A pressão do futebol, a depressão e a tentativa de suicídio. A história de Martin Bengtsson chega ao cinema

CNN , Issy Ronald
9 jul 2022, 16:00
Martin Bengtsson (Studio Soho)

Martin Bengtsson jogou pela seleção da Suécia nos escalões sub-17 e sub-19, mas acabou por abandonar o desporto. "Tigers" é o filme que conta a sua história

Como obter ajuda: Em Portugal, contacte o Serviço de Saúde Mental do Hospital da sua região – AdultosInfância e Adolescência. A linha SNS24 (808 242424 e www.sns24.gov.pt) e o 112 também estão disponíveis. Entre em contacto através das Linhas de Crise e da Linha de Aconselhamento Psicológico. Para mais informações, consulte o Plano Nacional de Prevenção do Suicídio.

 

A maioria dos filmes desportivos termina com algum momento de triunfo. No filme “Momentos de Glória”, com Harold Abrahams e Eric Liddell, supera-se o preconceito. De azarados, os protagonistas tornam-se campeões olímpicos. Em “Rocky”, este ganha a adoração da multidão e declara o seu amor pela sua namorada e, no filme “Moneyball: Jogada de Risco”, confirma-se a estratégia de Billy Beane.

"Tigers" termina de forma triunfante porque Martin Bengtsson, o protagonista cujo filme se baseia na sua história real, sobrevive.

Quando tinha 17 anos, sonhava em tornar-se um jogador profissional. Na altura, Bengtsson foi contratado pelo Inter de Milão, após o Chelsea e o Ajax também terem demonstrado interesse nele.

Martin Bengtsson juntou-se, então, às camadas mais jovens do clube, viveu na academia com outras potenciais estrelas e apontaram-no como o próximo Wayne Rooney ou Zlatan Ibrahimović.

No entanto, em Milão, o seu sonho e a sua carreira terminaram. Após nove meses em Itália, Bengtsson teve uma depressão após uma lesão e tentou suicidar-se.

Para recuperar, mandaram-no de volta para a Suécia. Contudo, o jogador nunca voltou e retirou-se do mundo do futebol um ano depois, aos 18 anos.

O livro de memórias de Bengtsson foi adaptado para um filme premiado. (Stefania M. D'Alessandro/Getty Images)

Encorajado pelo seu terapeuta, Bengtsson começou a escrever, de forma a processar as suas experiências em Milão - bem como para anular os rumores de que tinha deixado de jogar futebol após ter começado a consumir drogas.

"Eu estava com raiva por causa do que tinha acontecido. Isso pode tornar-se numa motivação enorme para escrever", conta à CNN Sport.

"Enquanto estava a escrever, apercebi-me cada vez mais de que esta é a história que faltava. Ninguém a contava na primeira pessoa.”

Em 2007, quando Bengtsson publicou o seu livro de memórias "Na Sombra de San Siro", este foi um dos primeiros relatos desse género. Mesmo o FIFPRO, o sindicato mundial de jogadores, não começou a fazer estudos sobre saúde mental até 2013.

Depois de Bengtsson ter publicado o seu livro, mudou-se para Berlim. Foi aí, em 2011, que conheceu o cineasta e escritor Ronnie Sandahl. Então, os dois tornaram-se bons amigos.

"Eu sabia que o Ronnie era um escritor muito bom. É um dos maiores da sua geração", diz Bengtsson. "Sabia que seria um bom filme. Eu acreditava nele.”

Nove anos depois, Sandahl adaptou a história de Bengtsson para o grande ecrã com o nome "Tigers". O filme estreou nos cinemas do Reino Unido a 1 de julho.

O filme recebeu elogios por parte da crítica. No ano passado, foi apresentado como o filme sueco nomeado para o Óscar de melhor longa-metragem internacional.

O título refere-se aos animais enjaulados que são mantidos como atrações turísticas. Ao longo do filme, há diversas alusões a esse assunto.

Erik Enge interpreta Bengtsson no filme "Tigers". (Studio Soho)

As barras de metal parecem seguir a adaptação que Sandahl fez de Bengtsson. Estas surgem na janela da residência, nas discotecas e até mesmo no próprio estádio, que acaba por tornar-se numa espécie de gaiola.

"É fiel à essência deste rapaz. Ele luta para realizar o seu sonho, apesar de estar preso a este. Mesmo assim, tenta encontrar uma saída", diz Bengtsson, lembrando-se de si mesmo quando era mais jovem.

"O futebol é tudo o que ele é"

Parte da agitação retratada no filme é a luta de Bengtsson para redefinir a sua identidade que, na época, era inteiramente dependente do futebol.

Devido à importância que este desporto tinha, o futebol mostrou ser o código pelo qual o ator Erik Enge se regeu para interpretar a personagem.

Enge disse à CNN Sport: “Eu tinha um ‘personal trainer’ fantástico. Praticamente, ele fez com que o meu corpo se parecesse com o de um jogador de futebol.”

"Em vez ler o guião de uma maneira mais mental, eu era capaz de entrar na cabeça do Martin através do trabalho físico.”

A rotina de Bengtsson, bem como a sua identidade, girava à volta da ideia de se tornar um jogador profissional de futebol.

A par de jogar no seu clube, Bengtsson seguia o seu próprio horário de treinos durante três horas diárias.

Numa cena, os colegas de ficção de Bengtsson prendem-no no chão e despejam uma garrafa de leite por cima dele.

Esta tensão entre tornar-se o melhor jogador individual ou o melhor jogador da equipa moldou a relação de Bengtsson com os seus colegas de equipa, tanto no filme, como na vida real.

De acordo com a ESPN, menos de 1% dos jogadores que integram as academias aos nove anos, ou quando têm uma oportunidade, chegam a tornar-se jogadores profissionais.

Apesar de estarem perto de ter um contrato profissional e de vencerem as probabilidades, o filme retrata a competição entre colegas de equipa, bem como com os adversários.

Sandahl diz à CNN: “No fim, trata-se de nós mesmos e da nossa carreira, apesar de pertencermos a uma equipa.”

"Um espelho de uma casa de diversões"

O livro de Bengtsson e o filme de Sandahl expõem um lado do futebol sobre o qual não se fala.

"O mundo do futebol quase funciona como um espelho de uma casa de diversões, sobretudo para assuntos como a masculinidade ou o capitalismo", diz Sandahl. "É praticamente um mundo onde se compram e vendem pessoas.”

O mercado dos jovens jogadores de futebol é um mercado multimilionário.

Um estudo feito pelo observatório CIES Football descobriu que só os clubes ingleses arrecadaram mais de 2,17 mil milhões de dólares entre julho de 2015 e fevereiro de 2022. Este valor deve-se à transferência de jogadores que se tinham formado na academia juvenil e que estavam no clube pelo menos há três anos.

Estas somas avultadas de dinheiro podem toldar a maneira de ser dos jovens jogadores.

Sandahl diz: "Ouvi pessoas que viram o filme a dizer que não podem ver um jogo da mesma maneira. De repente, veem miúdos lá em baixo que são muito jovens e que estão a tornar-se seres humanos.”

"Tigers" marca a segunda longa-metragem de Sandahl como diretor e a quarta como escritor.

Apesar de a história de Bengtsson ter ocorrido em 2004, o filme passa-se nos dias de hoje, tendo como pano de fundo as redes sociais.

Bengtsson sugere que as redes sociais, combinadas com a injeção de ainda mais dinheiro no futebol, contrabalançam os potenciais ganhos obtidos, nos últimos anos, em relação à saúde mental.

"Atualmente, os jovens jogadores de futebol estão sob os holofotes de uma maneira totalmente diferente", diz ele. "Acho que apesar de falarmos mais sobre o assunto, os desafios ultrapassaram isso."

Segundo um estudo feito em 2015 pela FIFPRO, 38% dos jogadores profissionais no ativo revelaram ter tido sintomas de depressão.

De modo a melhorar a saúde mental dos jogadores, os organismos governamentais do futebol implementaram algumas mudanças.

De acordo com os regulamentos para a temporada 2021/22, o Campeonato Inglês determinou que uma Academia de Categoria 1 - o nome dado a quase todos os clubes da Premier League e vários clubes do campeonato – empregasse, pelo menos, um psicólogo a tempo inteiro.

No entanto, os donos dos clubes, bem como os treinadores, podem fazer muito mais para aliviar as pressões que os jovens jogadores enfrentam. Bengtsson diz que tal se consegue se houver uma melhor educação sobre o "nível psicológico no desporto".

"Os donos dos clubes e os treinadores podem começar a ver essa enorme pressão. Uma pessoa trabalha por tanto dinheiro e isso acaba por afetá-la. Senão, trabalha-se apenas para entrar num estádio e ter aquela multidão a olhar para nós? O que faz isto a uma pessoa?”

“Claro que podemos pensar na perspetiva de quem vê isto de fora ou do ponto de vista de um adepto. Então, pensamos: ‘Ena, que emoção.’ No entanto, isto também é assustador."

A CNN tentou contactar a FIFA e o Inter de Milão, para que comentassem o assunto.

"O custo no final"

Essas questões não são exclusivas do futebol. No ano passado, Naomi Osaka e Simone Biles desistiram, respetivamente, de Roland Garros e de várias provas nos Jogos Olímpicos de Tóquio. Fizeram-no para dar prioridade à sua saúde mental.

O ténis e a ginástica são retratados em dois dos outros filmes de Sandahl, "Borg vs McEnroe" e "Perfect". O cineasta vê isto como uma trilogia, juntamente com "Tigers", que explora a psicologia por trás das estrelas do desporto.

Cada um revela a "tremenda pressão" enfrentada pelos jovens atletas na sua procura pela grandeza. Sandahl vê semelhanças em cada modalidade.

O cineasta diz: "É um mundo que incentiva os seres humanos a ir até o fim, apesar de o preço ser muito alto. No final, os atletas são deixados sozinhos com esse custo.”

"Depois, todos os que encorajam esses jovens atletas a ir até o final, não estão lá quando estes estão fora dos holofotes."

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