Têm ordem de saída mas ficam. Para já. O que podem fazer, o que não podem e o que vem a seguir no caso dos migrantes que chegaram de Marrocos em agosto, num barco de madeira
Depois de 60 dias em Centros de Instalação Temporária, os 33 migrantes que chegaram por mar a Vila do Bispo no dia 8 de agosto foram libertados esta segunda-feira e colocados pela Segurança Social em pensões.
A reação política chegou depressa, com o Governo a falar em incapacidade do sistema para afastar “com celeridade e eficácia” estes migrantes. O que está em causa, do ponto de vista jurídico, é mais simples do que parece e começa no mecanismo administrativo que o Estado aciona quando alguém entra sem estar em situação regular: há uma decisão de afastamento em 24 horas, os visados impugnam, o tribunal aprecia e, se ao fim de 60 dias não houver fundamento para manter a privação de liberdade, as pessoas saem. A partir daqui, a circulação dentro de Portugal é possível. Sair do país não é.
Joana Alves de Oliveira, advogada especializada em migrações e direitos de migrantes, descreve o trilho legal. Diz que “o Estado português resulta da lei” e que “o que acontece nestes casos é um ato administrativo - a decisão de afastamento”. Explica que “as pessoas impugnam essa decisão e a apreciação pode demorar”. E sublinha o ponto decisivo desta fase: “Quando apenas estiver em causa matéria de direito administrativo - e não crime -, cessa a obrigação de permanecer nos centros e depois nas pensões. Podem circular livremente dentro do território nacional, isso é algo muito claro.” Joana Alves de Oliveira é clara também nisto: só dentro de fronteiras. “Aquilo que não podem é sair do território nacional. Se atravessarem a fronteira, para Espanha, por exemplo, continuam em situação irregular, só que sob jurisdição de outro país.”
O andamento do processo não congela por si só com o recurso. A impugnação, sozinha, não suspende. A lei dá, no entanto, instrumentos para pedir tempo a quem está a ser afastado. “O que estas pessoas tentam fazer agora é regularizar a situação”, diz a advogada. Uma via é requerer providência cautelar com efeito suspensivo. Outra é o pedido de proteção internacional. “Se eu disser que quero pedir o estatuto de refugiado, esse pedido interrompe logo a cadeia do afastamento.” A origem marroquina não impede a análise. “Pode haver refugiados marroquinos. A Convenção de Genebra não olha para os países de origem. Distingue sim entre quem migra por razões económicas sem documentos e quem é perseguido por motivos políticos, ideológicos, de raça, sexo ou orientação sexual — que pode ser aqui a situação. Portugal é signatário e tem obrigações.”
Quanto a uma nota do Ministério da Administração Interna que coloca a tónica na “incapacidade” para executar afastamentos depressa, a leitura jurídica de Joana Alves de Oliveira é direta. “O Governo tem tido uma leitura que ignora os mecanismos jurídicos e as suas obrigações internacionais.” E endurece o discurso: “Não se pode lamentar de nada, não se pode lamentar de que não consegue afastar com celeridade e eficácia e, ao mesmo tempo, dizer que cumpre o direito internacional público. Ou cumpre e então não faz esse tipo de comentário ou assume que não quer cumprir e pede para sair das convenções e dos tratados.” Fica assim traçada a fronteira entre gestão política do fenómeno e o quadro normativo que vincula o Estado.
Estão assim libertados os 33 migrantes que tinham chegado a 8 de agosto à praia da Boca do Rio, em Burgau, concelho de Vila do Bispo, Algarve, numa embarcação de madeira. Porque, cumprido o limite legal de 60 dias em Centros de Instalação Temporária, a libertação tornou-se obrigatória — mantendo-se o processo de afastamento em curso. O tribunal já tinha decidido a expulsão para o país de origem, mas a generalidade dos migrantes recorreu. Apenas um não o fez e regressou de imediato a Marrocos.
Depois da saída dos centros, os adultos foram instalados em pensões em São Pedro do Sul e em Portimão, sob tutela da Segurança Social, enquanto quatro menores ficaram igualmente acolhidos pela Segurança Social.
Em reação, o Governo apontou a “pesada herança” (socialista) de uma “política de imigração desregulada” e elencou respostas em marcha, como a transferência de funções da AIMA para a Unidade Nacional de Estrangeiros e Fronteiras da PSP, o financiamento de dois novos centros de instalação e uma tentativa de alteração legislativa, que foi chumbada no Parlamento no final de 2024. O processo segue agora no plano judicial: os recursos serão apreciados, podem ser pedidas providências cautelares que suspendam o afastamento e são possíveis pedidos de asilo que travam a execução enquanto avaliados. Até decisão diferente, a regra é clara — circulação possível em território nacional, impossibilidade de saída legal de Portugal.
Pelo menos 140 migrantes desembarcaram na costa do Algarve ao longo dos últimos seis anos.