Homicídio com 688 anos revela teia complexa de adultério e extorsão. Ou como uma aristocrata rica e influente se vingou do amante

CNN , Mindy Weisberger*
28 jun, 19:00
A carta de 1332 do Arcebispo da Cantuária acusava Ela Fitzpayne, uma aristocrata abastada, de cometer adultério em série "com cavaleiros e outros, solteiros e casados, e até com clérigos em ordens sagradas". Registo de John de Stratford/Arquivo de Hampshire/Conselho do Condado de Hampshire

Numa movimentada rua de Londres, numa tarde de maio de 1337, o sol começava a pôr-se quando um grupo de homens se aproximou de um padre chamado John Forde. Cercaram-no em frente a uma igreja, nas imediações da antiga Catedral de São Paulo, esfaquearam-no no pescoço e no abdómen, e fugiram.

Testemunhas identificaram os assassinos, mas apenas um dos agressores foi detido. Quanto à mulher que alegadamente orquestrou este ataque audaz e chocante - Ela Fitzpayne, uma aristocrata rica e influente - nunca foi levada à justiça, de acordo com os registos históricos que documentam o caso.

Quase 700 anos depois, vieram a público novos detalhes sobre os acontecimentos que antecederam este crime brutal e sobre a nobre que terá estado por detrás dele. As suas atividades criminosas incluíam roubo e extorsão, além do assassinato de Forde - que também teria sido seu amante.

Forde (cujo nome também surge nos registos como “John de Forde”) poderá ter integrado um grupo criminoso liderado por Fitzpayne, segundo um documento recentemente descoberto. O grupo assaltou um priorado próximo, sob domínio francês, aproveitando-se da deterioração das relações entre Inglaterra e França para extorquir a igreja, revelaram os investigadores num estudo publicado recentemente na revista Criminal Law Forum.

No entanto, o padre renegado poderá ter traído Fitzpayne junto dos seus superiores religiosos. O Arcebispo da Cantuária escreveu uma carta em 1332 - agora associada ao assassinato de Forde, de acordo com o novo relatório - na qual denunciava Fitzpayne e a acusava de cometer adultério em série “com cavaleiros e outros, solteiros e casados, e até com clérigos de ordens sagradas”.

A carta do arcebispo identificava um dos muitos amantes de Fitzpayne: Forde, pároco de uma igreja numa aldeia situada nas terras da família Fitzpayne, em Dorset. Na sequência desta acusação, a Igreja impôs a Fitzpayne uma humilhante penitência pública. Anos mais tarde, ela terá procurado vingança, ordenando o assassinato de Forde, segundo o autor principal do estudo, Manuel Eisner, professor da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e diretor do Instituto de Criminologia da instituição.

O projeto Medieval Murder Maps recolhe casos de homicídio e outras mortes súbitas ou suspeitas ocorridas em Londres, Oxford e York, no século XIV, incluindo o local do assassinato do padre John Forde
O projeto Medieval Murder Maps recolhe casos de homicídio e outras mortes súbitas ou suspeitas ocorridas em Londres, Oxford e York, no século XIV, incluindo o local do assassinato do padre John Forde. Medieval Murder Maps/Instituto de Criminologia da Universidade de Cambridge/Historic Towns Trust

Este homicídio com 688 anos “fornece-nos mais provas do envolvimento do clero em assuntos seculares - e do papel muito ativo das mulheres na gestão dos seus negócios e das suas relações”, diz à CNN Hannah Skoda, professora associada de História Medieval no St. John’s College da Universidade de Oxford, no Reino Unido.

“Neste caso, os acontecimentos desenrolaram-se ao longo de um período bastante extenso, com ressentimentos persistentes, desejos de vingança e emoções à flor da pele”, considera Skoda, que não esteve envolvida na investigação.

As novas pistas sobre o assassinato de Forde revelam as dinâmicas dos crimes de vingança na Idade Média e mostram como a sua execução em espaços públicos prestigiados podia funcionar como uma forma de demonstração de poder.

O mapa do homicídio

Eisner é cocriador e líder do projeto Medieval Murder Maps, um recurso digital interativo que reúne casos de homicídio e outras mortes súbitas ou suspeitas ocorridas em Londres, Oxford e York no século XIV. Lançado pela Universidade de Cambridge em 2018, o projeto traduz registos dos livros dos corregedores - documentos escritos em latim por juízes medievais, onde eram anotados os detalhes e motivos dos crimes com base na deliberação de um júri local. Os jurados ouviam as testemunhas, examinavam as provas e nomeavam um suspeito.

No caso do assassinato de Forde, o registo do corregedor indicava que Fitzpayne e Forde tinham tido uma disputa, e que ela persuadiu quatro homens - o seu irmão, dois criados e um capelão - a matá-lo. Naquela fatídica noite, enquanto o capelão se aproximava de Forde na rua e o distraía com uma conversa, os seus cúmplices atacaram. O irmão de Fitzpayne cortou-lhe a garganta, e os criados esfaquearam Forde no abdómen.  Apenas um dos agressores, um criado chamado Hugh Colne, foi acusado e preso em Newgate em 1342.

O registo do corregedor concluiu que Fitzpayne persuadiu quatro homens - o irmão dela, dois criados e um capelão - a matar Forde após uma discussão com o padre
O registo do corregedor concluiu que Fitzpayne persuadiu quatro homens a matar Forde após uma discussão com o padre. Arquivos de Londres/City of London Corporation

“Fiquei inicialmente fascinado pelo texto do registo do corregedor”, conta Eisner à CNN, descrevendo os acontecimentos como “uma cena quase onírica que conseguimos observar através dos séculos”. O relatório despertou em Eisner a vontade de saber mais.

“Quis saber o que os membros do júri de investigação discutiram”, lembra. “Questionei-me por que razão e como Ela convenceu quatro homens a matar um padre, e qual terá sido a natureza desta antiga disputa entre ela e John Forde. Foi isso que me levou a aprofundar a investigação.”

"Sede de vingança"

Eisner encontrou a carta do arcebispo numa tese de 2013 da historiadora medieval e autora Helen Matthews. Na acusação, o arcebispo impôs a Fitzpayne punições severas e uma penitência pública, que incluía doar grandes quantias de dinheiro aos pobres, abster-se de usar ouro ou pedras preciosas e caminhar descalça pela Catedral de Salisbury até ao altar, carregando uma vela de cera com cerca de dois quilos. Foi-lhe ordenado cumprir esta chamada “caminhada da vergonha” todos os outonos, durante sete anos consecutivos.

Apesar de aparentemente ter desafiado o arcebispo e nunca ter cumprido a penitência, a humilhação “pode ter desencadeado a sua sede de vingança”, escreveram os autores do estudo.

A segunda pista descoberta por Eisner foi uma investigação de 1322 sobre Forde e a aristocrata, conduzida por uma comissão real na sequência de uma denúncia apresentada por um priorado beneditino francês próximo do castelo dos Fitzpayne. O relatório foi traduzido e publicado em 1897, mas até então ainda não tinha sido relacionado com o assassinato de Forde.

Uma ilustração mostra a zona em redor da antiga Catedral de São Paulo em 1540, a área onde Forde foi morto dois séculos antes
Uma ilustração mostra a zona em redor da antiga Catedral de São Paulo em 1540, a área onde Forde foi morto dois séculos antes. World History Archive/Alamy Stock Photo

Segundo a acusação de 1322, o grupo de Fitzpayne - que incluía Forde e o seu marido, Sir Robert, um cavaleiro do reino - destruiu portões e edifícios do priorado, roubando cerca de 200 ovelhas e cordeiros, 30 porcos e 18 bois, que foram levados para o castelo.  Eisner afirmou ter ficado surpreendido ao descobrir que Fitzpayne, o seu marido e Forde estavam envolvidos num caso de roubo de gado num período marcado por tensões políticas com a França.

“Foi um momento bastante empolgante”, afirma. “Nunca teria imaginado que estes três fizessem parte de um grupo envolvido numa guerra de baixo nível contra um priorado francês.”

"Especialistas em violência"

Naquela época da história britânica, a violência era comum entre os habitantes das cidades. Em Oxford, por exemplo, a taxa de homicídios, no final da Idade Média, situava-se entre 60 a 75 mortes por 100 mil habitantes - cerca de 50 vezes superior à atual. Um registo de Oxford descreve “estudantes em fúria armados com arcos, espadas, escudos, fundas e pedras”. Outro relato refere uma altercação numa taberna que evoluiu para um confronto generalizado nas ruas, envolvendo facas e machados de guerra.

Mas, apesar de Inglaterra na época medieval ter sido um período violento, “isto não significa que as pessoas não se importassem com a violência”, salienta Skoda. “No contexto legal, político e comunitário, havia muita preocupação e inquietação face aos elevados níveis de violência.”

O projeto Medieval Murder Maps “oferece perspetivas fascinantes sobre como as pessoas cometiam atos de violência, mas também sobre como se preocupavam com essa violência”, sublinha Skoda. “As pessoas denunciavam, investigavam, processavam e confiavam muito na lei.”

A teia complexa de adultério, extorsão e assassinato de Fitzpayne revela também que, apesar das limitações sociais, algumas mulheres de Londres no final da Idade Média tinham poder de ação - especialmente quando se tratava de crimes tão graves como homicídios.

“Ela não foi a única mulher a recrutar homens para matar, a fim de proteger a sua reputação”, nota Eisner. “Assistimos a um evento violento que revela um mundo onde os membros das classes altas eram especialistas em violência, dispostos e capazes de matar para manter o poder.”

*Mindy Weisberger é uma jornalista científica e produtora de media, com trabalhos publicados na Live Science, Scientific American e na revista How It Works. É autora do livro Rise of the Zombie Bugs: The Surprising Science of Parasitic Mind-Control (Hopkins Press)

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