O português que mudou de vida pelo LinkedIn e influenciou um recorde mundial

3 ago, 09:19
Nuno Pina (Foto: Facebook)

Nuno Pina é preparador físico de Pan Zhanle, novo recordista mundial dos 100 metros livres na natação

O chinês Pan Zhanle tornou-se recentemente a grande sensação dos Jogos Olímpicos de Paris ao estabelecer um novo recorde mundial nos 100 metros livres. E por uma margem considerável – 46.40 segundos, menos 1.37 do que o melhor registo do lendário Michael Phelps, por exemplo. Tem ainda cinco medalhas em campeonatos do mundo. Tudo isto, aos 19 anos.

Mas, por trás do sucesso deste talento emergente da natação, existe um português. Nuno Pina, natural das Caldas da Rainha, é preparador físico na comitiva chinesa, desde abril de 2023, e trabalha intimamente com o novo medalhista olímpico (tendo obtido o cargo através do Linkedin). Aos 32 anos, já trabalhou em várias modalidades, clubes, comités e fundou uma clínica.

Em entrevista ao Maisfutebol, Pina comparou o feito de Zhanle ao de Usain Bolt, em 2008, quando o velocista jamaicano quebrou o recorde da corrida de velocidade nos 100 metros, em termos de importância no respetivo desporto. E relembra ainda as dúvidas que pairavam sobre Bolt, nessa altura, quanto ao uso de substâncias dopantes – as mesmas acusações que são feitas agora a Zhanle.

Pina vive no mesmo local que o atleta, num centro de alto rendimento, trabalha diariamente com ele e garante que isso não corresponde à verdade. «Em dois anos, ele fez cerca de 50 testes antidoping», lembra Nuno Pina. O preparador físico prefere olhar para essa narrativa como um elogio ao seu trabalho.

Pina revelou ainda quais os exercícios mais importantes para um nadador como Zhanle, deixou elogios ao caráter do chinês e falou ainda das potencialidades e limitações da natação portuguesa - com o nome de Diogo Ribeiro em destaque, claro.

Antes de falarmos sobre o Pan Zhanle, que tem estado em evidência, gostaria de falar sobre si. O Nuno tem um percurso recheado por várias modalidades e clubes diferentes.

Comecei no futebol, estive lá uns meses antes de entrar no Benfica, para a equipa de hóquei em patins. Depois, passei pela Federação Portuguesa de Natação, onde estive cinco anos, três dos quais no Comité Olímpico. Em seguida, fui para o Sporting para me dedicar ao basquetebol, onde estive três anos com o Luís Magalhães. Depois, tive a proposta para ir para a China, onde estou há duas épocas.

Ter uma carreira muito eclética acaba por ser uma vantagem?

Sim. Ainda por cima, como fui nadador durante 12 anos, acabo por ter mais expertise. Quero acreditar que sim, que me dê algumas valências diferenciadas.

Pelo que sei, obteve o cargo na China pelo LinkedIn. Foi algo surpreendente, para si?

Tinham visto o meu perfil, depois contactaram-me por essa via e pelo Facebook. Partilharam comigo uma proposta de emprego. Deixei o meu contacto, por email, onde me propuseram o envio do currículo, para análise. Seguiu-se uma série de entrevistas e, no final, soube que tinha ficado.

Imagino que tenha sido uma aventura muito positiva.

Um desafio enorme. Mas tem sido uma aventura incrível, a vários níveis, pessoal e profissional, com um retorno incrível.

Como é que se sente por ter participação num recorde olímpico, ao lado do Pan Zhanle?

Foi especial, porque ele era um bom nadador e agora é, provavelmente, uma lenda, após o tempo que fez. Acompanhá-lo nesse percurso, desde o básico, quando ele tinha 17 anos, acaba por ser mais motivador, lisonjeador do trabalho que temos feito. Ele fazia umas flexões de braços todo a tremer, agora faz exercícios de força com boas cargas, a atirar bolas pesadas. Acompanhar esse crescimento de maturação e desenvolvimento atlético foi muito bom. O facto de ser reconhecido é mesmo a cereja no topo do bolo, e isso deixa-me feliz e orgulhoso.

Quando olhamos para o Pan, vemos que tem uma estampa física impressionante. Que exercícios são fundamentais para um nadador?

No caso do Pan, como é um nadador mais de velocidade, creio que exercícios de puxada vertical. Exercícios acima da cabeça, com elevações, up and down. Depois, exercícios que promovam o desenvolvimento de competência. Como por exemplo o trabalho poliométrico de membros superiores e inferiores.  Dedicamos muita atenção a isso. Dão uma vantagem muito boa nos desenvolvimentos das capacidades atléticas. Estes fazem parte do meu top de exercícios a desenvolver.

Como definiria o Pan, enquanto pessoa, qual o seu perfil mental?

O Pan é chinês, por isso acaba por ter um perfil diferente do que estamos habituados na Europa, especialmente dos latinos. Mais calado, reservado, introvertido, é muito amigo. Adora animais. Está sempre a ver vídeos de animais, o que lhe dá um toque mais emocional. De certa forma, a postura que coloca no seu trabalha acaba traduzir-se num foco enorme, com uma subtileza enorme. Nunca falta, nunca chega atrasado, tem uma consistência em termos de preparação muito grande e isso é difícil de encontrar na população latina. Até mesmo nos norteamericanos, onde tive experiência no basquetebol, durante três anos. Aí existe mais contra-argumentação, questionam porque vamos fazer isto, porque vamos fazer aquilo, ‘estou cansado hoje’… do Pan nunca vamos ouvir nada.

Vi que o Pan tem a alcunha de «peixe-voador». De onde é que isso veio, da comitiva chinesa ou da imprensa?

Também vi isso [risos]. Não sabia, portanto, deve vir da imprensa. O que ele fez foi muito similar, na minha perspetiva, com o que o Usain Bolt fez com o recorde olímpico. Colocou a fasquia completamente noutro limite. É como o Messi e Ronaldo, colocaram o futebol noutro patamar. Vejo que o Pan, com o tempo que fez, com uma técnica particular de nado, colocou os standards da natação e dos 100 metros livres noutro patamar.

Outro tema, incontornável, é as acusações de uso de doping pelo Pan. O treinador de natação australiano, Kyle Chalmers, disse que aquilo que o Pan fez não é normal e sugeriu uso de doping. Isso é um elogio ao seu trabalho?

É engraçado a forma como coloca a questão, porque é assim que a vejo. Conhecendo a estrutura por dentro, todas as rotinas do Pan, pois vivo com ele, no centro de alto rendimento - não vivo do mesmo quarto, mas estou todos os dias com ele -, estando há dois anos com este atleta… ele é um dos mais testados em todo o mundo. Nesses dois anos, fez cerca de 50 testes antidoping. E todos são negativos. Duvido que a totalidade da comitiva australiana tenha feito este número de testes. Estas acusações vêm de um episódio em que a nossa equipa foi alvo de uma intoxicação, claramente. Todos jantaram no mesmo sítio e deram positivo, dias depois. Coisa que as instâncias legais estão a averiguar, tendo concluído o processo. Mais uma vez trago o exemplo do Bolt à baila – lembro que na altura, era isso que diziam do Bolt. Lembro-me que todos os colegas dele tinham sido apanhados com doping e ele não. Ele era constantemente testado, antes durante e depois dos campeonatos, dava sempre negativo. Ele tinha era características especiais. Punha os joelhos todos para dentro, tirava partido da sua altura para ter uma distância de passada única para alcançar uma marca que se mantém até hoje.

Aproveito para lhe perguntar sobre Diogo Ribeiro. Não sei se o conhece, mas gostava de lhe pedir a sua opinião sobre o seu desenvolvimento. Acha que será capaz de ultrapassar a marca de Pan Zhanle?

Conheço o Diogo, já trabalhei como Diogo, já o acompanhei no Comité Olímpico, e sempre que passo por ele aqui [em Paris] cumprimentamo-nos. Têm sido muito boas as nossas partilhas mesmo já estando a trabalhar na China. Encontrámo-nos em Fukuoka e no Qatar, nos Mundiais [de 2023 e 2024], partilhamos refeições juntos, sempre que é possível. Tenho acompanhado o desenvolvimento dele de perto. Acredito que, neste momento, ele está a iniciar a sua carreira no alto rendimento. Está no início e tem muito para desenvolver, quem sabe, no futuro, possa lutar para medalhas em Mundiais, como já ganhou, e Jogos Olímpicos. Quanto ao recorde do Pan… eu gostava que fosse o Diogo Ribeiro, ou um português, sem dúvida, mas é um grande desafio.

As condições dadas aos nadadores em Portugal são um entrave face a outros países, ou havendo trabalho e sacrifício é possível equipararmo-nos a outros países?

Acho que é possível face a alguns, mas é extremamente difícil fazê-lo às grandes potências. Falo de Estados Unidos da América, Austrália ou China. Sinto que Portugal tem condições claras para melhorar bastante. A Suíça, por exemplo, tem ótimos nadadores e uma população semelhante à nossa. Temos de olhar para cima, mas ter consciência de que temos 10 milhões de habitantes e que as nossas características genéticas não são as que mais favorecem a natação, ao contrário do futebol.

Em jeito de conclusão, remetendo ao futuro, onde se vê nos próximos tempos depois desta medalha?

A medalha pode dar azo a continuar ou rumar a outros destinos. Estou focado nos dias que faltam. O Pan vai competir, bem como mais quatro atletas que acompanho. Depois vou rumar a Portugal durante um mês e meio e tomar as decisões para o futuro.

 

Relacionados

Patrocinados