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Jornalista

Discursos de ódio, populismos & picardias avulsas

3 nov, 15:17

O abandono do estúdio do socialista Prata Roque num recente debate televisivo foi uma atitude enérgica contra as forças fascistas ou uma reação mimada e extemporânea de alguém que não aguentou ser questionado, mais ainda porque é professor universitário de Direito Constitucional? Um debate na TV deve terminar se um dos seus três participantes se vai embora? Os cartazes do Chega que visam emigrantes do Bangladesh e ciganos são xenófobos e devem ser proibidos ou são apenas propaganda política extremada que já vimos muitas vezes nas ruas, com origem na esquerda e na direita, desde o 25 de Abril de 1974?

Deve-se tentar proibir a existência de um partido político nos tribunais ou combater democraticamente as suas ideias deixando à cabeça de cada um o que pensar e fazer? É normal exigir a um partido político tudo, até cadastros puros e atestados de boa educação e bom senso e a outros não? Será que várias vezes não confundimos o que são discursos de ódio e populismos com o nosso umbigo político, económico e social? E será que não usamos estes epítetos como armas de arremesso para lidar com ideias de que discordamos?

Sinceramente, são interrogações que tenho, seja quando se colocam grandes temas sociais ou simples picardias políticas que enchem as redes sociais e os estúdios de televisão durante algumas horas. O senso comum diz-me que o mundo não existe a preto e branco, como muitos nos querem fazer querer quando esgrimem argumentos que insistem ser definitivos e inquestionáveis. De novo, o senso comum diz-me que o contraditório, mais ou menos extremado, tem o condão de funcionar como a possibilidade de chegarmos a novas ideias, a novos saberes, até de percebermos formas diferentes de ver o mesmo acontecimento ou facto. Porque o mundo – até o nosso pequeno mundo cheio de particularidades individuais ou grupais – tem sempre uma enorme dose de cinzento, sobretudo quando somos obrigados ou optamos por deixar a bolha inquestionável dos grandes princípios da política, da economia, da justiça ou de qualquer outra área e entramos na vida do dia a dia. A nossa vida em particular, ou a vida de uma sociedade como um todo.

É evidente que se pode e deve saber o que dizem os manuais sobre conceitos como democracia e populismo. Mas temos de sentir que o primeiro só se cumpre verdadeiramente quando vemos em todo o seu esplendor a liberdade de expressão (até para dizer e ouvir o que julgamos ser as maiores barbaridades), a separação de poderes e os contrapesos de fiscalização política e social, a justiça social e sobretudo a possibilidade de qualquer cidadão progredir no elevador social através da educação e do trabalho.

Quanto ao populismo, torna-se mais difícil a sua definição no dia a dia, mesmo quando os compêndios nos lembram que se trata de uma estratégia usada normalmente por líderes carismáticos para juntarem as massas à sua volta, com o recurso à demagogia e a condimentos como o nacionalismo. Na prática, o populismo recorre amiúde ao que já referi antes:  uma divisão a preto e branco da sociedade, separando-a em grandes grupos antagonistas com doses cavalares de moralidade à mistura que não são sequer sempre claras: o grupo da maioria, dos puros e dos trabalhadores e os outros, os privilegiados ou as elites corruptas. Por isso, o populismo não morre de amores pelos direitos das minorias, pela divisão de poderes ou até pela liberdade de Imprensa. É um movimento que ataca, pela esquerda, as grandes corporações e os ricos (seja isso o que for) e as forças da globalização neoliberal, e pela direita, os direitos étnicos e religiosos. E é tudo isto que é normalmente usado para justificar os males de uma sociedade, apontando os culpados que se julgam óbvios, sobretudo em momentos de crise económica e social.

Um dos problemas desta “visão científica” do populismo é que o conceito pode ganhar asas e ser utilizado também para desqualificar pessoas, movimentos e partidos que colocam em cima da mesa anseios legítimos de faixas importantes da população. Hoje, todos os dias, temos sempre alguém nas televisões ou nas redes sociais a acusar este ou aquele de ser populista (e também de promover o discurso de ódio ou de ser fascista, porque estes qualificativos tornaram-se moda ou vulgarizaram-se como antes tinha sucedido com epítetos como reacionário). Mas quando as palavras se transformam em simples armas de arremesso para excluir ou diabolizar a outra parte, estamos perante um grande problema, qualquer que seja o lado da barricada onde nos encontramos.

Se atentarmos na história e nos grandes desenvolvimentos sociais, é hoje óbvio que a palavra populismo como arma de arremesso poderia ter sido usada também contra os grandes movimentos sociais da Humanidade, aqueles que mexeram nas condições de vida dos trabalhadores, das mulheres, nos direitos das crianças, na ecologia e até na democracia como a temos felizmente agora. Por isso, há que desconfiar quando vemos comentadores petrificados ou políticos do sistema a apontarem o dedo a outros que irrompem com estrondo no espaço mediático e social. A primeira questão que estes apontadores de serviço levantam é sempre a questão da forma como é feita a defesa das ideias de quem lhes disputa o palco político, social, económico ou mediático. Se são diferentes ou mais radicais são sempre populistas, se não são controláveis pelos aparelhos já existentes, são populistas, se atentam contra a divisão tradicional de forças, são populistas.

Vemos isso hoje todos os dias. Tudo o que André Ventura e os seus apaniguados dizem ou fazem é classificado como populista (na melhor das hipóteses), mas e o que dizer das tonterias perigosas de Rui Rio para domesticar o Ministério Público ou dos dislates de Augusto Santos Silva que já defendeu o controle das redes sociais e a classificação da Imprensa como boa ou má?

Fora da bolha mediática, o que muitos estranham é a normalização que se faz de uns (pessoas, partidos políticos inteiros ou de medidas avulso) e o contraponto que é a desqualificação imediata de tudo o que vem de outros que já são a segunda força política nacional. Muitos comentadores – com preferências ideológicas que os cegam tantas vezes – só vislumbram coisas odiosas num certo partido. Desqualificam os quadros e militantes como se fossem uma espécie de selvagens iletrados, outros abominam que estejam a tentar cativar políticos de vários quadrantes (PS, PSD, BE e outros nunca o fizeram, certo?!).

Dentro da bolha dos interesses convenientes, as propostas do Chega são inevitavelmente vistas como populistas ou fascistas se tocarem no controlo da imigração e da subsidiodependência, no enaltecimento do patriotismo, no combate à corrupção, no questionar das políticas de género, na perceção da subida da criminalidade e no aumento das penas de prisão, na exaltação dos antigos combatentes, militares e polícias. A exigência é tal que, dentro da bolha, não se critica com a mesma veemência quem politicamente exige a reversão das privatizações “por nacionalização e/ou negociação adequada”. Também se esquece quem não hesita em bater-se pela dissolução da NATO, a saída da UE a prazo, o controlo da banca ou a venda da CGD, a regulação dos preços dos alimentos, dos combustíveis e da habitação, as reformas antecipadas sem penalizações, os medicamentos gratuitos para todos, o fim das portagens nas Scuts ou a exigência de que os lucros da banca devem suportar o aumento das taxas de juro.

Ou quando se defende que os salários mínimos devem variar de município para município, o fim das propinas e dos exames até no acesso à universidade, a nacionalização de certos grupos de media, a proibição de tradições como as touradas, os pagamentos a médicos e outras classes profissionais para se instalarem no Interior (e num País com o tamanho que tem), os subsídios para animais de companhia e uma rede pública de hospitais veterinários. Sim, exige-se ao Chega responsabilidade económica, social e política que não encontra paralelo nos critérios aplicados a outros partidos.

Ao longo dos anos temos centenas de ilustres militantes, autarcas, membros de governos e até um antigo primeiro-ministro a contas com a Justiça por um sem número de crimes. Temos partidos que sempre quiseram controlar a comunicação social pública e privada, até estrangulando financeiramente jornais e televisões, promoveram o afastamento de jornalistas incómodos e projetaram na sombra órgãos de informação amigos de uma certa forma de ver o poder e de quem o deve exercer.

Temos hoje partidos a conciliarem-se para continuarem a controlar instituições como a Provedoria de Justiça, o Tribunal Constitucional e a fiscalização dos serviços de informações. E temos sempre os mesmos partidos a ditarem regras quando foram responsáveis por bancarrotas periódicas, pela escola pública sem professores, pelo flagelo da corrupção, pela saúde pública que trata as pessoas como animais. E o problema é só o Chega e aquilo que representa?! Há não muito tempo, num dos congressos do partido de extrema-direita, foi colocado um cartaz (esse, sim, deveria inquietar muita gente) que resumia na perfeição a sua existência e crescimento  – “Porque outros não fazem o seu trabalho”.

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