi com uma mais-valia ainda razoável”, contou Montenegro. A asneira veio depois. Palavras dele.
“Mais tarde acabei por fazer uma asneira, que foi retomar a compra de ações do BCP.” Investidores mais antigos reconhecer-se-ão nestas palavras. Porque as cotações do BCP andaram de rastos durante anos, como se pode ver no seguinte gráfico.
Os gráficos mostram que, quanto mais ao perto se vê, maior a valorização; quanto mais ao longe, maior a perda.
“Tive esse investimento nos últimos dez, 12 anos”, contou Montenegro. “E foi um investimento muito sofrido, porquanto estive muito tempo em perda e, portanto, com investimento negativo, até que, num dos últimos aumentos de capital, decidi comprar o equivalente àquilo que já tinha e, portanto, tentar baixar o preço médio.”
A grande queda nas ações do BCP verificou-se depois do conturbado processo de sucessão de Jardim Gonçalves e da OPA hostil - e gorada - que a instituição lançou em 2006 sobre o BPI, depois da qual houve uma guerra pelo controlo do banco.
A lição para os investidores
É aqui que entra a lição de investimento. Explicado pelo próprio primeiro-ministro: à medida que se vai vendo uma ação desvalorizar, comprar mais ações dilui o preço médio da carteira de investimentos: “Eu estou-lhe a explicar isto porque é mesmo importante. Baixar o preço médio, no fundo, das aquisições para tentar recuperar a poupança que, entretanto, estava ali acumulada.”
Literacia financeira em direto pelo primeiro-ministro.
Notas: os rendimentos e o património do PM
As contas resumidas em cima do rendimento e do património de Luís Montenegro partem das suas declarações à Entidade para a Transparência.
Rendimentos de Montenegro em 2023:
- rendimentos de trabalho dependente – PSD: 48 457€
- rendimentos de trabalho dependente – Spinumviva: 4 800€
- rendimentos de trabalho independente – 2 500€
- rendimentos comerciais e industriais – 67 485 €
- outros rendimentos – 6 250 €
- rendimentos total – 129 492 €
Os rendimentos de 2024 não são ainda públicos. Mas, uma vez que Montenegro tomou posse como primeiro-ministro em abril do ano passado, é possível estimar os seus rendimentos.
É expectável que Montenegro tenha recebido de rendimentos de trabalho cerca de 11 mil euros do PSD (pelos primeiros três meses do ano), mais perto de 95 mil euros do Estado (por 11 meses como primeiro-ministro). Mesmo que não tenha havido nenhum outro rendimento comercial e industrial (e provavelmente houve), a venda de ações do BCP garantiu ao primeiro-ministro rendimentos de capitais de 200 mil euros, segundo o próprio avançou. Logo, os rendimentos totais de 2024 foram de pelo menos 300 mil euros, ou seja, mais do dobro do ano anterior.
Já quanto ao património, os dados aquando da entrega da última declaração eram os seguintes:
- imobiliário - valor patrimonial total de cerca de 800 mil euros
- carteira de títulos: 400 mil euros
- aplicações financeiros 9 700 euros
- contas à ordem – 44 mil euros
- dívidas – 100 mil euros ao BCP
- dois automóveis antigos – sem valor declarado
- Património líquido total: cerca de 1,15 milhões euros
Refira-se que o valor patrimonial dos imóveis é tipicamente inferior ao valor de mercado.