As memórias do «senhor Rui» e o que fica do Campomaiorense que se fez grande

24 mar 2023, 09:05
Campomaiorense (Foto Livro Campomaiorense: das origens à atualidade)

Histórias de um clube especial que andou entre os grandes e chegou à final da Taça de Portugal, sob a figura tutelar de Rui Nabeiro, inspiradora também no desporto. E um olhar para o presente e para a herança desses tempos

A 21 de maio de 1995, o Campomaiorense jogava na Madeira a penúltima jornada da II Liga. Do jogo com o Nacional dependia a inédita subida do clube à primeira divisão. Rui Nabeiro estava lá e falou à equipa antes do jogo. «Eu fui jogador muitos anos e às vezes estamos tão concentrados que não ouvimos as pessoas. Mas ele era um motivador por natureza. A forma subtil como falava, a tranquilidade com que ele nos falava, mantinha-nos atentos ao que dizia. Pôs-nos à vontade. Disse que íamos conseguir, mas se não conseguíssemos não era o fim. Não fez pressão sobre nós para a responsabilidade que era o jogo.»

É Manuel Fernandes, então treinador do Campomaiorense, quem recorda aquele dia. O empate a uma bola garantiu mesmo a subida. E a festa foi imensa. «Acho que foi a melhor festa que tive em toda a minha vida no futebol. Foi uma loucura o que se passou depois de nós chegarmos às três da manhã da Madeira. As pessoas ficaram todas à nossa espera em Elvas para nos acompanhar. Um cortejo enorme atrás do autocarro, tudo a apitar… Depois a família Nabeiro quis festejar com pompa aquele acontecimento que era único para a vila e fez uma festa em que participou toda a gente da terra. Havia duas tendas gigantes, depois juntou-se toda a gente. Foi uma loucura.»

O Campomaiorense, clube de uma vila de oito mil habitantes, chegava à Liga. Era o ponto mais alto da história de um clube que já tinha um longo passado – foi fundado em 1926 – e se fez grande através da aposta da família Nabeiro. Começou com Rui Nabeiro, o empresário que criou uma multinacional no Alentejo e faleceu neste domingo, aos 91 anos. Figura tutelar do Campomaiorense, representou muito também para o desporto português, no Alentejo mas não só. O Maisfutebol foi recuperar memórias do «senhor Rui», como tantos lhe chamam, e daquele Campomaiorense que se fez grande e chegou a uma final da Taça de Portugal. E foi olhar para o presente e para o que ficou da herança de Rui Nabeiro e desses tempos.

O PASSADO

Quando Rui Nabeiro levava os jogadores num «velho Peugeot»

Rui Nabeiro esteve ligado ao Campomaiorense desde muito cedo. «A minha adolescência e a minha juventude foram vividas em épocas socialmente difíceis e nunca encontrei tempo para a prática do futebol ou qualquer outro desporto. No entanto, muito cedo comecei a acompanhar a equipa do Campomaiorense e a interessar-me pela vida do clube», escreveu no prefácio do livro dedicado à história do clube da autoria de Francisco Galego e Joaquim Folgado, publicado em 2001.

O texto segue com recordações dessa ligação: «Longe vão os tempos em que, domingo, após domingo, enchia o meu velho Peugeot de jogadores do Campomaiorense e nos transportávamos para mais um jogo fora de casa», escreve: «Na época, os recursos eram muito escassos e aqueles que na nossa terra tinham meios para ajudar o clube não o faziam. Assim, com as ajudas de uns e de outros, dos mais entusiastas, íamos arranjando o necessário para manter viva a chama do Campomaiorense, que assim atingia gloriosamente a II Divisão Nacional nos anos 60.»

Rui Nabeiro foi presidente do Campomaiorense de 1973 a 1990. Depois tornou-se presidente honorário e foi o seu filho, João Manuel Nabeiro, quem assumiu a liderança, com o sonho de colocar o Campomaiorense entre os grandes.

Rui Nabeiro não fazia parte do dia a dia do clube, mas acompanhava de perto, nos jogos em casa e em alguns jogos fora. «Ele aparecia nos momentos em que devia aparecer. Sabia os momentos em que devia aparecer», recorda Manuel Fernandes.

O clube subiu à II Liga em 1992. Foi a meio da época seguinte que Manuel Fernandes chegou. «Eu tinha saído do Sporting com o Bobby Robson e o Pedro Morcela, diretor do Campomaiorense, ligou-me, a perguntar se me queria encontrar com o presidente. Ele queria que eu fosse treinar o Campomaiorense. Perguntei-lhe quais eram os objetivos e ele disse que não sabia quando, mas queria chegar à I Divisão e ir a uma final da Taça de Portugal.»

«Então não vai levantar o cheque?»

«O Campomaiorense estava em último lugar e eu disse que queria um contrato só até final da época», conta Manuel Fernandes: «As coisas começaram a correr bem, três meses depois já não tínhamos perigo de descida de divisão e o presidente disse-me que agora queria fazer um contrato a sério. 'Quero ir à I Divisão, mas não sei se é num ano, dois, três ou quatro'. E eu disse: ‘Então vamos fazer um contrato de dois anos’. O facto é que subimos logo no ano seguinte.»

Manuel Fernandes admite que no início foi «estranha» a perspetiva de assumir o clube de uma pequena vila do Alentejo. Mas este clube era diferente. «Deram-me as condições necessárias para ter sucesso.» E depois havia o lado humano. «Eu às vezes esquecia-me de ir levantar o cheque do ordenado, e as pessoas é que iam ter comigo: 'Então você ainda não foi levantar o cheque?' Isto naquela altura não havia em mais lado nenhum. As pessoas eram tão sérias, muito diferentes de outros clubes onde eu estive», conta Manuel Fernandes: «Foi um povo que ficou no meu coração.»

O Campomaiorense tornou-se um clube atrativo. «A partir de certa altura as pessoas começaram a perceber que era dirigido por gente séria, gente honesta e queriam ir para lá. Eu tive muitos, muitos jogadores a quererem ir para o Campomaiorense comigo. E estou convicto que não há ninguém que tenha passado pelo Campomaiorense que não fique com saudades daquela vila, daquelas pessoas.»

Como Jimmy Hasselbaink chegou a Campo Maior

O clube fez crescer muitos jogadores. De todas, a história que fica para sempre é a de Jimmy Hasselbaink, o avançado holandês que chegou para treinar à experiência em Campo Maior, marcou 12 golos naquela temporada, foi contratado pelo Boavista e partiu do Bessa para o mundo. Jogou em Inglaterra, no Atlético de Madrid, esteve no Mundial 98 com os Países Baixos e é agora adjunto de Southgate na seleção inglesa.

Como é que Jimmy chegou a Campo Maior? Manuel Fernandes sorri a contar a história. «Há um empresário que me liga uma semana antes do campeonato começar a dizer: ‘Ó mister, tenho aqui um ponta de lança holandês, vai ficar maluco com ele. Eu disse: ‘Amanhã vou fazer um jogo-treino ao Estoril, não tenho ponta de lança para jogar, leva o gajo ao Estoril que eu vejo-o.’ No dia do jogo disse ao meu adjunto para ir buscar um holandês loiro que devia estar lá fora.» Não era loiro aquele rapaz de 23 anos que esperava lá fora, de mala na mão. Era, isso sim, craque. «Calçou as botas e jogou. Eu vi coisas dele interessantes e perguntei ao presidente se ele podia ir uma semana para Campo Maior connosco. Na terça-feira seguinte fomos fazer um jogo a Beja. Ao fim de 20 minutos disse ao presidente para fazer um contrato com ele.»

Essa época não correu bem, o Campomaiorense acabou por descer. Manuel Fernandes saiu a meio da temporada, mas também aí fica a memória de um clube diferente. A rescisão decidiu-se num jantar. «O presidente estava com receio de dizer que me ia despedir. E eu disse: ‘Ó presidente, isto não há nada a fazer. Vamos chegar a acordo. Connosco nunca houve problemas nem nunca vai haver.' E até hoje tenho uma amizade muito grande com ele.»

«Todo o Alentejo se mobilizou para a final do Jamor»

O Campomaiorense desceu, subiu na temporada seguinte e manteve-se mais quatro épocas na Liga. Em 1999 viveu um momento único, a presença na final da Taça de Portugal. É até hoje o único clube alentejano a chegar ao Jamor. Inesquecível para quem viveu aqueles tempos, apesar de ter sido o Beira Mar, naquela «final dos pequenos», a levantar a Taça.

«Toda a vila se mobilizou para ver a final da Taça do Jamor. Foi extraordinário e o Alentejo uniu-se a Campo Maior. O estádio estava cheio e mais de metade eram adeptos do Campomaiorense, ou seja, foi o Alentejo todo que se mobilizou para esse jogo.» A recordação é de Luís Maia, o atual coordenador desportivo do Campomaiorense, que esteve no Jamor e viveu como adepto aqueles anos do Campomaiorense na Liga.

«A minha ligação vem desde criança. Eu tinha os meus seis, sete anos, comecei a vir ver o futebol ao estádio e tive sempre uma paixão grande pelo futebol e pelo Campomaiorense. Depois, fomos acompanhando os bons tempos do Campomaiorense, com as subidas de divisão, da III até à Liga. Foram momentos inesquecíveis para o resto das nossas vidas», conta Luís Maia, a recordar «uma grande cumplicidade entre o clube a população»: «Havia sempre gente a ver os treinos e depois ao fim de semana nos jogos. Tanto nas subidas como depois na I Divisão era um ambiente extraordinário que se vivia aqui, desde o jardim até à chegada ao estádio. Fazíamos claque, vinha a claque toda junta.»

Decisão de extinguir futebol profissional «mais do que ponderada»

Mas esses tempos acabaram. Em 2001 o Campomaiorense desceu e no fim da temporada seguinte decidiu extinguir o futebol profissional. «Foi uma decisão mais do que ponderada», disse João Manuel Nabeiro ao Maisfutebol, anos mais tarde: «O despesismo com os salários dos jogadores profissionais começava a ficar fora das nossas possibilidades.»

«O nosso presidente decidiu tomar outro rumo e neste momento vê-se que foi o acertado, vê-se como está a situação do país, aquilo que aconteceu com os clubes que faziam grandes investimentos», observa Luís Maia: «Decidiu a tempo que não se podia continuar com estes investimentos, porque é uma terra muito pequena onde há apenas um patrocinador, que é a Delta Cafés. E mudámos o paradigma do clube.»

O Campomaiorense ainda voltou a ter futebol sénior, nos distritais. Mas também acabou por extingui-lo. Luís Maia treinou a equipa principal durante duas épocas e conta que as circunstâncias já eram bem diferentes e também se revelaram insustentáveis. «A interiorização também tem um forte impacto. Os miúdos que nós queríamos que fossem a base da equipa, que vinham dos juniores, acabavam por sair para estudar. Os que não iam estudar trabalhavam. Antes as fábricas trabalhavam só com o turno diurno, dava tempo para treinarem. Agora, com a evolução de tudo, inclusive da empresa, era impossível estarem presentes nos treinos todos. Tínhamos que novamente voltar a pagar para ir buscar gente fora, e achámos que não era esse o paradigma que nós queremos.»

O PRESENTE

«Dar voz aos miúdos da terra»

O que o Campomaiorense quer, e tem feito, é focar-se na formação. «Queremos é dar voz e responsabilidade aos miúdos da terra. Hoje temos meninos dos 5 anos até aos 18 a praticar futebol. Além das modalidades», diz Luís Maia: «O Campomaiorense abriu portas à sua população para a prática do desporto. Temos aproximadamente 500 atletas em todas as modalidades e acho que foi o passo certo na hora certa, não continuar com investimentos tão grandes.»

Nestes anos, Rui Nabeiro continuou a manter a ligação ao clube, conta Luís Maia. «O Sr. Rui estava sempre presente quando era chamado, e vinha sempre com o seu sorriso e com a sua palavra. Não havia uma criança que ele não cumprimentasse. No fim das épocas, principalmente quando havia uma equipa que ganhava, vinha sempre entregar a faixazinha de campeão aos miúdos, entregar a tacinha. Sempre que os miúdos lhe pediam alguma coisa quando iam a torneios, que eram dispendiosos, falavam com o sr. Rui e ele dava uma ajuda monetária para os miúdos poderem participar.»

O apoio para lá do Campomaiorense e a Supertaça Rui Nabeiro

Rui Nabeiro, através da Delta, não apoiou apenas o Campomaiorense. Ao longo do tempo, mesmo nos anos de aposta mais forte no clube, a empresa patrocinou múltiplos clubes, sobretudo no Alentejo. Essa ligação ao desporto mantém-se até hoje, não só no futebol mas também nas modalidades. «O Campomaiorense era o grande apoio. Mas a Delta sempre apoiou o desporto», diz ao Maisfutebol Daniel Pina, presidente da Associação de Futebol de Portalegre: «Apoia clubes e coletividades de norte a sul e até nas ilhas.»

Rui Nabeiro é uma figura de referência também no desporto, e bem para lá de Campo Maior. Como sinal de reconhecimento, a AF Portalegre batizou a Supertaça distrital com o seu nome. A final realiza-se todos os anos em Campo Maior e Rui Nabeiro nunca faltava, conta Daniel Pina. «Ele fazia sempre questão de estar presente a entregar a Taça e as medalhas.»

E houve ocasiões em que a sua presença até chegou a evitar alguns dissabores, sorri o dirigente: «Às vezes, naquelas finais que corriam menos bem, em que no final não é fácil manter as pessoas calmas, o senhor Rui ia lá e naquele momento ninguém se pronunciava, ninguém dizia nada nem ao árbitro nem a ninguém, porque as pessoas respeitavam o comendador. A simples presença dele fazia com que as pessoas estivessem mais calmas e houvesse mais respeito.»

A final desta época está prevista para breve. Daniel Pina gostava que ela pudesse servir de homenagem a Rui Nabeiro: «Este ano, por acaso, vamos ter a final da Supertaça dentro de 10 dias, em Campo Maior. Vamos ver se o seu filho, o João Manuel Nabeiro, que é também presidente do Campomaiorense, pode estar em sua representação. Esperamos que sim. Seria uma festa bonita, por ser em Campo Maior.»

O período áureo do Campomaiorense representou muito para muita gente, não apenas gente de Campo Maior. Daniel Pina dá o seu exemplo, a lembrar como ia frequentemente ver o clube jogar, apesar de viver em Portalegre. «O Campomaiorense na altura era a referência não só do Alto Alentejo mas também de uma região, que é o Alentejo todo. Era apoiado pelo Alentejo todo», conta. «Todos os anos ia a Campo Maior ver jogos do Campomaiorense quando estava na I Divisão. Lembro-me perfeitamente da final da Taça.»

Irrepetível, no país dividido entre «a esquerda e a direita da A1»

O que viveu o Campomaiorense só foi possível graças à aposta da família Nabeiro, ninguém tem dúvidas sobre isso. E é provavelmente irrepetível, considera Daniel Pina, olhando para o presente e o futuro do futebol no distrito e na região.

«Muito dificilmente volta a acontecer. O futebol mudou, o futebol profissional sobrevive através das SAD. Muito dificilmente voltaremos a ter uma equipa do Alentejo na I Divisão, por falta de investidores que queiram criar uma SAD e investir aqui. Muitas vezes não tem a ver com o tamanho em si da localidade do clube, mas com o investimento que há à volta, o tecido empresarial. E, como se percebeu nestes dias com o falecimento do comendador Rui Nabeiro, não há em todo o lado uma multinacional como a Delta. Isto é caso único», diz o dirigente. São os custos do interior, continua: «Cada vez temos aqui menos pessoas. Provavelmente neste momento o distrito de Portalegre já tem menos de 100 mil habitantes, sendo que mais de metade tem idade superior a 60 anos. Isto passa-se no interior todo. Isto há quase dois países, há um país à direita da A1 e outro à esquerda da A1.»

«Isso nota-se em todos os setores e também no futebol», acrescenta. E acontece em Portalegre, apesar de a associação, diz, até estar a contrariar as expectativas e a crescer em praticantes. «Pelo segundo ano consecutivo temos o maior número de sempre de atletas a praticar futebol e futsal. Estamos, contrariamente à perda de população, a conseguir aumentar o número de atletas. Há um crescimento muito grande no futebol feminino e também no futsal», diz. Mas isso perde-se na transição para a maioridade: «Onde temos mais dificuldade é nos seniores, porque quando eles chegam à idade de ir para a Faculdade vão e já não voltam. Ou então vão para outros locais à procura de trabalho que não encontram aqui.»

Sinal disso são as várias equipas que no Alentejo já recusaram subir aos nacionais, por causa dos custos. «Por acaso nos últimos anos não tem acontecido. A equipa campeã tem aceitado e tem subido. Mas há dificuldades, porque com as diferenças entre um Distrital pequeno e as exigências do Campeonato de Portugal há muitos clubes que não têm capacidade.»

O exemplo que fica do «senhor Rui»

Campo Maior tem sido um oásis nessa realidade de que o Alentejo e o interior não conseguem fugir. «Era o único concelho que ainda conseguia combater alguma coisa, porque tinha a Delta. Chegava a ser o único concelho, por exemplo, que não perdia população. Ainda é», diz Daniel Pina, acrescentando no entanto que com o desaparecimento de Rui Nabeiro há algum receio em relação ao futuro de algumas empresas do grupo, «as que não dão lucro»: «Neste momento as pessoas estão um bocado receosas, porque a parte humana do comendador vai desaparecer.»

O lado humano de Rui Nabeiro é o que fica também se olharmos para a história desportiva que acompanhou o seu percurso. Como diz Luís Maia, a falar do que fica daqueles anos de ouro do Campomaiorense: «O que fica é a imagem que o senhor Rui nos deixa, que é acreditar, sonhar que tudo é possível. Uma equipa de uma vila com oito mil habitantes perseguir um sonho e saber que se consegue realizar. No fundo o que fica é isso, é a gente poder acreditar que com trabalho, com esforço, com luta, tudo na vida se consegue. E nós conseguimos lá chegar. Era no fundo esse o grande exemplo que ele nos deixava todos os dias.»

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