Mais de dois anos após o início da pandemia de covid-19, provavelmente já conhece o básico das medidas de proteção: vacinas, reforços, lavagem adequada das mãos e uso de máscara. Mas uma das ferramentas mais poderosas contra o coronavírus é aquela que os especialistas acreditam só agora estar a começar a receber a atenção que merece: a ventilação.
Corrente respiratória
“O maior desafio para as empresas que melhoram a qualidade do ar é o facto de ele ser invisível”, disse Joseph Allen, diretor do Programa Edifícios Saudáveis da Faculdade de Saúde Pública T.H. Chan da Universidade de Harvard.
E é verdade. Outras ferramentas covid são mais concretas. Mas visualizar a forma como o vírus se comporta em espaços mal ventilados pode ajudar as pessoas a entenderem melhor esta medida de mitigação.
Allen compara-o ao fumo do cigarro. “Se eu estiver a fumar no canto de uma sala de aula e houver pouca ventilação/filtração do ar, a sala vai encher-se de fumo e todos respirarão o mesmo ar.”
Depois, apliquemos isso ao ar livre.
“Eu podia estar a fumar um cigarro, e se alguém estivesse a alguns metros de mim, dependendo da direção do vento, podia nem dar conta que eu estava a fumar.”
Se estivermos dentro de casa, podemos estar a respirar menos ar fresco do que pensamos.
“As pessoas que estão todas juntas numa sala estão constantemente a respirar o ar que acabou de sair dos pulmões das outras pessoas na mesma sala. E, dependendo da taxa de ventilação, esse ar vindo dos pulmões de outras pessoas pode representar até 3% ou 4% do ar que respiram”, disse Allen.
O diretor chama a isto corrente respiratória.
“Normalmente, não é um problema, certo? Fazemos isso a toda a hora. Estamos sempre a permutar os microbiomas respiratórios. Mas se alguém estiver doente e infeccioso... esses aerossóis podem transportar o vírus. E isso é um problema.”
Está no ar
“Há décadas que sabemos como manter num edifício as pessoas protegidas contra infeções, contra doenças infeciosas transmitidas pelo ar, como esta”, disse Allen.
Desde o início da pandemia que Allen e outros especialistas deram o alerta, dizendo que a maneira como estávamos a pensar sobre a transmissão da covid-19 - superfícies, grandes gotículas respiratórias - estava a falhar redondamente.
“A lavagem das mãos e o distanciamento social são apropriados mas, na nossa opinião, insuficientes para proteger contra as microgotículas respiratórias portadoras do vírus libertadas para o ar por pessoas infetadas. Este problema é especialmente grave em ambientes de interior ou cobertos, especialmente aqueles com muita gente e pouca ventilação”, afirmaram centenas de cientistas numa carta aberta em julho de 2020.
Por fim, a Organização Mundial da Saúde e os Centros de Controlo e Prevenção de Doenças dos EUA reconheceram o que os especialistas sempre disseram: que a covid-19 também podia transmitir-se através de pequenas partículas aerossolizadas que podem percorrer até dois metros.
O coronavírus, em si, é muito pequeno – tem cerca de 0,1 mícrons - mas isso não afeta a distância que ele pode percorrer.
“O tamanho do vírus em si não importa porque, como dizemos, o vírus nunca viaja sozinho. Por outras palavras, o vírus viaja sempre em partículas respiratórias que se desenvolvem nos nossos pulmões. E essas são de todos os tamanhos,” disse Allen.
Cantar ou tossir pode emitir partículas tão grandes como 100 mícrons (quase a largura de um fio de cabelo humano), explicou, mas o vírus tende a viajar em partículas menores - entre 1 a 5 mícrons.
O tamanho destas partículas não só afeta a distância que podem percorrer, mas também quão profundamente podemos inspirá-las nos nossos pulmões e que abordagem devemos ter para nos protegermos deste vírus.
“Quando falamos sobre uma doença transmitida pelo ar, há o que temos ao nosso redor, o tipo de pessoa que conhecemos que nos pode tossir na cara, aquilo dos 2 metros de distanciamento, e depois há o ar interior mais amplo, porque dentro de casa o ar é recirculado”, afirmou Max Sherman, líder da Epidemic Task Force da Sociedade Americana de Engenheiros de Aquecimento, Refrigeração e Ar Condicionado.
Diluir e limpar
“O ar livre é mais seguro do que dentro de casa” tornou-se um mantra aceite com a covid-19. Allen sublinha que protegermo-nos dentro de casa é onde deve estar sempre o nosso foco, mesmo além da pandemia.
“Somos [uma] espécie de interior. Passamos 90% do nosso tempo dentro de casa. O ar que respiramos dentro de casa tem um enorme impacto na nossa saúde, se pensarmos em doenças infecciosas ou qualquer outra coisa, mas durante muito tempo escapou da consciência pública”, disse.
Garantir que o ar interior seja saudável não é muito complicado, disse Sherman. “Só temos de reduzir o número de partículas que podem transportar a covid ou qualquer outro [vírus] desagradável.”
E podemos fazer isso através de ventilação e da filtração.
A filtração - tal como o nome indica – passa por filtrar ou limpar o ar, removendo as partículas infetadas. Mas pensemos na ventilação como uma diluição do ar. Trazemos mais ar fresco para reduzir a concentração dessas partículas.
A diluição é exatamente o motivo pelo qual não vimos eventos de superdisseminação ao ar livre, diz Allen.
“Quase não existe transmissão ao ar livre. E porquê? Diluição ilimitada, porque temos ventilação ilimitada. E assim, mesmo em manifestações sobrelotadas ou eventos desportivos ao ar livre, como a Super Bowl, não vemos uma superdisseminação. Se isso acontecesse, rapidamente daríamos o alerta, mas simplesmente não acontece. Acontece tudo dentro de casa em espaços insalubres e de baixo desempenho.”
Espaços saudáveis
Mesmo antes do advento dos sistemas HVAC (sistemas de climatização), a ventilação já era integrada em muitos projetos de construção.
A Lei dos Edifícios de Nova Iorque, de 1901, exigia que todos os prédios residenciais - um prédio com várias unidades multifamiliares - tivessem ventilação, água canalizada e iluminação a gás.
Os construtores adicionaram ventilação a muitos desses edifícios com um poço no meio que vai do telhado ao chão, permitindo mais fluxo de ar.
"No final do Séc. XIX, as pessoas começam finalmente a entender como se transmitem as doenças. Assim, os respiradouros e a ventilação começaram a ser vistos como uma solução para as crises de saúde pública que aconteciam nos prédios”, disse Katheryn Lloyd, diretora de programação do Tenement Museum. “Houve muitos casos de tuberculose, difteria e outras doenças que se espalharam. Agora sabemos que se espalharam pelo ar.”
Hoje em dia, enfrentamos o mesmo desafio.
“Ter ventilação básica em casa é importante, ponto final”, disse Sherman.
Uma das maneiras mais fáceis e baratas de fazer isso é abrir as janelas.
Abrir as portas ou as janelas em extremidades opostas de casa para criar uma ventilação cruzada, aconselha a Agência de Proteção Ambiental. Abrir as janelas mais altas e mais baixas - especialmente se estiverem em pisos diferentes - numa casa, também pode aumentar a ventilação. Adicionar uma ventoinha interior pode melhorar ainda mais a ventilação.
“Se for usada uma ventoinha, deve estar voltada (e a soprar ar) na mesma direção em que o ar se move naturalmente. Podemos determinar a direção em que o ar se move naturalmente observando o movimento das cortinas, segurando um tecido leve ou soltando recortes de papel e observando a direção em que se movem”, diz a EPA.
Abrir ligeiramente uma janela já pode ajudar muito, diz Allen. “Basta abrir uma janela poucos centímetros para facilitar a entrada de ar, especialmente se isso for feito em vários lugares da casa, para que se possa criar alguns diferenciais de pressão.”
É importante observar que, se tiver um sistema HVAC, ele deve estar a funcionar para realmente circular ou filtrar o ar. A EPA diz que esses sistemas funcionam menos de 25% do tempo durante as estações de aquecimento e arrefecimento.
“A maioria dos comandos, hoje em dia, tem uma configuração em que podemos colocar o ventilador no mínimo o tempo todo. E isso geralmente é a melhor coisa a fazer, porque garante que estamos a empurrar o ar pelo filtro, a toda a hora, e a misturar o ar em casa”, aconselhou Sherman.
Isso pode ser algo a ter em mente se receber visitas ou se alguém da casa estiver em maior risco de doença grave.
Escolha o filtro mais eficiente para o seu sistema HVAC e certifique-se que troca os filtros regularmente.
Os filtros têm um valor mínimo de eficiência, ou MERV, classificação que indica quão bem captam as partículas pequenas. A Sociedade Americana de Engenheiros de Aquecimento, Refrigeração e Ar Condicionado recomenda o uso de, pelo menos, um filtro MERV-13, que alega possuir uma eficiência de 85% na captura de partículas entre 1 a 3 mícrons.
Se isso não for uma opção, os filtros de ar portáteis também podem funcionar bem, mas a EPA diz para usar um adequado ao tamanho da sala visada e que cumpra pelo menos um destes critérios:
- Projetado como de alta eficiência (HEPA)
- Classificação CADR
- O fabricante diz que o dispositivo removerá a maioria das partículas abaixo de 1 mícron
Encontrar um espaço seguro
Quando entramos num espaço, não há uma boa maneira de olharmos em redor e avaliarmos quão bem ventilado é e isso pode ser um desafio quando as pessoas têm a tarefa de avaliar o seu próprio risco.
Allen sugere começar com o básico. Certifique-se de que tem as vacinas em dia e como estão os números da covid-19 na sua comunidade.
Depois, torna-se mais difícil. Nem o número de pessoas num espaço é uma indicação de uma situação de maior risco.
“Quanto mais pessoas lá dentro, maior poderá ser o risco porque é mais provável que haja alguém infetado, mas se a ventilação for boa, isso realmente não importa.”
Os padrões de ventilação têm como base “uma quantidade de ar fresco por pessoa, mais a quantidade de ar fresco por metro quadrado”, explicou Allen. “Então, se o sistema de ventilação for bom, quanto mais pessoas entrarem na sala, mais ventilação será trazida para a sala.”
Uma ferramenta que pode ajudá-lo a avaliar a ventilação de uma sala é um monitor de CO2, algo que Allen gostaria que fosse mais usado em espaços públicos. Ele gosta de andar com um portátil, que pode encomendar online e que custam entre 100 a 200 dólares (92 a 185 euros).
“Se vir que há menos de 1000 partes por milhão, então, está nas metas de ventilação que são o padrão. Mas lembre-se, não são padrões baseados na saúde. Portanto, queremos taxas de ventilação mais altas.”
Allen prefere ver o CO2 igual ou inferior a 800 partes por milhão. Ele também afirma que, só porque um espaço tem baixos níveis de CO2, não quer dizer que seja inseguro, se a filtragem for alta, como acontece num avião.
Um fator de mudança para as escolas
A responsável pela Direção de Escolas Públicas de Atlanta, Lisa Herring, diz que a instalação de 5000 unidades de filtragem de ar - o suficiente para todas as salas de aula – nos seus agrupamentos escolares, é “um fator de mudança”.
A Direção Escolar começou a atualizar os sistemas HVAC em várias escolas, mesmo antes da pandemia, mas o financiamento federal permitiu adicionar unidades de filtragem durante o período crucial em que as máscaras se tornaram opcionais.
“Dá-nos um maior nível de confiança, enquanto direção, saber que os nossos sistemas de filtragem de ar estão a funcionar”, disse Herring.
As direções escolares de todos os Estados Unidos têm aproveitado a oportunidade para atualizar os sistemas de ventilação recorrendo ao financiamento federal.
Uma análise realizada em fevereiro pela FutureEd, um grupo de estudo da Faculdade de Políticas Públicas McCourt da Universidade de Georgetown, descobriu que as escolas públicas destinaram 4,4 mil milhões de dólares para projetos de climatização, valores que podem chegar a quase 10 mil milhões, se as tendências se mantiverem.
A direção escolar de Manchester, em New Hampshire, está a investir quase 35 milhões de dólares na atualização dos sistemas HVAC, e a diretora interina, Jennifer Gillis, diz que o financiamento federal é “absolutamente fundamental”.
"Se pensarmos numa direção escolar do tamanho da nossa, com todas as exigências e a necessidade de ser fiscalmente responsável, um projeto de 35 milhões de dólares é um grande projeto para incluir no nosso orçamento. Ter esses fundos disponíveis permite-nos realizar 19 projetos - e 19 projetos num curto espaço de tempo.”
Para Gillis, a ventilação tem sido uma importante estratégia de mitigação e uma maneira discreta de manter as pessoas seguras.
“É algo em que a maioria das pessoas não pensa, mas é uma maneira muito passiva de criarmos segurança dentro das escolas. Desde o início, o objetivo sempre foi ‘vamos mandar os nossos filhos para a escola, vamos mandar os funcionários para a escola, mas vamos fazê-lo de uma forma que seja segura para todos.’”
Uma boa ventilação não tem apenas a ver com manter os alunos protegidos da covid-19, diz Sherman. Também pode melhorar o desempenho escolar.
“Eles vão aprender melhor, vão estar mais despertos, vão estar mais recetivos. Vão ser mais saudáveis se tiverem uma boa qualidade de ar interior”, disse ele.
Finalmente, na linha da frente
Ajudando a solidificar o papel da ventilação na batalha contra a covid-19, a administração Biden anunciou um Desafio Ar Limpo nos Edifícios, no mês passado.
O desafio pede aos administradores e aos proprietários de edifícios que melhorem a ventilação seguindo as diretrizes estabelecidas pela EPA.
As principais ações incluem a criação de um plano de ação de ar interno limpo, a otimização da ventilação do ar fresco, a melhoria da filtragem e da limpeza do ar e o envolvimento da comunidade do edifício, estabelecendo comunicação entre os ocupantes para aumentar a consciencialização, o empenho e a participação.
Pode parecer que a mensagem vem tarde, mas foi recebida com entusiasmo por Allen.
“A Casa Branca usou o seu púlpito para dizer inequivocamente que o ar limpo e os edifícios são importantes. Isso é fantástico, independentemente do que pensemos sobre o que acontecerá a seguir com a implementação ou o que acontecerá com o financiamento. É uma mensagem clara que está a ser ouvida pelas empresas, pelas organizações sem fins lucrativos, pelas universidades e pelos líderes estaduais. Já vejo essas mudanças a acontecer.”