“O meu pai passou a ser ‘o militante do Chega que morreu às mãos de um gangue’”. Mas não havia gangue. Não havia negros

25 fev 2023, 22:00
Emergência

O pai de Hugo foi declarado morto dia 19 de julho de 2022, após ficar gravemente ferido numa discussão com um jovem num jardim. A tragédia familiar que estava a viver tornou-se um caso nacional quando foi referida no Parlamento por Pedro Pinto, líder parlamentar do Chega. O partido do qual o pai de Hugo era militante

“O líder parlamentar do partido, disse na sua intervenção no debate do Estado da Nação que o meu pai tinha sido morto por um gangue que ainda estava à solta; algo que eu sabia ser mentira”, afirma Hugo Lourenço à CNN Portugal. O pai tinha sido declarado morto dia 19 de julho e a tragédia que a família estava a viver, ganhou eco nacional no dia seguinte. As mentiras “disseminadas” tornaram o momento “ainda mais insuportável”.

Nesse mesmo dia, 20 de julho, fez uma publicação no Facebook. Era o desabafo de quem sofria pela perda e pelas mentiras que ouvia: “Escrevi-a por dois grandes motivos: por dever moral - movido pelo compromisso para com a verdade - e porque a disseminação de mentiras relacionadas com a morte trágica do meu pai se estava a tornar insuportável”.

Ainda não passou um ano, mas Hugo sente-se pronto para falar sobre o assunto e mostrar a sua indignação perante tudo o que aconteceu. No dia 17 de julho à noite, o pai saiu de casa para passear o cão num jardim perto de casa. Uma rotina habitual. 

Um grupo de jovens praticava skate no jardim. O barulho que estariam a fazer levou o pai de Hugo a chamá-los à atenção. Das palavras, ao contacto físico com um dos jovens, tudo aconteceu rápido. Um forte empurrão, ou um murro, levou Eduardo Lourenço ao chão. Bateu de forma violenta com a cabeça no chão e ficou com lesões graves. Dia 19 de julho à noite, Hugo viu ser declarada a morte do pai. 

Eduardo, de 65 anos, era militante do Chega, mas era primeiro marido e pai. No dia 20 de julho, a tragédia familiar que estava a viver tornou-se um caso nacional.

“A morte do meu pai foi declarada no dia 19 e logo o Chega tratou de a difundir pelas suas redes sociais, num texto que, entretanto, veio a ser alterado, por não corresponder ao que realmente havia acontecido. No dia 20, Pedro Pinto, o líder parlamentar do partido, disse na sua intervenção no debate do Estado da Nação que o meu pai tinha sido morto por um gangue que ainda estava à solta; algo que eu sabia ser mentira”.

“Como se tal não bastasse, eu notava, quer em Odivelas, na comunidade, quer nas redes sociais, que muita gente, além de partilhar e acreditar nestas versões falsas, ainda acrescentava pontos à história, como o meu pai ter sido espancado e deixado ao abandono ou que os atacantes eram negros”. 

“Mais tarde, pesquisei o conteúdo dessa mensagem e percebi que ela estava a ser disseminada por outras redes sociais, como o Facebook e o Telegram, e consegui encontrá-la em locais associados à extrema-direita”. Hugo, com 30 anos de idade, encontrou muitas e guardou-as como prova das mentiras escritas.

“Nós sabíamos que não tinha sido um ataque de um grupo ou de um ‘gangue’"

As testemunhas do incidente, os amigos que acorreram ao local e o próprio agressor. Não havia gangue, não havia negros. Não só o agressor não abandonou de imediato o local, como se entregou nessa madrugada às autoridades.

“Nós sabíamos que não tinha sido um ataque de um grupo ou de um ‘gangue’, citando o deputado Pedro Pinto e as mensagens que foram disseminadas, e que havia um só agressor, que tinha agido no decorrer de uma discussão que se descontrolou e na qual a violência escalou rapidamente. Nós sabíamos que o agressor não era negro, mas sim branco. Mais ainda, sabíamos que ele já se tinha entregado à própria polícia e confessado, ainda antes da declaração do líder parlamentar, Pedro Pinto”. 

A politização do caso afetou-os a todos: “Eu e a minha família tivemos de lidar não só com a dureza de um luto de uma morte que havia ocorrido naquelas circunstâncias e com o grafismo das imagens que vimos naquela noite - eu próprio ainda estive presente no jardim antes de o meu pai ser transportado para o hospital -, como também tivemos de enfrentar toda aquela campanha de desinformação que, repetidamente, nos colocou em situações, no mínimo, desconfortáveis”.

Momentos que Hugo assume que dificilmente esquecerá. “Recordo-me de um amigo do meu pai, que logo após me dar as suas condolências, me perguntou se era verdade o que se andava a dizer, se quem tinha matado o meu pai era negro”. “O dia 20 de julho foi um dos dias mais complicados por que já passei, não só por ser o dia imediatamente após a morte do meu pai ter sido declarada, e tudo o que isso significa por si só, tudo o que já tinha para processar, em termos emocionais, como por ser o dia em que o meu pai passou a ser ‘o militante do Chega que morreu às mãos de um gangue’”. 

"Eu senti-me desrespeitado pelo Chega e pelos seus representantes”

“Mesmo após a minha publicação no Facebook, mesmo após o partido Chega ter alterado as mensagens que escreveu sobre a morte do meu pai nas redes sociais, soube que na Folha Nacional do dia 23 de julho a morte do meu pai voltou a ser referida como um ataque de um grupo. E mais, aí, surge uma citação atribuída a André Ventura, afirmando que tem de ser averiguado se o que aconteceu ao meu pai fora por motivação política, fomentando novamente uma especulação desnecessária, já que, tanto quanto sei, nunca sequer foi uma possibilidade real que a agressão que o vitimou possa ter ocorrido por razões políticas”, recorda.

Sendo impossível “controlar o que os cidadãos comuns e anónimos fazem nas redes sociais, há pessoas cujas responsabilidades das suas funções exigem outro tipo de comportamento e decoro. É inexplicável como é que um deputado de um partido tem declarações como as do Pedro Pinto. Declarações que, a meu ver, desrespeitam a memória de alguém que era militante do próprio partido. E, claro, desrespeitam a sua família. Senti-me desrespeitado pelo Chega e pelos seus representantes”.

Os meses passaram e Hugo continua a sentir que “foi feita uma tentativa de instrumentalização da morte do pai, quer pelo Chega, quer pela extrema-direita em geral, procurando o aproveitamento político de uma tragédia. Tentou-se colar esta tragédia a motivações políticas e raciais, quando, quem esteve perto do acontecimento e o viveu, sempre soube que nunca estiveram em causa. Usou-se a morte de um homem para tentar propagar o ódio, algo que não posso aceitar”. Não pode aceitar porque era o seu pai, não pode aceitar porque foram ditas mentiras.

Lamenta mesmo que não tenham percebido a consequência das suas palavras e das suas ações: “No seguimento de toda esta desinformação e especulação desnecessária, nenhum membro da minha família foi contactado pelo Chega, com o pedido de desculpas que a seriedade das ações dos seus representantes exigia”. 

"Um crime de ofensa à integridade física grave agravada pelo resultado"

Naqueles dias tomaram decisões difíceis: “Um episódio que demonstra de um modo muito claro o quão eu e a minha mãe ficámos afetados pelas ações do Chega, diz respeito ao velório. Eu e a minha mãe, em concordância, decidimos que ele tivesse lugar fora da nossa localidade e que durasse o menos tempo possível, por receio de que militantes do partido pudessem aparecer sem que fossem bem-vindos e que a tentativa de capitalização da tragédia pudesse continuar”.

Admite mesmo que foram “bastante cuidadosos com quem falámos sobre o assunto e, invariavelmente, todo este cuidado, fundamentado no medo, fez com que pudéssemos prejudicar familiares mais distantes e amigos que poderiam querer ter estado presentes e, assim, não tiveram oportunidade”.

Na verdade, todo o processo de luto que viveram foi, e muito, afetado, por fatores externos à família. “Prejudicámo-nos também a nós e ao nosso processo de luto. Ou fomos prejudicados, devido a todo o alvoroço que na altura se fez à volta da situação”.

Espera, por isso, que perante novas tragédias, líderes políticos pensem duas vezes antes de falarem sobre a morte de militantes dos partidos.

Nos últimos meses, a investigação das autoridades foi concluída e já existe uma acusação a que a CNN Portugal teve acesso. O arguido, que se entregou às autoridades na madrugada dos factos, está acusado de "um crime de ofensa à integridade física grave, agravada pelo resultado". As suspeitas relativas à omissão de auxílio foram arquivadas. E não há nenhum crime de homicídio.

A CNN Portugal enviou algumas questões à assessora do grupo parlamentar do Chega, para que fossem colocadas ao deputado Pedro Pinto, mas até ao momento não obteve nenhuma resposta.

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