“A confiança nunca foi quebrada”. Como Massamá chorou e superou as acusações de abuso de menores do padre Luís Cláudio

13 fev 2023, 18:00
Igreja de Massamá (D.R.)

A ausência foi notada. Antes das denúncias terem sido tornadas públicas, já o padre Luís Cláudio dos Santos tinha pedido para que as suas funções fossem suspensas, até que o caso fosse encerrado. Voltou pouco tempo depois para a paróquia de Santo Bento de Massamá, que ele ajudou a criar, para os braços de uma comunidade de fiéis que acredita plenamente na sua inocência. “Esta igreja sem ele é um jardim sem flores”. E nem mesmo as lágrimas choradas fizeram crescer outra tão desejada como ele

O sol da manhã aquece a torre e rasga as arcadas da Igreja de São Bento de Massamá. Dalila move-se com dúvida debaixo delas. Uma mão no cachecol cinzento, outra no saco branco. Lá dentro, o pão fresco do dia. Mas a mulher busca outro alimento, o da alma, a palavra de Deus. “Já que vim cá abaixo ao centro, aproveito a missa”.

São nove da manhã de quinta-feira. Daqui a meia hora começa a missa. Mas a porta por onde se entra no templo ainda não abriu. Estranha-se a demora, na ânsia de ouvir o padre Luís Cláudio dos Santos que, no verão passado, viu o seu nome ligado a uma acusação de abusos de menores. Foi o próprio padre que decidiu afastar-se da paróquia, enquanto a investigação era feita.

A queixa surgiu através da Comissão Diocesana de Proteção de Menores do Patriarcado de Lisboa, que a fez chegar à Procuradoria-Geral da República. Em causa, alegados abusos a um acólito, menor de idade, e que dizia que o cenário se teria repetido com outros jovens da sua geração.

Depois de o Ministério Público e da própria Igreja terem procedido às respetivas investigações e arquivado o caso, no início de novembro, o sacerdote, com 64 anos, voltou a assumir funções. Além de assumir esta paróquia de Massamá, era também juiz do Tribunal Patriarcal.

“Nunca desconfiámos de nada. Nem sabia onde ele estava. Achava que tinha ido de férias, que também tem direito”, diz Dalila. Contudo, a ausência foi notada, e muito, pelos fiéis. O relógio ressoa, chamando quem precisa de missa. E os paroquianos, tímidos, vão chegando à casa que também é deles.

Todos confiam no padre quando se repete a pergunta. “Foi ele que pediu o afastamento. Não mudou nada na relação com a comunidade. Pelo contrário. Esta igreja sem ele é um jardim sem flores”, diz Sara. Ela, explica, é nova em Massamá, mas já frequentava a igreja quando a notícia das suspeitas, dada no início de outubro, apanhou todos de surpresa.

Chegam depois Raquel e o marido, após o pequeno-almoço no café em frente à igreja. Hão de ajudar o padre na distribuição das hóstias durante a missa. Também aceitam falar sobre o tema, que poderia ter posto em causa a união da comunidade. “Tudo normal”, diz ele. “Não mudou rigorosamente nada”, completa ela.

A porta lateral da igreja, por onde se faz a entrada, está aberta há largos minutos. O padre Luís Cláudio, a quem os crentes apreciam um feitio “ríspido” e “frontal”, está já no interior a preparar-se para a homilia. Há mais de 30 anos que se move entre estas paredes. Ele foi, aliás, um dos responsáveis pela construção desta igreja em Massamá.

O seu nome faz parte, literalmente, do edifício. Em duas placas colocadas à direita da porta principal. Aquela porta que, diz Dalila, só se abre para os casamentos.

Nome do atual pároco está cravado na igreja que ajudou a lançar (D.R.)

Secar as lágrimas e confiar

“Cada vez gosto mais dele. Fartei-me de chorar quando esteve ausente”, confessa Alda, que chega agarrada à mala. Ao ouvi-la falar sobre o afastamento do padre Luís Cláudio dos Santos, que havia de regressar à paróquia menos de um mês depois de terem sido noticiadas as suspeitas de abusos, Cidália dá um passo atrás na porta da igreja. Também ela se quer juntar à defesa.

“É tudo mentira. Tive filhos e netos aqui. Nunca houve nada. Nunca. O padre fez-nos muita falta. Estava tudo morto por aqui”, insiste. E, se dúvidas houvesse, ela arranja um argumento adicional: “até já entraram novos acólitos” depois disso.

No interior, depois de se passar por um anúncio com as inscrições para um cruzeiro com os fiéis, “acompanhados pelo padre Luís Cláudio dos Santos”, porque a vida não é só sacrifício, a igreja está na penumbra. Um Cristo gigante, feito de azulejos, desenha-se por detrás do altar. Nas mãos, as escrituras.

Os crentes espalham-se pelos bancos, deixando muitos intervalos vazios. São cerca de meia centena neste dia de semana. Ao fim de semana, a casa enche. Um auditório em tons grisalhos para escutar o padre de sempre. Não se tiram os casacos, porque o templo também é frio. O som da ventosa de uma bengala marca o ritmo no silêncio. A igreja ilumina-se, acendem-se as velas. E, à hora marcada, o pastor assume o seu papel.

Interior da Igreja de São Bento de Massamá, à hora de chegada dos primeiros fiéis para a missa (D.R.)

Um sermão de “confiança”: o passado no passado

Sentado na cadeira vermelha central, o padre Luís Cláudio dos Santos não contém um bocejo rápido na hora do salmo. À sua direita outro sacerdote, à esquerda o acólito. É desta posição que o padre dá o sermão do dia. Nesta quinta-feira, fala-se de confiança e de humildade. Prega com os dedos entrelaçados, em frente ao paramento verde, com o corpo inclinado para o auditório.

“É o que às vezes nos falta, essa humildade e essa confiança”, diz. As cabeças abanam em concordância. A cerimónia segue. Em silêncio absoluto, o acólito prepara a mesa para o ponto alto, a comunhão. O metal do cálice ecoa. E a missa precipita-se para o seu fim.

Pede-se então para falar com o padre, curiosamente sobre aquilo que foi o tema do seu sermão: a confiança. Em concreto, como se restabelece a confiança numa comunidade, após acusações tão graves, como as de abuso de menores.

O sacerdote chega de sorriso aberto, disponível para ajudar no que for necessário. Ao perceber o tema, pede desculpa e explica que não quer falar mais sobre o assunto. “O que já foi, já foi”, reage. Uma formulação semelhante àquela que deu aos paroquianos no regresso, quando agradeceu as mensagens de apoio e explicou que estava “tudo resolvido”.

Insiste-se na questão da confiança. E aí, é categórico: “A confiança nunca foi quebrada. Estou aqui há tantos anos”. Faz as contas. “Trinta e quatro”.

O pastor lava as suas mãos e entrega-se ao rebanho: “pergunte às pessoas, é a melhor maneira de saber”. A resposta é encontrada em todos aqueles que não têm receio de continuar a entregar-se, a si, aos seus filhos e netos, à Igreja.

A primeira leitura deste dia, do livro do Génesis, começava com esta frase: “Não é bom que o homem esteja só”. O padre, que antes de o ser já era homem, em Massamá, não está só.

(Nota editorial: todos os nomes dos paroquianos ouvidos nesta reportagem são fictícios, a pedido dos próprios entrevistados, que acederam à publicação do seu testemunho nessa condição)

Pároco esteve afastado, por pedido do próprio, da igreja (D.R.)

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