“Os hospitais estão em rutura na área da Medicina Interna. Uma rutura que é muito perigosa”

12 abr 2023, 10:00
Hospital Santa Maria (Lusa/Tiago Petinga)

O novo bastonário denuncia o caos que se vive em algumas especialidades médicas, garante que a falta de especialistas está a afetar a qualidade dos serviços e deixa um aviso. "Podemos ter situações muito graves em Portugal se o Ministério da Saúde não der uma resposta". A solução, defende, seria avançar com uma verdadeira reforma do SNS e colocar os médicos a liderar as administrações hospitalares

(Segunda parte de uma grande entrevista com o novo bastonário da Ordem dos Médicos. Leia a primeira parte aqui: “Formaram-se 1300 novos médicos especialistas, mas o Ministério da Saúde não dá sinal de os querer contratar” e “os privados estão a oferecer-lhes trabalho”)

Muitos profissionais têm denunciado a falta de condições do Serviço Nacional de Saúde.  Neste momento pode estar em causa a segurança de alguma prestação de cuidados médicos?

Não vou criar nenhum alarmismo nos portugueses em relação a estas questões da segurança.  O que eu gostava é que a prestação de cuidados de saúde pudesse ter mais qualidade. Gostava que as equipas que dão resposta nos serviços de urgência fossem equipas que estivessem completas.  Gostava que os médicos, até do ponto de vista tecnológico, da organização dos próprios hospitais e dos centros de saúde, tivessem condições ótimas, que neste momento não têm. Não digo que há problemas de segurança, mas temos de ter atenção nisso, porque muito rapidamente podemos ter situações muito graves em Portugal se o Ministério da Saúde não der uma resposta a todas estas dificuldades.

Que situações graves são essas?

Por exemplo, a questão das equipas de urgência, na Cirurgia e na Medicina Interna.  Há hospitais neste momento, e posso até dizer sem nenhum receio, a maioria dos hospitais neste momento não têm médicos especialistas da área da Medicina Interna, que é uma especialidade pilar absolutamente fundamental nos hospitais, não só no serviço de urgência, mas sobretudo no serviço de urgência, mas também no internamento desta especialidade e no apoio a todas as outras especialidades. E aquilo que é do conhecimento da ordem dos médicos é que os hospitais neste momento estão em rutura nesta área da Medicina Interna.

E na sua opinião essa falta pode ter graves consequências?

A rutura nesta área é uma rutura muito perigosa, porque a falta de recursos humanos nesta área implica um menor grau de qualidade em termos de cuidados de saúde aos doentes. Mas também muitas outras especialidades, a Cirurgia, a Ortopodia, a Pediatria.

Acha que a decisão do Governo relativamente às maternidades está correta? 

Eu acho que a decisão do Governo em relação às maternidades tarda. Eu não conheço, confesso-lhe, nenhuma solução de fundo para resolver o problema. Eu sei que há soluções pontuais, há pequenos pensos rápidos para tentar colmatar as dificuldades do dia a dia.  Nós estamos perante uma gestão diária desta situação o que acho que é uma má opção.

Qual seria a opção correta?

Uma opção correta devia ser fazer uma reforma do fundo, e essa é a responsabilidade do Ministério da Saúde, em que a Ordem dos Médicos está perfeitamente disponível para ajudar em tudo aquilo que for necessário. Eu compreendo que perante as dificuldades diárias se tenha de apresentar também soluções imediatas para corrigir os problemas.  Não podemos estar à espera de uma reforma de fundo.  Mas aquilo que eu critico é que, além destas resoluções pontuais, também tem de se desencadear uma reforma, uma reestruturação do Serviço Nacional de Saúde porque o País mudou: tem outras necessidades, existem outras exigências e há a evolução da ciência e da medicina. E o País neste momento não está preparado para isso, e tem de estar.

Carlos Cortes defende uma verdadeira "reforma de fundo" no Serviço Nacional de Saúde, que responda às atuais exigências e desafios da ciência e da medicina. Foto: DR

Uma das questões do mandato anterior do seu antecessor foi a criação da nova especialidade de Medicina de Urgência. A OM acabou por não permitir a criação dessa especialidade.  Concorda com essa decisão?

Esta decisão foi tomada em dezembro de 2022, pela Assembleia de Representantes da Ordem dos Médicos, que é uma espécie de Assembleia da República da Ordem. Como bastonário, tenho de respeitar as decisões dos órgãos internos.

Mas em relação a essa questão, não podemos olhar para os problemas do serviço de urgência com uma única resolução, pois são multifatoriais. A criação da especialidade pode ajudar, mas não é a solução para resolver o problema da urgência. Ninguém pode dizer que se criando esta especialidade se iria resolver imediatamente o problema do serviço de urgência.

 Mas a criação desse especialidade poderia ser um passo no caminho certo?

Pode ajudar, obviamente, a uma reorganização do serviço de urgência. A Ordem dos Médicos está preocupada e nós neste momento estamos a criar um grupo de peritos dentro da Ordem dos Médicos precisamente para estudar todos estes fatores e apresentar uma solução muito concreta  para ajudar o Ministério da Saúde a resolver o problema da urgência.

O que acha que difere o atual ministro da Saúde, Manel Pizarro, da sua antecessora Marta Temido?

 Eu tenho muito respeito por quem desempenha cargos públicos. Todos eles, independentemente de concordar com as opções que foram ou que são tomadas A Ordem dos Médicos, na altura, teve divergências com a ministra Marta Temido, nomeadamente em relação à aproximação que nós entendemos que o Ministério da Saúde tem de ter com os profissionais de saúde, e com a Ordem dos Médicos.

O ministro Manel Pizarro é um ministro diferente, mas só está no cargo há seis meses.  Eu posso dizer que as expectativas eram grandes, e continuam a ser grandes. Há aqui também uma necessidade de gestão dessas expectativas. Eu esperaria mais nos primeiros tempos, confesso.  Mas também sou bastonário há sensivelmente duas semanas.  Temos uma reunião marcada com o ministro da Saúde para a próxima semana, onde já estamos a elaborar um guião com os principais problemas que afetam o setor da saúde e que esperamos que o ministro resolva.  Portanto, eu vou dar também aqui algum tempo neste início do mandato. 

Eu disse na minha tomada de posse que não estarei permanentemente em conflito com o Ministério da Saúde, mas que serei permanentemente exigente com o Ministério da Saúde, na defesa dos cuidados de saúde, mas também aqui na defesa da dignificação da profissão médica,  que tem sido esquecida nestes últimos anos.

Uma das medidas destes governos PS foi acabar com as parcerias público-privadas (PPP) na saúde. Acha que foi uma boa medida?

Eu não tenho propriamente preconceitos ideológicos em relação a nenhuma formulação de gestão das unidades de saúde. O que nos importa, fundamentalmente, é saber se os cuidados de saúde estão a ser dados com qualidade e se os médicos têm condições adequadas para dar, para desenvolver a sua atividade. Eu confesso-lhe que estranho sempre muito quando se fala desta fatalidade do setor público gerir as suas unidades.

Parece que o setor privado tem sempre melhores condições para gerir as suas instituições e, no caso das PPP, as instituições do setor público da saúde. Eu não acho que tenha de existir essa fatalidade. Acho que o Serviço Nacional de Saúde e o Ministério da Saúde têm que saber apostar muito bem nas lideranças.

E não apostam?

É muito importante refletirmos profundamente sobre a questão das lideranças. Eu defendi no meu programa eleitoral e defendo como bastonário que o Ministério da Saúde tem de apostar nas lideranças médicas das instituições de saúde. Porque as lideranças médicas conseguem juntar de forma extremamente eficiente duas componentes de gestão. Por um lado, uma componente mais gestionária, uma área de gestão mais eficiente com uma governação mais clínica. E os médicos são aqueles profissionais que conseguem juntar estas duas áreas. E pode ser uma coincidência, mas se olharmos para alguns locais do país, onde percebemos que os hospitais têm tido melhores resultados, curiosamente, quem dirige esses hospitais são médicos.

Há exemplos internacionais, os hospitais de referência internacionais são dirigidos por médicos.  E eu penso que isso pode ser motivo de grande reflexão para o Ministério da Saúde, precisamente para ter as suas unidades melhor geridas.

 Acha então que os hospitais devem ter como presidente do Conselho de Administração sempre um médico?

Eu acho que a componente clínica é absolutamente fundamental. E se olharmos um pouco atrás na nossa história mais recente, nomeadamente no combate à pandemia, percebemos que foi fundamentalmente de liderança médica.  E em todas as áreas, não só na liderança clínica, mas também nos modelos de organização dos hospitais, dos centros de saúde e de toda esta rede que na altura foi posta à disposição da população para lutarmos contra a pandemia da Covid-19. E os resultados foram muito favoráveis.

Portanto, eu deixo ao Ministério da Saúde esta oportunidade para tentar rever estas questões da liderança e para apostar verdadeiramente em quem, no seu dia a dia, conhece muito bem as instituições e pode tomar as melhores soluções para elas.

Foi agora anunciado recentemente que se pondera a possibilidade de, no fundo, a interrupção voluntária da gravidez ser feita nos centros de saúde. Concorda?

A Ordem dos Médicos ainda não avaliou essa situação, mas parece-me uma situação um pouco complexa. Mas iremos com certeza avaliar, conjuntamente com o Colégio da Especialidade, essa proposta. 

Com Jornadas Mundiais da Juventude são esperadas milhares de pessoas. A nível da Saúde sabe se está a ser preparado algum plano? A Ordem foi envolvida em algum diálogo nesse sentido?

Neste momento não há nada de concreto, mas encetar reuniões com a organização para a Ordem dos Médicos poder dar o seu contributo naquilo que é a sua área, que é uma área técnica de apoio em termos de cuidados de saúde, de definição também daqueles que têm que ser os cuidados de saúde adequados. 

 

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