Durante séculos acreditou-se que este mito era sobre duendes, elfos e dragões. Afinal, foi só um erro de um escriba medieval

CNN , Mindy Weisberger*
18 out, 15:00
Song of Wade (Master and Fellows of Peterhouse/University of Cambridge)

Menos conhecida do que outras histórias populares sobre heróis lendários, como Gilgamesh, Beowulf e o Rei Artur, a Canção de Wade é um caso de estudo sobre o que acontece quando as histórias não são escritas.

O épico era amplamente conhecido na Inglaterra medieval e renascentista - tão popular que foi mencionado duas vezes por Chaucer -, mas hoje está praticamente esquecido. Apenas algumas frases sobreviveram, e novas pesquisas mostram como, quando tão pouco de uma história é preservado, a mudança de uma ou duas palavras pode alterar todo o conto.

A Canção de Wade teve origem no século XII, e flava de um herói que lutava contra monstros - ou pelo menos era o que os estudiosos pensavam. O único texto conhecido foi encontrado há quase 130 anos num sermão latino do século XIII, que citava um trecho da saga em inglês médio. No trecho, a palavra “ylues” foi originalmente traduzida como “elfos”, sugerindo que a saga há muito perdida de Wade estava repleta de criaturas sobrenaturais.

Investigadores da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, contestaram essa interpretação. Propuseram que o significado da palavra foi distorcido por um erro de transcrição de um escriba, que alterou um “w” para um “y”. “Elves” é, na verdade, “wolves” (lobos), e o termo era alegórico, referindo-se a homens perigosos, de acordo com a análise. Outra palavra no trecho, traduzida como “sprites” (duendes), deveria ser “sea snakes” (cobras marinhas), afastando ainda mais a história do reino do sobrenatural, relataram os investigadores na revista The Review of English Studies.

Esta nova leitura revê não só as frases citadas no sermão, mas também toda a Canção de Wade, colocando o herói no centro dos perigos mundanos, em vez de bestas míticas. Isso derruba a imagem de Wade como um gémeo literário de Beowulf, o lendário matador do monstro devorador de guerreiros Grendel, explica o coautor do estudo, Seb Falk, pesquisador de história da ciência e membro do Girton College de Cambridge.

“Ele era mais como um herói de romance cavalheiresco (um género literário que celebra cavaleiros, códigos de honra e amor romântico) como Sir Lancelot ou Sir Gawain”, diz Falk à CNN num e-mail.

Durante centenas de anos, historiadores e especialistas literários debateram por que Chaucer teria mencionado a Canção de Wade nas suas obras cavalheirescas. Reinterpretar Wade como um herói cortês em vez de um caçador de monstros torna a aparição de Wade na escrita de Chaucer mais adequada e pode ajudar a revelar significados anteriormente ocultos nessas referências literárias, escreveram os autores.

Um meme medieval

Os coautores do estudo, James Wade (à esquerda) e Seb Falk, estudam o sermão que menciona a Canção de Wade. Cortesia do Mestre e dos Membros da Peterhouse/Universidade de Cambridge

O novo estudo é o primeiro a analisar o trecho da Canção de Wade juntamente com a íntegra do sermão em latim que o cita, explica coautor do estudo, James Wade, professor associado de Literatura Inglesa no Girton College. (O sobrenome “Wade” era relativamente comum na Inglaterra medieval e, embora o pesquisador Wade não tenha conseguido confirmar uma ligação familiar com o herói lendário, uma ligação “não é impossível”, refere ainda à CNN num e-mail.)

Na verdade, foi o contexto do sermão que levou os investigadores a descobrirem que o fragmento em inglês havia sido mal interpretado, recorda Wade.

O sermão era sobre humildade e alertava que algumas pessoas “são lobos, como tiranos poderosos” que estão dispostos a obter algo “por qualquer meio”. Há outras alusões a traços animais desfavoráveis nos seres humanos. Conforme traduzido originalmente, o trecho da Canção de Wade dizia: “Alguns são elfos; alguns são duendes que habitam junto às águas: não há homem, exceto Hildebrand (pai de Wade)”.

Durante séculos, os estudiosos se esforçaram para entender por que referências a “duendes” e “espíritos” foram incluídas em um sermão sobre humildade. De acordo com a nova tradução, o trecho diz: “Alguns são lobos e outros são cobras marinhas que habitam perto da água. Não há nenhum homem, exceto Hildebrand.” Reinterpretadas desta forma, as frases citadas alinham-se mais estreitamente com a mensagem geral do sermão e redefinem o género da história.

“Percebemos que considerar o fragmento juntamente com o seu contexto nos permitiria não só reinterpretar completamente a lenda de Wade, mas também reformular a nossa compreensão de como as histórias eram contadas e recontadas em diferentes contextos culturais, incluindo contextos religiosos”, refere Wade.

As dificuldades de longa data na interpretação do trecho são um lembrete de que a paleografia - o estudo de documentos manuscritos - “nem sempre é uma ciência exata ou precisa”, explica a Stephanie Trigg, professora emérita de Literatura Inglesa da Universidade de Melbourne, na Austrália, “especialmente na transmissão de textos em inglês e outras línguas vernáculas sem a ortografia padronizada e as abreviações do latim”.

Focar no sermão também é importante, porque esse tipo de alusão a um épico popular era altamente incomum, dizTrigg, que não participou da pesquisa, à CNN por e-mail.

“Os autores estão certos em chamar a atenção para a forma como o sermão parece citar a cultura popular medieval: isso não é tão comum”, afirma Trigg. “Isso ajuda a perturbar algumas visões tradicionais sobre a piedade medieval”.

Quando o pregador usou a Canção de Wade no seu sermão, ficou claro que esperava que o seu público aceitasse a referência “como um elemento reconhecível da cultura popular: um meme”, aponta Falk. “Ao estudar este sermão em profundidade, obtemos uma visão maravilhosa sobre as ressonâncias que essa literatura popular tinha em toda a cultura.”

Investigadores descobriram uma referência da cultura pop à Canção de Wade num sermão medieval (foto). Cortesia do Mestre e dos Membros da Peterhouse/Universidade de Cambridge

Romântico e fantástico

Esta nova perspetiva sobre a saga de Wade não significa que o sermão se baseava exclusivamente no realismo. Embora não existam outros excertos conhecidos da Canção de Wade, referências a Wade em textos que abrangem vários séculos oferecem detalhes fantásticos o suficiente para encantar os fãs da épica obra “O Senhor dos Anéis”, de J.R.R. Tolkien.

“Num texto romântico, diz-se que (Wade) mata um dragão”, explica Falk. “Há um folclore local em Yorkshire, registrado por John Leland na década de 1530, que diz que ele era de estatura gigantesca.” Outros textos afirmavam que o pai de Wade era um gigante e que a sua mãe era uma sereia, acrescenta.

Na verdade, os romances cavalheirescos desse período frequentemente incorporavam elementos de fantasia, conta Trigg. Na tradição literária cavalheiresca, “os romances muitas vezes se baseiam em criaturas mitológicas e no sobrenatural”, e a distinção entre romances cavalheirescos e mitologia “nem sempre é feita de forma rigorosa na literatura medieval”, acrescenta.

Ainda assim, alinhar a Canção de Wade mais estreitamente com os romances medievais esclarece a confusão de longa data sobre as alusões a Wade feitas por Geoffrey Chaucer, durante cenas de intriga cortesã em “Merchant’s Tale” e “Troilus and Criseyde”.

“Chaucer referir-se a um guerreiro da “idade das trevas” semelhante a Beowulf nestes momentos é estranho e confuso”, explica Falk. “A ideia de que Chaucer se refere a um herói do romance medieval faz muito mais sentido.”

Embora a Canção de Wade tenha caído no esquecimento, a sua aparição no sermão medieval e na obra de Chaucer sugere que, durante séculos, a lenda foi um elemento básico da cultura popular na Inglaterra medieval, mesmo que não houvesse um texto definitivo que preservasse toda a história.

À medida que a sua popularidade diminuiu, grande parte dela desapareceu para sempre.

“No século XVIII, não havia textos conhecidos que tivessem sobrevivido e ninguém parecia conhecer a história”, explica Wade. “Parte do fascínio duradouro é a ideia de algo que antes fazia parte do conhecimento comum ter-se subitamente “perdido”.”

*Mindy Weisberger é escritora científica e produtora de média cujos trabalhos foram publicados nas revistas Live Science, Scientific American e How It Works. É autora de “Rise of the Zombie Bugs: The Surprising Science of Parasitic Mind Control” (Hopkins Press)

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