«Em Roma, tinha 50 jornalistas nas conferências de imprensa. Em Portugal, uns três»

6 jul, 09:00
Nuno Campos (Foto: AS Roma)

O Maisfutebol falou com Nuno Campos, treinador-adjunto no Toluca, que recordou as passagens por Roma, Shakhtar Donetsk ou FC Porto, ao lado de Paulo Fonseca

Nuno Campos é treinador-adjunto de Renato Paiva, no Toluca, do México. Um clube que surgiu repentinamente nas manchetes dos jornais, em junho, com a transferência de Paulinho para o emblema histórico do Novo Continente. 

Mas, antes disso, o técnico de 49 anos foi adjunto de Paulo Fonseca durante 15 anos, com passagens por alguns dos mais conceituados clubes do mundo - AS Roma, Shakhtar Donetsk, FC Porto e Sp. Braga à cabeça. Em entrevista ao Maisfutebol, Nuno Campos teve dificuldade em eleger o melhor jogador que treinou (mencionando nomes como Diogo Jota, Jackson Martínez, Danilo ou Mkitharyan). 

No FC Porto cruzou-se com Pinto da Costa, emblemático presidente que agora cedeu o lugar a Villas-Boas. Nuno Campos destaca o «sentido de humor muito grande» e a «simplicidade» do antigo dirigente. Em apenas uma época no clube, em 2013/14, admite ter aprendido mais do que nos projetos posteriores. Mais tarde, enfrentou o clube na final da Taça de Portugal como treinador principal do Tondela.

Campos recorda a resiliência dos ucranianos, já após a primeira invasão russa ao leste do país, e a paixão que circunda o AS Roma: «Eu, mesmo sendo adjunto, não podia ir a um restaurante», afirma. Por fim, Nuno Campos deixou a sua opinião sobre o regresso de Paulo Fonseca a Itália.

Esta é segunda parte da entrevista com Nuno Campos, depois de uma primeira parte em que foi abordada a transferência de Paulinho para o Toluca, as características do futebol mexicano e a sua relação com Renato Paiva. Pode lê-la aqui.

Apesar de ter uma longa carreira como adjunto, teve duas breves experiências como treinador principal, no Tondela e Santa Clara. Talvez o momento mais marcante, suponho eu, tenha sido a final da Taça de Portugal contra o FC Porto, um clube que já conhecia por dentro. Como é que foi essa experiência, não só da final, mas também treinar o Tondela?

Eu gostei imenso de trabalhar no Tondela, pois as pessoas à nossa volta estavam prontas para ajudar, as condições de trabalho dentro da dimensão em que estávamos eram boas, e ter colocado o Tondela numa final, pela primeira vez na sua história, foi algo também de marcante. No Santa Clara também levámos, pela primeira vez na história, a equipa à final four da Taça da Liga. Teve um impacto um bocadinho diferente, porque depois não a disputei. Na Taça, tive a felicidade de ir jogar contra uma equipa forte como era o FC Porto e sabíamos que tínhamos poucas chances, mas acreditámos até ao fim que era possível. Mesmo durante o jogo, notou-se que as pessoas de Tondela nos enalteceram no final do jogo, tendo visto claramente que disputámos uma final difícil. Deixámos uma boa imagem do clube. Depois, eu creio que o Tondela é uma equipa que tem de estar na primeira divisão, fruto de toda a sua envolvência, daquela gente que ali vive e das pessoas que trabalham no clube. É um clube humilde, mas de gente muito trabalhadora que tenta ajudar muito ao seu crescimento.

E é engraçado aquilo que está a dizer, porque podia aplicar-se também ao Santa Clara, não é? Também tem uma base associativa grande e representa os Açores na Liga.

Sem dúvida. E no Santa Clara, felizmente, mudaram as pessoas que estavam à frente do clube, porque estiveram lá pouco tempo também e não sabiam bem a forma ideal de gerir as coisas. Agora, o Santa Clara vai representar a ilha novamente na primeira Liga. É já é um histórico da nossa Liga e acho que faz todo o sentido termos as equipas das ilhas no nosso campeonato. São zonas também que têm demonstrado, ao longo de muitos anos, que vivem para o futebol e têm paixão. O Governo Regional também faz um esforço grande para que a equipa se mantenha na Primeira e eu acho que agora estão reunidas as condições, com pessoas que acreditam e que estão a demonstrar que querem melhorar o clube, as suas infraestruturas. Era necessário.

Na altura, em 2021, foi quando separou o seu caminho de Paulo Fonseca e teve essas duas experiências enquanto treinador principal. Deu para perceber se gosta mais de ser treinador principal ou treinador-adjunto? Vê, por exemplo, num futuro próximo, a voltar a ser treinador principal?

Eu digo a toda a gente, eu sou treinador. Se for um treinador-adjunto com as funções que tenho tido ao longo da minha vida toda, posso ser principal ou adjunto, porque a forma de liderarmos o treino é igual. As coisas estão muito conectadas. A diferença talvez seja o mediatismo do treinador principal em relação ao treinador-adjunto, mas eu também lido bem com isso. Já fui a conferências de imprensa, em Roma, em que tinha 50 jornalistas a fazer-me perguntas e estamos uma hora e meia a responder a perguntas… ser treinador principal em Portugal, nesse aspeto do mediatismo, nem havia grande interferência, porque tinha apenas uns três jornalistas nas conferências de imprensa. A grande vantagem de ter sido adjunto ao mais alto nível é que o conhecimento e as experiências passadas a um nível de uma Roma, de um FC Porto, de um Sp. Braga ou de um Shakhtar, em Ligas dos Campeões, no conhecimento do jogo, a lidar com direções em que reunimos com o presidente, com o vice-presidente, com o CEO… toda esta experiência que eu adquiri ao longo de anos é muito superior a ser treinador-principal de uma equipa que não tem estes parâmetros.

O campeonato italiano é especial? Treinar a Roma é especial?

É um dos melhores campeonatos do mundo e a Roma é um dos maiores clubes do mundo. O mediatismo da Roma só se equipara a umas dez equipas mundiais. Isso torna o clube especial, porque a cidade vive futebol 24 sobre 24 horas. Há meios de comunicação que só falam sobre a Roma. Em Inglaterra, vive-se forma diferenciada esta paixão, porque há os jornais generalistas a falar de vários clubes, não só de um. A Roma tem esse aspeto especial. Torna tudo mais intenso. Depois, há a envolvência na cidade, porque eu, mesmo sendo adjunto, não podia ir a um restaurante. As pessoas conheciam-me e vêm à mesa, semelhante ao mediatismo do treinador principal. Essa é uma vivência que só acontece a este nível. As condições do clube são muito boas. A paixão em Itália é muito grande, tal como no México.

Não posso deixar de fazer esta pergunta. Voltar a Itália, para treinar o Milan, é um bom passo para o Paulo Fonseca?

Naturalmente que vai demonstrar a sua qualidade. Vai correr bem, como tem corrido quase sempre, porque a sua qualidade é inequívoca. É mais um passo na sua carreira que é bem dado e mais uma vez vai demonstrar a sua competência.

Quanto à sua passagem pelo Shakhtar Donetsk [2016-2019], o país já tinha sido invadido. Aí, já treinavam e jogavam fora de Donetsk. Isso criava dificuldades?

Sem dúvida. Chegámos em 2017. Já estava dividida a zona de Donetsk, não se podia ir. O clube pôs a sua base em Kiev. O Shakhtar não era campeão há duas épocas, o Dínamo Kiev era bicampeão. Tivemos a felicidade de ganhar, em três anos, três campeonatos, fazer uma Liga dos Campeões fenomenal, que foi quase a nossa montra por termos ganho ao Manchester City e eliminado o Nápoles. Ganhámos sete títulos em nove. Ao clube, faltava-lhe um ingrediente que era ter um estádio de 65 mil pessoas sempre cheio, a apoiar a equipa. Nós, ao jogarmos deslocados, tínhamos 20 mil pessoas, o que é muito bom para quem está nessa situação, mas não pudemos jogar vez nenhuma no nosso estádio [Donbass Arena].

Neste ambiente de guerra, pois já tinha havido a primeira invasão de 2014, o facto de as pessoas, mesmo assim, irem ao estádio a centenas de quilómetros de distância, também mostrava um bocadinho daquilo que é o amor ao clube e como o futebol ultrapassa este tipo de situações?

Sem dúvida. Acaba por ser até um escape para que a pessoa não pense nas outras situações todas que vão existindo no país. Nós não temos bem noção, em Portugal, porque não estamos habituados a viver climas de guerra. Agora já sabemos melhor porque a Ucrânia está aqui próxima e entra-nos pelos olhos dentro. Os povos que estão mais habituados a este tipo de situações acabam por conviver de forma diferente com as mesmas. A região de Donetsk estava com uma milícia que servia de tampão sobre a Crimeia e o resto da Ucrânia, para que nem o exército ucraniano tivesse a tentação de entrar, nem eles queriam entrar pela Ucrânia adentro nessa altura. Perante isso, havia alguns conflitos, mas era só naquela zona e isso era o que a população assumia. Fazíamos a nossa vida diária normal e tentávamos ser o mais normais possível, sendo que o país estava a ser invadido, mas não todo, era naquela região só. Isto é algo que seria impensável para nós, dentro de um contexto europeu, digo eu. Não estamos habituados a que alguém nos entre pela porta e tente ficar como parte do nosso país, mesmo que seja uma parte pequena. Eles veem aquilo de forma um bocadinho diferenciada. Quem teve possibilidades fugiu. Eles têm uma capacidade de adaptação às coisas muito maior do que nós, porque não convivemos com essa realidade habitualmente. Quanto à ida das pessoas aos estádios, o futebol tem esta capacidade de fazer com que os adeptos, naquele momento, pelo menos deixem de pensar nos seus problemas. Estão ali para apoiar a sua equipa, para usufruir daquele momento de espetáculo e vibrar com as vitórias da sua equipa. Muitas delas tiveram de fugir da sua terra-natal e da sua zona de conforto.

E isso até deve ter afetado, suponho eu até, diretamente as famílias dos jogadores do Shakhtar. Lidar com isso também deve ser muito complicado.

Afetou, lá está, afetou diretamente muita gente do clube, desde roupeiros, desde pessoas que trabalhavam na estrutura do clube, porque todos eram de Donetsk, as famílias ficaram lá porque muitas delas não quiseram sair, mesmo com as pessoas a querer proporcionar uma qualidade de vida boa fora dali, na zona de Kiev, as pessoas mais velhas diziam: ‘Não, esta é a minha casa, não quero sair, prefiro morrer aqui, se tiver de ser’. Lidar com isto, só é possível, não é perfeito, mas só é possível porque as pessoas já estavam habituadas.

Para encerrar esta parte sobre o Shakhtar, gostava de perguntar especificamente sobre a vitória sobre o Manchester City. Lembra-se de algum momento em especial desse jogo? Lembra-se, por exemplo, de olhar para o outro lado e estar a vencer um treinador como Guardiola?

Nós, fruto de disputarmos tantos jogos a um nível tão alto, não olhamos tanto para essa componente de quem está do outro lado, quer jogadores, quer treinadores -mesmo sendo um dos melhores do mundo - mas recordo-me de outras coisas. A preparação do segundo jogo, que foi o que ganhámos em casa com o City, em que preparámos minuciosamente uma saída para o ataque vinda do pontapé de baliza desde trás, em que atraíamos a bola e depois tínhamos que rodar o jogo. O nosso lateral esquerdo, o Ismaily, estava à espera em cima da linha do meio-campo para depois pedir a bola na profundidade e tentar isolar-se. Nós preparámos isso durante a semana e aquilo saiu durante o jogo - até já fizemos uma apresentação disso na Escola Superior de Desporto de Rio Maior - saiu exatamente como tínhamos preparado e, com esse golo, nós acabámos por ganhar ao City, por 2-1. Esse golo foi decisivo na eliminatória. Essa parte recordo-me, porque foi algo que preparámos muito bem em função das características dos nossos jogadores, mas também do que o City fazia, e saiu na perfeição. Essa é a parte que me recordo melhor, pois falar com o Guardiola acaba por ser uma coisa mais normal para nós. É um dos melhores do mundo, mas o Paulo também é.

Foi adjunto de Fonseca no FC Porto, um dos ‘três grandes’, um clube com a sua mística, e teve jogadores nas mãos como Jackson Martínez, Otamendi, Fernando ou Quaresma. O que recorda de treinar esses jogadores e como é que foi treinar um clube como o FC Porto?

Chegar a uma equipa como o FC Porto, num momento da carreira diferente daquele que eu estava a falar ainda agora, coloca-nos de uma perspetiva diferente. Vínhamos de um Paços de Ferreira, apesar de termos feito um terceiro lugar, que é uma coisa do outro mundo, mas é um Paços de Ferreira. A nossa experiência, a um nível tão alto, não era muito grande. É um mundo em que temos de já ter alguma bagagem, seja como jogador, seja como treinador, para depois em algumas das situações mais difíceis também sabermos como reagir. Foi um mundo em que nos permitiu se calhar aprender mais em menos tempo do que todos os outros sítios onde estivemos a seguir, porque também é na adversidade que se aprende mais, de facto. Trabalhar com aqueles jogadores foi fantástico desse ponto de vista. Humanamente, eram muito bons quase todos também e isso permitiu-nos crescer muito enquanto treinadores. A relação com eles era muito boa em termos de trabalho de campo e como pessoas.

E até lidaram com Pinto da Costa, que agora findou o seu reinado. Passar do Paços de Ferreira para ter como presidente Pinto da Costa é realmente impressionante.

Foi um prazer enorme estar com ele, conhecê-lo e partilhar momentos com ele, porque é muito fácil criarmos empatia, não por ser nosso presidente, mas com a forma de ele ser, porque ele torna as conversas todas muito fáceis, tem um sentido de humor muito grande e marca qualquer pessoa que tem algum tipo de intervenção com ele. De facto, isso é o que me marca mais, a sua dimensão era tão grande, mas era uma pessoa tão simples a falar connosco, quer nas coisas que nos dizia, nas histórias. O Pinto da Costa será, porventura, o presidente mais titulado de qualquer clube português nos próximos mil anos. Acho que fica para a história e ficará sempre para a história, penso eu, como o presidente mais titulado de qualquer clube português.

Já falámos praticamente de todos os clubes, também aqui abordámos o Paços Ferreira, apenas não falámos muito sobre o Sp. Braga. Na altura [2015/16] também tiveram uma época, com bons jogadores, que jogava bom futebol ofensivo. Como é que foi treinar esse clube e, em específico, o Rafa Silva, pois estava a surgir naquela equipa e veio a ter uma grande carreira ao serviço do Benfica?

Nós fizemos apenas uma época no Sp. Braga, mas foi fantástica. O Rafa estava a despontar, fez a sua melhor temporada de sempre em termos de golos e assistências e depois saiu para o Benfica. Quanto à equipa, nós conseguimos, a determinada altura, estabilizarmo-nos um bocadinho porque já não conseguimos chegar mais acima, ficámos no quarto lugar. Nas Taças, perdemos nas meias-finais da Taça da Liga na Luz, com o Benfica e o Sp. Braga só tinha vencido uma Taça na sua história. 50 anos depois, conseguimos ganhar a Taça de Portugal, que era uma coisa que o presidente [António Salvador] queria muito e que todos os adeptos sonhavam, porque sentiam que ganhar o campeonato era realmente muito difícil. Fizemos uma campanha fantástica na Europa que, por um lado, nos permitiu ir para o Shakhtar porque jogámos os quartos-de-final da Liga Europa contra eles. Pela forma como nos exibimos, foi assim que começou a vontade de nos ter lá, como também por eliminar o Fenerbahçe do Vítor Pereira, que na altura era fortíssimo. Essa época correu-nos tão bem que depois, no ano seguinte, fomos para o Shakhtar e foi quando saímos de Portugal e abrimos as portas da Europa.

Já falámos de praticamente todos os clubes onde passou. Queria fazer uma última pergunta, que é um pouco ingrata, mas não deixo de fazê-la. Orientou tantos jogadores, mas qual foi o melhor ou o que mais o impressionou ao longo da sua carreira?

Há tantos muito bons que não fica fácil dizer o nome de um, posso dizer o nome de vários e vou-me esquecer de muitos certamente. Treinar o [Diogo] Jota, quando subiu dos juniores [do Paços de Ferreira], e pô-lo colocá-lo a jogar na equipa principal… hoje está na Seleção Nacional e no Liverpool com uma carreira brilhante, é algo que marca. Quando depois temos jogadores como o Danilo, que vemos hoje como capitão da Seleção do Brasil, e a carreira dele em clubes como o Real Madrid ou Juventus há imenso tempo, é algo que nos coloca num patamar realmente de eleição a nível dos jogadores. O Solomon [ex-Shakhtar], que assina pelo Tottenham e foi um jogador que fomos buscar com 19 anos, um Fred que chega pelas nossas mãos a seguir, vai para o Manchester United, é como um filho que vemos crescer e que vai para o Manchester United. O Otamendi tem a carreira que tem e já era um bocadinho mais conceituado quando o apanhámos.

Na Roma, o Zaniolo foi lançado por vocês, certo?

 O Zaniolo faz uma carreira que podia até ser melhor, mas algumas lesões também o impediram, embora seja um jogador de referência mundial. O Mkitharyan, um jogador que tem um grande passado e presente, acabou de ser campeão no Inter de Milão. Fantástico, como pessoa e profissional, fenomenal. Falou-se no Jackson Martínez, podia-se falar no Alex Sandro, no Fernando, no Bernard, no Taison, tantos jogadores. Ou seja, os mais novos, hoje, estão ao mais alto nível nessa Europa, nos melhores clubes do mundo, alguns deles. Os mais velhos, alguns deixaram já de jogar, entretanto, porque a idade também foi passando, mas fizeram carreiras brilhantes. Naturalmente que são todas experiências que são muito enriquecedoras, que deixem muitos amigos, neste caso, em muitos jogadores, e que foi um privilégio muito grande trabalhar com muita gente tão boa em termos profissionais.

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