Tenho direito a falta justificada se não consegui ir trabalhar por causa do mau tempo?

14 dez 2022, 07:00

A lei não contempla especificamente estes casos, sendo que a figura do bom senso entre empregador e empregado deve imperar

Ruas alagadas, carros arrastados ou escolas encerradas. O mau tempo que se fez sentir um pouco por todo o país, especialmente na região da Grande Lisboa, obrigou milhares de pessoas a alterarem o seu dia. As autoridades até aconselharam quem conseguisse a ficar em regime de teletrabalho, mas há muitas profissões que não têm essa facilidade, sendo que muitas pessoas também não têm as condições necessárias para tal. Essa conjugação de fatores forçou muitas dessas pessoas a faltarem ao trabalho, seja por impossibilidade de deslocação, seja por outros motivos, como ter de tomar conta dos filhos cujas escolas foram encerradas. Será que estes cidadãos vão perder um dia de trabalho, ou têm direito a algum tipo de apoio?

Luís Gonçalves da Silva não tem dúvidas: a falta é justificada para as pessoas que apresentem uma razão válida para tal, seja ela a ausência de transportes ou a impossibilidade de sair de casa. O advogado especialista em Direito do Trabalho afirma que tudo vai depender do bom senso de trabalhador e empregador, mas garante que existe enquadramento legal para uma falta justificada.

“A lei diz que são faltas justificadas por facto não imputável ao trabalhador. Isso pressupõe que o trabalhador tenha condições para chegar ao local no tempo em que está obrigado a realizar a prestação”, diz, sugerindo mesmo a criação de uma norma que obrigue a que o empregador tenha meios de transporte próprios, podendo assim agilizar alguns destes casos.

“Em zonas em que os meios de transporte foram suprimidos ou não houve alternativa, por razões de segurança, não creio que seja exigível ao trabalhador que ponha em risco a sua vida ou a integridade física”, acrescenta o jurista.

Susana Afonso Costa não tem uma visão tão taxativa. Para esta advogada, também especialista na área laboral, estes casos são demasiado específicos para encontrarem uma figura legal concreta. A especialista considera que "não há tutela legal para a falta ser considerada justificada", lembrando que "as faltas justificadas estão claramente previstas no Código do Trabalho", sendo que "esta situação não se enquadra em nenhuma delas", mesmo que existam recomendações da Proteção Civil e das câmaras municipais, como é o caso de Lisboa, para que as pessoas não deixem as suas casas.

"É uma recomendação que não é enquadrada nestas situações de calamidade", explica a jurista, sublinhando que, para serem justificadas, as faltas terão sempre de ser enquadradas e aprovadas pela entidade empregadora.

Susana Afonso Costa destaca que "a lei não tem capacidade de prever todas as situações", sendo que, devidamente justificada e com uma apelo ao bom senso de ambas as partes, a justificação da falta deve ser aceite, ainda que, de uma forma legal, isso não esteja escrito preto no branco. "A lei não tem uma disposição que proteja efetivamente estas situações em concreto. Não há dúvida que tem de imperar o bom senso. A pessoa consegue provar que há recomendações e que não tem condições para se deslocar, mas não consegue encontrar uma tutela legal".

"No limite, se a entidade empregadora entender que a pessoa devia ir, a pessoa pode ter uma falta injustificada", conclui.

O que devo fazer para justificar a falta?

Luís Gonçalves da Silva divide esta situação em dois momentos diferentes: a comunicação do motivo da falta e, no caso de o empregador o requerer, a apresentação de um comprovativo que prove que a falta justificada.

Para este advogado, esse comprovativo pode ser solicitado junto das autoridades municipais, como no caso das pessoas que não se conseguiram deslocar por cortes na via, ou às empresas de transporte público, como a Carris ou a CP, no caso de o impedimento ter sido causado por perturbações na rede.

A apresentação desse mesmo comprovativo é feita mediante um pedido da empresa, que depois pode aceitar a justificação ou não. “O trabalhador comunica ao empregador o motivo, e das duas uma: ou o empregador aceita e não exige o comprovativo, ou o empregador solicita o comprovativo dos factos alegados”, acrescenta o jurista.

Quanto ao tempo, refere Luís Gonçalves da Silva, a apresentação da comunicação tem de ser feita “logo que possível”. Nestes casos altamente imprevisíveis não é possível ao trabalhador apresentar uma comunicação de falta no prazo normal, que tem uma antecedência mínima de cinco dias.

“Se o trabalhador ficou em casa, logo que possível tem de comunicar”, afirma o jurista, acrescentando que, caso a empresa pretenda o comprovativo da justificação, o mesmo deve ser requisitado nos 15 dias seguintes à falta.

E se a empresa não aceitar a justificação?

A empresa terá sempre o direito de negar a justificação ou de não a aceitar como boa. Aí, e caso entenda que está a proceder corretamente, o trabalhador pode fazer uma queixa à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) ou, no limite, recorrer mesmo aos tribunais para tentar que a falta que deu não seja dada como injustificada, evitando assim perder aquele dia de salário.

“O trabalhador pode fazer queixa à ACT se a empresa não considerar a justificação da falta válida. O trabalhador tem a possibilidade de pedir a fiscalização do caso à ACT”, explica Luís Gonçalves da Silva, que avança ainda com a hipótese de um mecanismo de resolução de conflitos, como um centro de arbitragem ou um sistema público de mediação.

O jurista ressalva um ponto que diz ser relevante: é que não deve haver um tratamento discriminatório em relação aos empregadores, isto é, a empresa não pode, perante factos semelhantes, aceitar a justificação de um trabalhador e não aceitar a do outro.

Susana Afonso Costa lembra que o regime das faltas justificadas está previsto na lei. Trata-se da Subsecção XI do Código do Trabalho, em que estão inscritos os seguintes motivos para falta justificada: por falecimento de cônjuge, parente ou afim, pela prestação de prova em estabelecimento de ensino, por impossibilidade de prestar trabalho devido a facto não imputável ao trabalhador, nomeadamente a observância de prescrição médica no seguimento de recurso a técnica de procriação medicamente assistida, doença, acidente ou cumprimento de obrigação legal, prestação de assistência inadiável e imprescindível a filho, a neto ou a membro do agregado familiar de trabalhador, pelo acompanhamento de grávida que se desloque a unidade hospitalar localizada fora da ilha de residência para realização de parto, ou por deslocação a estabelecimento de ensino de responsável pela educação de menor por motivo da situação educativa deste. "Estas situações [relacionadas com as condições meteorológicas] não estão em nenhuma destas alíneas", refere a jurista, que vê uma possível integração da falta justificada por incapacidade de chegar ao local de trabalho no caso da impossibilidade de prestar trabalho devido a um facto não imputável ao trabalhador.

É nesse cenário, diz a advogada, que o empregador pode recorrer à ACT, sendo que, nesse caso, aquela autoridade poderá vir a reverter a decisão da entidade empregadora.

E se não fui trabalhar para ficar com um filho?

Muitos pais não puderam ir trabalhar porque tiveram de ficar com os filhos cujas escolas ou jardins de infância foram encerrados, um cenário que terá sido mais comum na cidade de Lisboa, uma das regiões mais afetadas com inundações.

Luís Gonçalves da Silva admite ter “mais dúvidas” neste caso, que se assemelha a uma greve escolar, dizendo mesmo que “como quadro geral” os pais podem não ter direito a uma falta justificada neste cenário. Ainda assim, e tratando-se de uma situação imprevisível, e tendo os progenitores o dever de tomar conta da criança – “sob pena de cometerem o crime de abandono” – o jurista vê “com dificuldade que a falta não seja justificada”.

Susana Afonso Costa também vê com dificuldade uma falta justificada neste cenário, voltando a sugerir que deve ficar a cargo do bom senso do empregador aceitar essa mesma falta para que o trabalhador fique com os filhos.

Relacionados

Meteorologia

Mais Meteorologia

Patrocinados