Antes de partir, João dedicou uma valiosa camisola da Seleção Nacional aos Doutores Palhaços, que acompanharam os inúmeros internamentos. Ao Maisfutebol, a mãe de João revela a importância da Operação Nariz Vermelho e a intervenção de Fernando Santos nesta história
A 21 de outubro, a Operação Nariz Vermelho (ONV) revelou «A Camisola Mais Valiosa do Mundo», objeto doado por João, antes de falecer. Este jovem, então com 16 anos, estabeleceu laços com os «Doutores Palhaços», responsáveis por sorrisos rasgados na segunda casa, o hospital.
Por isso, nos últimos meses de vida, dedicou à ONV uma camisola da Seleção Nacional, oferecida por Fernando Santos e autografada pelos jogadores presentes no Mundial 2018. Quatro anos após o falecimento de João, esta camisola serviu de mote para uma campanha de angariação de fundos.
Para conhecer esta história, o Maisfutebol esteve à conversa com Sílvia Alves, a mãe de João, e com Anabela Possidónio, diretora da ONV.
Futebol, a paixão inabalável
Habituada a encarar a morte, e descartando «elefantes na sala», Sílvia Alves esclarece que o filho «nasceu saudável», quadro que drasticamente se alterou ao fim de um ano.
«Teve uma constipação de bebé e, no seguimento, sofreu complicações, pelo que ficou internado. Acabou por contrair outro vírus, ficando com uma doença pulmonar crónica, uma paralisia cerebral e epilepsia. Ainda assim, manteve a parte cognitiva intacta», descreve.
Desta forma, João expressava-se através de um computador – enquanto teve energia para tal – ou através de um alfabeto posicionado à frente da cadeira de rodas. Nas interações do quotidiano, o futebol era tema obrigatório. E nem as condicionantes o impediram de aprimorar o conhecimento.
«Ainda se divertiu durante alguns anos, com recurso a um andarilho. Se o segurássemos, ele também conseguia dar toques com a bola. O futebol era parte da nossa rotina. Quando não havia jogos para ver, havia desenhos animados», relata.
De 2016 à surpresa de Fernando Santos
Sobre a Seleção Nacional, Sílvia Alves recorda os treinos no Estádio do Jamor, ainda que a «gestão do oxigénio e a confusão» impedissem João de contactar com os jogadores. Quanto ao célebre Euro 2016, restam memórias excecionais.
«O João teve várias convulsões, porque se excitava e tinha crises de epilepsia. Eram momentos de ansiedade – uma agitação boa – mas sob controlo. Gostávamos que ele se deitasse cedo, porque as noites eram agitadas, mas, para o caso, abrimos exceções», revela.
Dois anos volvidos, quando já não saía de casa, pelo estado avançado da doença pulmonar, João recebeu a visita de Fernando Santos. Das mãos do então selecionador nacional, este jovem viu desembrulhada uma réplica da camisola utilizada por Portugal no Mundial 2014, autografada pelos jogadores presentes no Mundial 2018.
«O João não parava de sorrir e de abraçar o mister Fernando Santos. Ele quis a camisola emoldurada na parede do quarto», detalha Sílvia Alves.
Tal encontro revelou-se determinante para a decisão tomada nos últimos meses de vida. Em fase terminal – com uma unidade de cuidados intensivos montada em casa – João comunicou com os pais sobre a morte, o velório e objetos a distribuir por amigos e familiares. Além das cadernetas de cromos e dos lenços, decidiu oferecer a camisola de Portugal à Operação Nariz Vermelho.
«Quando o questionei sobre a camisola, o João apontou para os Doutores Palhaços. Criámos uma relação de carinho com eles, porque passámos muitos meses no hospital. Os internamentos foram sempre complicados, mas estes artistas trouxeram alegria e leveza.»
«Para nós, pais, a presença deles ajudou a lidar com a ansiedade e com o stress, fazem muita diferença nas famílias e nos profissionais de saúde. O hospital era a nossa segunda casa e aprendemos muito com os Doutores Palhaços. Quando eles não estavam, fazíamos as “macacadas”, para alegrar as crianças», recorda.
O luto e a doação
Em julho de 2020, Sílvia Alves viu o filho, de 16 anos, partir. Em plena pandemia, a estranha realidade do país era, para esta família, parte da rotina.
«O João tinha problemas de imunidade há muitos anos. Em 2020 estava grávida e a minha filha tinha 4 anos, e usava máscara em casa desde os 18 meses», comenta.
Quanto à camisola da Seleção Nacional, Sílvia Alves cumpriu a vontade do filho em 2021.
«Atravessámos o processo de luto e, mesmo com muitos assuntos “arrumados”, não é possível preparar o “impreparável”. Arrumar o quarto do João, por exemplo, foi doloroso, sobretudo porque aquele espaço era partilhado com a irmã, de 4 anos. E a camisola era o ponto central.»
«Só no ano seguinte, no Dia do Nariz Vermelho (1 de junho), senti que devia comunicar a vontade do João. Recebi uma espécie de sinal, senti que era o momento indicado», prossegue.
De 2021 a 2024, conforme explica Sílvia Alves ao Maisfutebol, burocracias e apoios não concretizados atrasaram o lançamento de uma campanha em torno do objeto doado. Até que, no final de outubro, «A Camisola Mais Valiosa do Mundo» foi anunciada, mote para a angariação de fundos a decorrer até 31 de dezembro.
«FPF teve conhecimento atempado da iniciativa»
De acordo com Anabela Possidónio, diretora da Operação Nariz Vermelho, a campanha superaria a meta dos 10 milhões de euros se cada residente em Portugal doasse um euro. Este montante, em todo o caso, é simbólico, até porque a camisola vai permanecer na instituição.
«A camisola mais valiosa em leilão pertenceu a Michael Jordan (10 milhões de euros). O objeto doado pelo João não será leiloado. Honrarmos esta memória e alimentarmos a ambição de ajudar mais crianças é algo gratificante», refere, em entrevista ao Maisfutebol.
À data desta reportagem, a campanha da ONV superou os 32 mil euros, valor que permite ajudar mais duas mil crianças. Ademais, sublinha Anabela Possidónio, 36 mil euros seriam suficientes para adicionar um hospital à rede de 21 unidades já visitadas.
«Além dos 35 Doutores Palhaços – artistas formados para trabalhar neste contexto – a nossa equipa conta com 21 profissionais de bastidores, distribuídos entre coordenação artística, logística e relação com os hospitais. Delinear um plano de visitas, com atuações adaptadas a cada criança, é exigente.»
«À parte disso, temos as angariações de fundos, uma vez que não recebemos qualquer apoio do Estado. E contamos com um centro de estudos, para medir o impacto do nosso trabalho», detalha.
Sobre um eventual apoio da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) – uma vez que a camisola é da Seleção Nacional de futebol – Anabela Possidónio repete o convite.
«Todas as entidades desportivas estão mais do que convidadas a participar. E a FPF teve conhecimento atempado desta iniciativa, pelo que o convite esteve sempre presente. Teríamos todo o gosto», esclarece.
«A história do João dá-nos energia»
Para lá dos meses vividos no hospital, o legado de João acalenta os desafios da Operação Nariz Vermelho, garante Anabela Possidónio.
«Mostra o nosso impacto numa criança. No final da vida, doou o seu bem mais valioso à causa, reconhecendo a importância dos Doutores Palhaços, e querendo estender essa alegria a outras crianças. Muitas vezes olhamos para os números e para as métricas, mas as histórias das pessoas revelam o verdadeiro impacto do nosso trabalho.»
«A família do João sempre mostrou empenho e sempre acreditou na nossa organização. Já fazem parte da nossa equipa, o que é muito bonito. Esta história dá-nos energia», relata, emocionada.
Quanto ao futuro, as duas entrevistadas do Maisfutebol acreditam numa sociedade mais sensível e inclusiva, até no âmbito futebolístico. Questionada sobre a eventualidade de camarotes darem lugar a salas sensoriais nos estádios, Sílvia Alves apela à boa vontade.
«É sempre possível, até porque o futebol gera muito dinheiro. Estas salas deveriam ser obrigatórias, são essenciais para pessoas com perturbações do espectro autista. As luzes, a confusão e a música ambiente podem desencadear crises convulsivas. A integração e a inclusão dependerão da nossa sensibilidade», remata.
Na mesma linha, Anabela Possidónio alerta para o potencial em risco.
«Enquanto sociedade, se não promovermos a integração em todas as dimensões, então vamos desperdiçar um potencial gigante. Acredito que estamos alertados para estas valências», termina.
*Até 31 de dezembro, os donativos para «A Camisola Mais Valiosa do Mundo» devem ser feitos através do site www.acamisolamaisvaliosadomundo.pt. O montante mínimo é de um euro, numa campanha que reverte para a expansão do programa de visitas da Operação Nariz Vermelho.