"Johnny Depp é o novo herói de todos os agressores do planeta". O julgamento de Amber Heard "não poderia ter sido mais cruel" para as "sobreviventes"

6 jun 2022, 22:00

Vários comentadores alertaram que o desfecho do julgamento de Amber Heard e Johnny Depp pode levar a que outras mulheres recuem nas denúncias de situações semelhantes. Mas Tarana Burke, criadora da hashtag #MeToo, reafirma que "este movimento está muito vivo"

"Para sobreviventes de violência masculina, o circo mediático e a orgia de violência machista que acompanhou" o julgamento de Johnny Depp e Amber Heard, "não poderia ter sido mais cruel", afirma Diana Pinto, da Liga Feminista do Porto. O veredicto "lembrou-nos a todas que a nossa dignidade está para sempre dependente da percepção pública da nossa santidade imaculada". "Estamos sempre a um deslize do linchamento popular e nenhuma de nós está segura. Se até a maravilhosamente loira, milionária, atriz norte-americana sofreu as consequências de recusar o silêncio, que inferno se imagina para nós?", pergunta esta ativista.

"Dezenas de organizações de mulheres, ativistas individuais, técnicas de apoio à vítima e coletivos feministas de todo o mundo têm vindo a publicar avisos sobre o impacto que este julgamento tem vindo a ter para as mulheres que acompanham. Sabemos que estão certas: Johnny Depp é o novo herói de todos os agressores do planeta. E portanto, sim, as vítimas certamente recuarão, não temos ilusões sobre isso. Mas as organizações de mulheres estarão aqui, como sempre estiveram, para dar resposta onde a lei não chega", diz Diana Pinto à CNN Portugal.

Na semana passada, um júri norte-americano considerou que Amber Heard e o ex-marido Johnny Depp foram culpados de se terem mutuamente difamado. Johnny Depp processou Amber Heard por causa de um artigo do Washington Post, publicado em dezembro de 2018, no qual ela afirmou ser vítima de violência doméstica. O ator de "Piratas da Caraíbas" alegou que, com estas declarações, Heard manchou sua reputação e prejudicou a sua carreira, mesmo que ela nunca tenha mencionado o nome de Depp. Heard reagiu, alegando que o advogado Adam Waldman a difamou ao descrever as suas alegações como uma “farsa”. Após um julgamento de seis semanas em Fairfax, Virgínia, o júri de sete elementos concedeu a Depp mais de 10 milhões de dólares de indemnização por danos, considerando que todas as três alegações de difamação que apresentou eram verdadeiras. O júri também concedeu a Heard 2 milhões de dólares de indemnização, concluindo que uma das três declarações de Waldman citadas no contra-processo era difamatória.

"O resultado deste julgamento afeta muito mais do que Depp e Heard, porque é a epítome do quanto a nossa sociedade [norte-americana] regrediu desde o auge do movimento #MeToo", escreveu Kara Alaimo, professora associada na Escola de Comunicação Lawrence Herbert da Universidade de Hofstra. "O facto de Depp ter processado Heard por difamação mostra a ameaça que outras mulheres terão agora de considerar ao ponderar se devem denunciar abusos: a possibilidade de poderem ser acusadas de difamação."

O resultado deste julgamento "é um lembrete" a todas as vítimas. "O movimento #MeToo não ensinou o mundo a levar a sério as reivindicações das mulheres e a apoiar as vítimas, mesmo que estas sejam imperfeitas. Este processo judicial teve início quando Heard ouviu que ela era uma figura pública que representava abuso doméstico. Agora, ela tornou-se uma figura pública que representa o abuso social contra as mulheres que ousam falar - e quão longe estamos desse vislumbre de esperança de há apenas alguns anos de que o movimento #MeToo poderia facilitar às vítimas de abuso a responsabilização dos seus agressores."

O julgamento afeta o MeToo de duas formas. Por um lado, descredibilizando o movimento. Com a decisão, "começou o trabalho árduo de nos ajudar a ver as mulheres não como uma classe de vítimas abusadas, mas como indivíduos". "Algumas dizem a verdade. Outras não. Algumas são alvos de pervertidos violentos. Algumas não. Infelizmente, todos nós fomos intimidadas pela multidão de queixas a ponto de perder a capacidade de dizer a diferença. E a causa dos direitos das mulheres foi a maior quase-vítima de uma sociedade que enlouqueceu", escreveu no Washington Post Andrea Peyser, uma das grandes críticas do MeToo.

Por outro lado, e como consequência, conduzindo as vítimas ao silêncio. À primeira vista, o veredicto representa um retrocesso para a luta de muitas vítimas de violência doméstica e sexual que, perante este resultado, podem agora hesitar em falar sobre as suas experiências ou desconfiar dos tribunais como um caminho para a justiça. Isso mesmo disse a advogada de Heard, Elaine Charlson Bredehoft, que admitiu que uma das conclusões que se podem tirar é que não se deve "acreditar nas mulheres mesmo quando têm fotografias". "Basicamente, a não ser que ela tivesse tirado o telemóvel, o iPhone e filmado enquanto ele lhe batia, ninguém vai acreditar nela, não aconteceu."

"Mulheres podem acabar feridas ou até mortas por não pedirem ajuda"

Michele Dauber, professora de direito na Universidade de Stanford e ativista contra as agressões sexuais no ambiente universitário, alertou, na sua conta de Twitter, para que, a partir de agora, "todas as vítimas vão pensar duas vezes antes de apresentarem queixa devido a um abuso". "As mulheres podem acabar feridas ou até mortas por não pedirem ajuda. Este caso foi um completo desastre", frisou.

O julgamento cativou uma audiência mundial que não está acostumada a ver acusações de agressão sexual e a intimidade de um casal nos tribunais e isso, independentemente das opiniões sobre o veredicto, é um problema, advertiu também Ruth Glenn, presidente da Coligação Nacional contra a Violência Doméstica. "Acredito que temos ainda uma sociedade que não compreende a dinâmica da violência doméstica", declarou Glenn à AFP, sublinhando que o veredicto foi mau para "todas as vítimas".

A demonização de Amber Heard, potenciada pela transmissão televisiva e pelas redes sociais, deu os seus frutos. Como explica Diana Pinto, "a Amber Heard personifica, hoje, o bem mais cobiçado do mercado: a mulher que temos livre-passe para odiar". "Como sociedade, selecionamos um grupo de mulheres que, por infrações reais ou fabricadas, perderam o direito à humanidade. A luta de libertação das mulheres tem vindo a tornar socialmente impopular (com certas reservas) que se insultem mulheres gratuitamente, pelo menos com o cunho graficamente misógino que tanto acarinhamos: as cabras, as loucas, as mentirosas, as bruxas manipuladoras que arruínam homens inocentes, as que só servem para a cama. Para aqueles que se dizem progressistas, em particular, essa prisão do politicamente correto tem sido asfixiante. O desespero quase carnal, o desejo violento e a felicidade animalesca com que tantas destas pessoas saltaram à garganta de Amber Heard, com que celebraram a liberdade de poder ofendê-la, denegri-la, humilhá-la, livres de consequências ou de culpa, demonstrou mais claramente do que muitas de nós estávamos preparadas para assistir, o quanto ainda odiamos, profundamente, as mulheres."

No entanto, esta opinião não é unânime. Tarana Burke, criadora da hashtag #MeToo, não concorda que o resultado deste julgamento signifique uma derrota para o movimento. “O movimento MeToo não está morto, este sistema está morto”, escreveu Burke no Twitter. “Este é o mesmo sistema legal em que vocês confiam há décadas para fazer justiça e determinar responsabilidades, sem sucesso. Quando vocês obtêm o veredicto que desejam, o movimento funciona – quando não, está morto. “Quando Weinstein foi para a prisão, foi o MeToo que ganhou!’ Quando Cosby voltou para casa, foi ‘Que golpe, o MeToo perdeu." 

"Entretanto, milhões de pessoas que nunca tinham conseguido verbalizar as palavras 'aconteceu-me a mim' libertaram-se da vergonha, que nunca deveriam ter carregado. Criámos uma agenda política só com as sobreviventes e, pela primeira vez no país, desde que Anita Hill se chegou à frente, há três décadas, temos mantido um diálogo neste país, não só sobre assédio sexual mas sobre todo o espectro da violência sexual. Isso, para além de todas as leis e políticas que foram aprovadas", disse, reiterando: "Este movimento está muito vivo."

A todos aqueles que se apressam a anunciar a morte do MeToo, Burke recorda o que o movimento "representa para milhões e milhões de pessoas". "Significa liberdade. Significa comunidade. Significa segurança. Significa poder. Vocês não nos podem matar, nós somos mais do que um hashtag, somos um movimento."

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