«Estava no túnel ao lado do Neymar e ele com botas desapertadas como se fosse treinar»

31 mar, 23:58
Ricardo Mangas no Bordéus (ROMAIN PERROCHEAU/AFP via Getty Images)

Mangas conta como passou de jogar para 1.500 pessoas para enfrentar o inferno do Vélodrome e que teve de ultrapassar uma crise de confiança que o levou a engordar «quatro ou cinco quilos», quando soube que teria de regressar ao Boavista

Quando era criança, perguntaram-lhe se queria jogar de azul ou vermelho. Optou pelo azul, mas não demorou muito até vestir a camisola encarnada. Custou-lhe deixar o colo dos pais aos 11 anos, no entanto, foi no Seixal onde viveu a adolescência e algumas das experiências mais marcantes da carreira, ao lado de João Félix e outros nomes que vingaram no futebol internacional.

Apercebeu-se que a porta da equipa A dificilmente se abriria e teve um percurso conturbado até se fixar na Liga. Foi ao norte do país, coincidiu com Rui Borges na primeira experiência no banco do atual treinador do Sporting, festejou a conquista da Liga Revelação e, a partir daí, viveu anos com a calculadora nas mãos a fazer contas à luta pela manutenção, em clubes com a corda na garganta. Pelo meio, partilhou o relvado com craques como Kylian Mbappé e Neymar numa breve aventura em França.

Estava a fazer o melhor arranque de temporada da carreira no reencontro com Rui Borges, desta vez em Guimarães, mas decidiu voltar ao estrangeiro, para tentar a sorte noutro patamar. Atualmente luta pelo título na Rússia, com o Spartak, mas a experiência não está a correr totalmente como o esperado.

A quarta parte da entrevista de Ricardo Mangas ao Maisfutebol é dedicada à época que viveu em França, emprestado pelo Boavista ao Bordéus.

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Em 2021/22 foi emprestado ao Bordéus e a época a nível individual correu bem, mas coletivamente já não foi assim. O que é que aprendeu com essa experiência?

A nível individual, não me posso queixar. Fiz mais de 30 jogos e devo ter sido dos mais utilizados. Fiz três golos e uma assistência, ainda é alguma coisa para um lateral que estava a lutar para não descer de divisão (risos). Foi uma aprendizagem. Estava a jogar contra uma equipa portuguesa em que o estádio tinha 1.500 pessoas e, passado uns meses, ia jogar no Vélodrome e o meu autocarro estava a ser apedrejado. O estádio estava cheio, com um envolvimento… Temos futebol em Portugal, mas aquilo era um patamar de futebol a sério. Sentes-te jogador de verdade.

Quem joga ali, pode jogar em qualquer lado.

Exato. Joguei contra o Neymar, contra o [Kylian] Mbappé. O [Jérémy] Doku foi, provavelmente, dos mais difíceis que tive para marcar. É outro nível, sem desrespeitar, obviamente, o futebol português, porque não temos a capacidade financeira para combater com esses campeonatos. Foi difícil, porque sentia que aproveitava cada vez mais o futebol. “Contra quem vou jogar esta semana? Vou jogar contra o Neymar”. Estes sentimentos faziam-me estar vivo dia após dia. Não tivemos resultados e, no final da época, passei por um mau bocado, porque estava com o futuro incerto.

A ideia era ficar lá em definitivo?

Mesmo quando a época acabou e descemos de divisão, tinha feito 30 jogos na liga francesa e nunca pensei que voltasse a Portugal. Fui um bocadinho abaixo e tive uma crise de confiança grande. Fui de férias com a minha esposa. Disseram-me que tinha de ficar em definitivo no Boavista e cheguei com quatro ou cinco quilos a mais. Passei mesmo um mau bocado. Sentia que tinha voltado à estaca zero, a minha vida mudou radicalmente. Depois, na pré-época, fiz duas fraturas de stress nas tíbias e fiquei três meses sem jogar. Quando voltei, estava a jogar o Bruno Onyemaechi a lateral-esquerdo e eu sentia que tinha um estatuto diferente por causa de onde tinha jogado. No Boavista, pegaram em coisas que não faziam sentido. Era tudo uma desculpa para eu não jogar. Mas cerrei os dentes e tiveram de me colocar a jogar à frente. Fiz por isso e, mesmo fora da minha posição, fiz uma época bastante interessante.

Quem mais o surpreendeu no futebol francês?

O que mais me surpreendeu foi o Neymar. Tal como o Félix, digo o mesmo do Neymar. Quanto ao Félix, talvez na brincadeira, quando estávamos a jogar no campo ou um contra um… Mas do Neymar, vi coisas em jogo que ficava: “Como é que se defende isto?”. No jogo contra eles [PSG], lembro-me que estava 0-0 e o Neymar e o Mbappé não passavam da linha do meio-campo para trás, não defendiam. Fazia-me confusão como é que atinges este estatuto no futebol. Lembro-me de estar no túnel e o Neymar ao meu lado com as botas desapertadas, como se fosse treinar. Não sei se ele jogou assim, porque ele foi para o lado esquerdo, mas a verdade é que lhe meteram duas bolas longas, ele recebeu, começou a cortar para o meio e, em 10 ou 15 minutos, fez dois golos para arrumar com o jogo.

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