Por detrás da fachada de tijolo vermelho e dos frisos de mármore da Galeria Nacional da Dinamarca, os visitantes podem agora ver quase todas as esculturas existentes de Miguel Ângelo - a exposição “mais completa” da sua obra escultórica em 150 anos, segundo a instituição - e a mais de 1.000 quilómetros de distância do local onde a maioria das obras do artista renascentista podem ser normalmente vistas.
Mas para consegui-lo, o museu não transportou o "David" - com mais de dois metros de altura - da Galleria dell'Accademia em Florença, ou a figura inacabada intitulada “O Génio da Vitória” que se encontra nas proximidades no Palazzo Vecchio. Em vez disso, “Michelangelo Imperfect”, patente no SMK (abreviatura de Statens Museum for Kunst), tem cerca de 40 reproduções, incluindo um novo conjunto de cópias impressas em 3D, feitas para a exposição pelo estúdio Factum Arte, com sede em Madrid.
A exposição inclui uma versão em bronze do “David” do século XIX, moldes em gesso das quatro famosas figuras alegóricas que se encontram nos túmulos da Capela dos Médicis e esculturas impressas em 3D do túmulo inacabado do Papa Júlio II. Embora não seja a primeira vez que uma escultura de Miguel Ângelo é impressa em 3D - a Universidade de Florença apresentou uma réplica do "David" feita de resina acrílica na Expo Dubai 2020 - desta vez, a tecnologia foi utilizada para ajudar a reunir quase todas as obras escultóricas do artista num único local.
A exposição também apresenta obras originais do artista italiano, incluindo 20 desenhos e um grupo de maquetas - modelos preliminares em cera e barro.
“É um pouco uma experiência”, diz Matthias Wivel, o curador da exposição, numa videochamada com a CNN. “É uma exposição que consiste maioritariamente em reproduções”. Hoje em dia, acrescenta, “não é algo que se veja com muita frequência”.
Michelangelo Buonarroti (também conhecido como Miguel Ângelo), o escultor, pintor e desenhador dos séculos XV e XVI que se tornou um dos artistas mais famosos de todos os tempos, é conhecido pelo dinamismo e pelas qualidades emocionais das suas esculturas. Estas torcem-se e giram no espaço, tensionam os músculos ou mantêm poses aparentemente precárias, apesar de serem executadas em mármore branco e sólido de Carrara.
No estúdio da Factum Arte, a equipa não se limitou a imprimir em 3D cada objeto, mas utilizou uma mistura de técnicas novas e tradicionais. O processo envolveu o registo de cada obra com fotogrametria e digitalização Lidar para criar um “gémeo” digital. Primeiro, cada obra foi impressa em resina, à semelhança da réplica do “David” exposta no Dubai. Depois, foram criados moldes de silicone a partir das formas impressas, que foram cobertos com um composto de mármore para se aproximarem do material original do artista; e, por fim, as esculturas foram finalizadas manualmente.
“O nosso objetivo é, no contexto de uma exposição, tornar as obras de arte visualmente idênticas”, afirma o fundador da Factum Arte, Adam Lowe, numa videochamada com a CNN. “É possível distinguir as diferenças se lhes tocarmos porque a temperatura do mármore não é exatamente a mesma.”
Criar gémeos
Mas porquê expor réplicas? E, ainda que se sejam de facto praticamente indistinguíveis a olho nu (embora um pouco mais quentes ao toque), serão suficientemente Miguel Ângelo?
Hoje em dia, talvez não atribuamos muito valor às reproduções, mas no século XIX, as versões em gesso de esculturas famosas eram as estrelas de muitos museus. Instituições como o Art Institute of Chicago começaram as suas coleções com moldes de gesso, e a oficina de moldes de gesso do Louvre, criada em 1794, ainda hoje está ativa. Os turistas que visitaram Florença já devem ter encontrado uma cópia de gesso do “David” de Miguel Ângelo na sua localização original, ao ar livre, na Piazza della Signoria, mas também foram erigidas em Londres e Moscovo, enquanto as versões em bronze também podem ser encontradas noutros países. Muitas delas foram produzidas pouco depois da maior exposição de Miguel Ângelo na altura, que teve lugar em Florença em 1875 para assinalar o 400º aniversário do seu nascimento, e que incluía uma mistura de esculturas originais e novas cópias em gesso, recorda o curador Matthias Wivel.
Mas as reproduções acabaram por cair em desuso e, eventualmente, foram retiradas das exposições, fechadas em armazéns ou destruídas. Em 2004, o Metropolitan Museum of Art doou a sua coleção, outrora preciosa, ao Institute of Classical Architecture & Art. Antes disso, tinham passado muito tempo abandonadas em armazéns com “infiltrações”, informava o The New York Times em 1987.
“Foi uma forma de reunir e tornar acessíveis obras de arte que não estavam disponíveis para o público em geral, ou porque estavam longe ou porque não era possível vê-las juntas”, explica Matthias Wivel. “No século XX começou uma espécie de fetichismo da autenticidade em torno de objetos originais.” Na verdade, acrescenta, toda a base da arte ocidental teria sido diferente sem as reproduções, uma vez que existem muito poucas esculturas originais da Grécia Antiga; a grande maioria do nosso conhecimento do período provém de cópias romanas.
Uma exposição “impossível”
A extensa coleção de moldes de gesso da SMK já incluía 27 das cerca de 45 esculturas existentes de Miguel Ângelo, o que a tornava uma instituição ideal para acolher a exposição, observa Matthias Wivel. Foi também possível transferir o molde de bronze do “David” de 1896 - normalmente exposto no exterior, na zona portuária de Copenhaga - para o interior, tornando-a uma “peça central” da exposição. “Pensei que seria provavelmente impossível, mas aconteceu”, diz Wivel sobre a mudança da escultura para o interior.
Uma exposição desta magnitude é “algo que só se pode fazer com réplicas”, afirma o curador. “É possível ter uma experiência mais rica dele como escultor vendo as obras desta forma”.
Para ver a diversidade das esculturas de Miguel Ângelo, seria necessário atravessar a Itália e fazer paragens adicionais em cidades de outros países, incluindo Bruges, Londres, Nova Iorque e Paris. A maioria não se pode mover e algumas estão atrás de vidros à prova de bala, como a “Pietà” na Basílica de S. Pedro em Roma, ou colocadas no alto de nichos de catedrais, como quatro santos menos conhecidos que esculpiu para uma capela de Siena e que até agora nunca foram reproduzidos. Na SMK, os visitantes terão uma intimidade sem precedentes com quase toda a sua produção escultórica - embora não toda, uma vez que algumas instituições não autorizaram a realização de cópias, incluindo de dois dos quatro prisioneiros nus inacabados que Miguel Ângelo esculpiu para o túmulo do Papa Júlio II (esses ícones em falta são “a grande frustração da exposição”, lamenta Wivel).
Mas todas as instituições que emprestaram as obras serão proprietárias das imagens e dos dados registados pela Factum Arte, que - como se explica na exposição - podem ser preciosos para os esforços de conservação. Uma das réplicas mais trabalhosas que foi feita foi a reconstrução da primeira escultura de Miguel Ângelo de São João Batista em criança, de 1495-96, que se encontrava na capela de El Salvador em Úbeda, mas que foi destruída durante a Guerra Civil Espanhola. Os conservadores levaram 19 anos a restaurar a obra, que voltou a ser exposta em 2015, mas a Factum Arte procurou melhorá-la digitalizando, imprimindo e fundindo cada um dos fragmentos antes de voltar a montá-la. “Passámos dois anos e meio a trabalhar na reconstrução para voltar a colocar os fragmentos como poderiam ter sido”, explica Adam Lowe.
Até ao pormenor
Os dados da Factum Arte fornecem informações valiosas às instituições, acrescenta Matthias Wivel. "A sua precisão vai até ao nível do mícron. E isso será muito útil, no futuro, para tratamentos de conservação. É possível consultar o passado e ver como era na altura, especialmente se estiver danificado".
As digitalizações são feitas a cerca de 50 centímetros de distância das obras e “captam até às mais pequenas marcas na superfície”, explica Adam Lowe - mesmo sujidade e poeira, o que pode ser um desafio, uma vez que é lida como volume extra ou ruído no modelo digital.
As digitalizações têm as suas limitações se partes das esculturas forem inacessíveis, como as costas de algumas obras que estão colocadas em nichos de capelas. Mas o material e os pormenores da superfície imitam o mármore de uma forma que o gesso não consegue, sublinha Adam Lowe, desde os veios do mármore que são meticulosamente adicionados para corresponder às obras originais, até à sujidade e às fissuras que são criadas para corresponder à textura e ao estado de conservação da obra original.
Nos vídeos do atelier realizados pela Factum Arte, as peças monumentais da escultura são vistas em conjunto, à medida que ganham vida, ao longo de meses e anos. Passar esse tempo com cada obra pode alterar profundamente a impressão que se tem delas, diz Sol Costales Doulton, gestora de projetos do atelier, que supervisionou a realização das cópias.
“A forma como percebemos estas peças muda completamente”, explica na videochamada com Adam Lowe. “O Génio da Vitória” foi um dos objetos que começou subtilmente a “transformar-se” à medida que Sol Costales Doulton passava mais tempo com ele. "Toda a gente o via como uma beleza bastante desapaixonada, desapegada e idolatrada. Mas, quando começamos a olhar para ele, começa a ganhar profundidade e, na verdade, tem algo de misterioso e profundo, como se algo o estivesse a chamar por cima do ombro", explica. “Assim, a carga psicológica que a escultura exprime é totalmente diferente quando se tem a oportunidade de estar com ela e ouvir o que está a dizer.”
Ainda que não seja o mesmo, Sol Costales Doulton encoraja os visitantes a aproveitarem a oportunidade de ver todas estas obras numa só exposição para se sentarem e passarem realmente tempo com elas.