Em Portugal para apresentar o seu mais recente livro, "Dia", o autor norte-americano recorda como ficou "paralisado" durante a pandemia de covid-19 e como esses dias o lembraram de outra pandemia que também viveu, a da Sida, nos anos 80
Durante a pandemia de covid-19, Michael Cunningham publicava todos os dias no Instagram uma foto do céu visto da sua janela. "Era uma maneira de assinalar como o céu estava diferente em dias que pareciam todos muito iguais", recorda o escritor norte-americano. Nesses longos dias de confinamento, sentiu-se "atordoado". "Estava só ocupado em sobreviver", conta à CNN Portugal. "Conheço pessoas que escreveram dois romances, aprenderam francês, fizeram várias coisas, eu fiquei paralisado. Lia o jornal, lia livros, mas não consegui produzir nada."
Só quando apareceu a vacina e esta começou a ser aplicada é que, aos poucos, conseguiu começar a pensar num novo livro. "Porque foi aí que começou a parecer que alguns de nós, não todos, sobreviveríamos", explica. O pior já tinha passado. "Houve um período em que parecia impossível escrever qualquer romance, porque um romance é uma projeção para o futuro. Se temos muitas dúvidas de que haja um futuro, para que iria escrever um romance? Não haveria um objetivo nisso."
Na altura, antes da pandemia, tinha um livro começado e planeado. "Tive de abandoná-lo. Parecia impossível escrever um romance contemporâneo como se o vírus não estivesse lá. Não havia lugar no mundo onde esse livro pudesse existir. Não havia um local no mundo que não tivesse sido afetado pela pandemia." Quando voltou à escrita, começou um livro novo. Esse livro, é "Dia", que acabou de chegar às livrarias portuguesas pelas mãos da editora Gradiva.
Cunningham, atualmente com 71 anos, autor do best seller "As Horas" (1998), mas também de outros livros, como "Sangue do Meu Sangue", "Uma Casa no Fim do Mundo", "Ao Cair da Noite" e "Dias Exemplares", esteve em Lisboa nestes últimos dias a participar em várias apresentações de "Dia", a última das quais este domingo, na Feira do Livro de Lisboa, seguida de sessão de autógrafos.
"Dia" acontece num único dia, 5 de abril, mas ao longo de três anos: de manhã, em 2019; à tarde, em 2020 (durante o confinamento); à noite, em 2021. Acompanhamos assim a vida de uma família: o casal Isabel e Dan e os seus filhos Nathan e Violet; Robbie, irmão de Isabel; Garth, irmão de Dan, com Chass e o bebé de ambos, Odin.
A pandemia de covid-19 – referida, mas nunca nomeada - está muito presente na segunda parte, obviamente, e também ainda na terceira, onde se sentem os seus efeitos. No entanto, Cunningham deixa muito claro que este "é um livro sobre seres humanos, não sobre o vírus. Queria falar das pessoas na pandemia, mais do que sobre a pandemia".
Aqui temos, portanto, uma família como todas as outras: uma mulher que se senta nas escadas e se questiona se esta é realmente a vida que sonhou; um homem de meia-idade que tem saudades do jovem rockeiro que foi; um adolescente que só quer ser deixado em paz; uma menina que só quer ser amada por todos; um tio gay que é um elemento essencial da família, mas que, ainda assim, sente que não tem lugar ali; um casal que não é um casal a braços com um bebé. As tensões e os problemas intensificam-se quando todos são forçados a ficar em casa por causa do vírus. A pandemia serviu como lente de aumentar para tudo o que já parecia correr mal.
Nunca quis escrever um livro sobre a pandemia, não é disso que se trata. Eu não quereria ler um livro sobre a pandemia. É sobre pessoas. É sobre família. É sobre pessoas que, na sua maioria, estão a sobreviver a esse terrível acontecimento pelo qual o mundo inteiro passou"
"O surgimento das personagens é um pouco misterioso, mas eu pensei quem é que é interessante agora? Quem é que sentiu mais este confinamento? E pensei imediatamente nos pais e nos filhos. Se para mim foi difícil, para as pessoas que têm filhos terá sido ainda mais difícil", explica Michael Cunningham. A mãe com uma empresa em banho-maria - e ainda sentada nas escadas, o único sítio onde consegue estar sozinha e pensar na vida - o pai com o comeback musical indefinidamente adiado, o adolescente a escapar às aulas online para se perder em videojogos, a menina assustada a fechar todas as janelas para impedir a entrada do vírus, o tio retido na Islândia, numa viagem que deveria ter durado umas semanas e acabou por se prolongar; um bebé levado à janela para que o pai o veja, ao longe. Lembramo-nos bem como foi. Podíamos ser nós. Fechados. Isolados. Assoberbados.
"Nunca quis escrever um livro sobre a pandemia, não é disso que se trata. Eu não quereria ler um livro sobre a pandemia. É sobre pessoas. É sobre família. É sobre pessoas que, na sua maioria, estão a sobreviver a esse terrível acontecimento pelo qual o mundo inteiro passou", explica Cunningham. "As pessoas tinham muito medo, medo da doença, medo da morte. E ninguém sabia muito bem como é que se podia apanhar, então tínhamos medo até de abrir o nosso correio, desinfetávamos as compras. Fez-me lembrar os primeiros tempos da Sida, também foi assim, ninguém tinha a certeza de nada e, portanto, tínhamos medo de tudo."
Uma outra pandemia, a Sida, e a importância dos amigos que são família
"A verdade é que eu já vivi não uma, mas duas pandemias na minha vida", admite o escritor. "Eu tinha 20 anos durante a epidemia de Sida nos anos 80. E muitas pessoas que contraíram Sida eram homens gays. E muitos desses homens ligaram para os pais e disseram: tenho duas coisas para vos contar, eu sou gay e eu tenho Sida. E muitos pais estavam ali para eles. Mas muitos outros simplesmente desligaram o telefone", recorda.
"Então formámos essas unidades de amigos, por assim dizer. E não creio que nos chamássemos exatamente de famílias, mas fizemos todas as coisas que, quando éramos pequenos, nos disseram que só a nossa família faria por nós. Limpámos o vómito, pagámos as contas, discutimos com os médicos, organizámos os funerais. E não éramos as famílias perfeitas. Nós discutíamos e, no fundo, éramos como qualquer família. Só que éramos, por exemplo, uma drag queen, duas motociclistas lésbicas e três gays."
Foi nessa altura, sabe agora, que começou o seu fascínio pelas famílias, que acabaram por se tornar centrais nas suas obras. "Acho que muito cedo senti que queria reconhecer e homenagear aquelas famílias menos convencionais, que também deveriam estar nos livros", diz. Em "Dia", como noutras obras suas, a homossexualidade está presente, mas não é necessariamente um tema - é apenas uma das muitas facetas da humanidade.
Formámos essas unidades de amigos (...) e fizemos todas as coisas que, quando éramos pequenos, nos disseram que só a nossa família faria por nós. Limpámos o vómito, pagámos as contas, discutimos com os médicos, organizámos os funerais"
"Felizmente, as coisas mudaram muito. Eu nunca evito a minha homossexualidade ou o meu casamento", afirma Michael Cunnigham, que é casado há muito anos com o psicólogo Ken Corbett. "Eu moro em Nova Iorque e no meu dia a dia nem penso nisso, em dar as mãos na rua, no facto de alguns dos nossos amigos serem gays, mas muitos outros serem heterossexuais. Simplesmente, parece que não é um problema. Parece que a orientação sexual já não é um tema das notícias, e isso é bom."
Mas ele sabe que não é assim em todos os lugares. "Temos de vigiar os nossos direitos, não podemos dá-los por adquiridos. Nos EUA há agora alguma reação negativa contra pessoas LGBTQ e contra pessoas trans. Não tenho certeza até onde isso poderá ir, e é assustador."
"Conseguimos escapar!" - mas a que custo?
O tempo e a família - poderíamos dizer que estes são dois eixos fundamentais em "Dia" (e um pouco em toda a obra de Cunningham): os efeitos da pandemia e da passagem do tempo numa família. Existe um antes, um durante e um depois.
"Durante a pandemia ficámos presos no tempo. E depois saímos dessa fase e o tempo continuou. Conseguimos escapar! Mas as coisas estavam diferentes e as pessoas estavam diferentes", diz o autor. "Na maioria dos meus livros as personagens passam por uma transformação, quando o livro termina não são exatamente as mesmas pessoas do início, e isso acontece aqui. Porque para muitos de nós a pandemia foi uma experiência transformadora - o que quer que isso signifique. Penso que algumas pessoas fizeram mudanças boas nas suas vidas que talvez não tivessem sido obrigadas a fazer sem a pandemia."
Por exemplo, terminar uma relação. "Uma das coisas que sempre me interessou e sobre a qual é difícil escrever é um casamento ou uma parceria ou qualquer tipo de relacionamento duradouro que não seja mau o suficiente para terminar, mas não seja bom o suficiente para sentir que quero fazer isto para o resto da minha vida, e acho que não vemos muito isso em romances porque não é muito dramático", avança o escritor. "Mas para quem está a viver isso é dramático e sim, um evento como a pandemia pode ter esse impacto, porque pôs as pessoas a pensarem na sua vida. Se a pandemia não tivesse acontecido, a situação iria simplesmente arrastar-se."
Para muitos de nós a pandemia foi uma experiência transformadora - o que quer que isso signifique. Penso que algumas pessoas fizeram mudanças boas nas suas vidas que talvez não tivessem sido obrigadas a fazer sem a pandemia"
Houve um impacto primeiro do confinamento - do facto de estarmos fechados em casa, de não termos contactos sociais, de estarmos isolados e restringidos ao nosso núcleo familiar. Mas, depois, que impacto, por exemplo, é que o medo da morte, a proximidade da morte, a perda de pessoas queridas teve em nós? Essas são questões que estão muito presentes na última parte de "Dia".
Outro dos temas é a importância que as redes sociais adquiriram na nossa vida, sobretudo num período em que eram uma das poucas formas de nos relacionarmos socialmente. Michael Cunningham não é particularmente fã de redes sociais, mas abre uma exceção para o Instagram: "O que eu gosto no Instagram é o facto de poder ter vislumbres da vida de milhares de pessoas. O que seria sempre interessante para mim, naturalmente. Mas tento entender quem elas realmente são. Do que é que estão e não estão a publicar fotos. Aqui está a minha avó, aqui está uma lasanha. Mas, sabemos realmente quem elas são? E o que é que elas não estão a mostrar? Isso é o mais interessante."
Se todo o mundo é um palco, nas redes sociais torna-se ainda mais claro que "estamos sempre a representar e agora, se quisermos, temos um público muito maior do que nunca." Hoje em dia, Michael Cunnigham praticamente não publica nada no Instagram: "Há pessoas que partilham a sua intimidade, mas eu não quero oferecer a minha intimidade assim. Não quero que alguém como eu tente descobrir como eu sou realmente", ri-se.
A maldição de "As Horas": "Esteja grato e cale a boca"
Neste momento, Cunningham está a tentar recuperar o romance que tinha começado antes da pandemia, embora ainda não tenha a certeza de que este se vá transformar no seu próximo livro: "Veremos".
E quando lhe perguntamos sobre a pressão de escrever depois de um sucesso como "As Horas" - que ganhou o prémio Pulitzer, deu origem a um muito premiado filme realizado por Stephen Daldry, com Nicole Kidman e Julianne Moore, teve várias adaptações para palco e continua a ganhar leitores em todo o mundo, Michael Cunningham admite que na altura foi complicado. "Para onde eu vou a partir daqui? Não dá para subir mais, agora é sempre a descer?"
Mas depois conseguiu encontrar o seu caminho: "Eu pensei: se a obscuridade não me fez parar, seria muito estúpido se o reconhecimento me fizesse parar de escrever. Então, tive de admitir: eu posso nunca mais ter um livro com este sucesso. Mas, por outro lado, isso até pode ser libertador. Já ganhei um Pulitzer, não preciso de ganhar outro. Em última análise, depois de um período de muita depressão por causa disso, houve também uma espécie de libertação."
Quando alguém o aborda para falar de "As Horas", em vez de ficar aborrecido e responder "sabe que eu escrevi outros livros também?", o escritor prefere dizer a si mesmo: "Já se passaram mais de 25 anos. Quantos livros as pessoas recordam ao fim desse tempo? Muito poucos. Então, esteja grato e cale a boca."
(Fotografia no topo de autoria de Vitorino Coragem/Direitos reservados, num evento na quinta-feira em Lisboa)