Há exatamente um ano e um dia, Marta Temido respondia que “nunca se sabe” ao ser questionada sobre a possibilidade de suceder a António Costa. Nesse congresso do PS, em agosto de 2021, o primeiro-ministro foi mais longe e incentivou-a: “Daqui a dois anos, já tem tempo de militância para concorrer a líder”, disse Costa. O primeiro aniversário dessa declaração foi o último dia de Marta Temido no seu governo. Esta madrugada, demitiu-se de ministra da Saúde.
Sete meses certos depois da maioria absoluta. Cinco meses certos depois de ser reconduzida. Três meses certos depois de ser eleito um novo líder da oposição. 81 dias depois dos feriados que fecharam as urgências de obstetrícia. 74 dias depois do debate em que admitiu, por fim, os problemas estruturais do SNS. 71 dias depois de o Presidente da República a segurar (“o problema não é só de um governo”). 69 dias depois de o PSD pedir a sua saída (“o que será preciso que aconteça mais?”). Doze dias depois de o Presidente a segurar novamente, em entrevista à CNN Portugal, recordando a ainda recente reeleição do PS. E três dias depois do mesmo Presidente deixar sair no Expresso que a reforma de Marta Temido para o Serviço Nacional de Saúde “não vai dar certo”, “não é solução” e “não é exequível”, a ministra abandonou o cargo.
A perda de mais uma vida humana entre hospitais ‒ desta feita uma mãe ‒ foi a gota de água final no copo de Temido, mas não a última desta tempestade. A sua demissão diz-nos muito dos erros que os nossos protagonistas políticos cometeram no último meio ano, mas diz-nos mais dos tempos que enfrentaremos no próximo ano e meio.
Quem, afinal, perde mais do que os outros com a demissão da ministra? Em duas palavras: António Costa. Primeiro, porque teve a oportunidade perfeita para substituí-la sem custo político, na constituição do seu terceiro governo, e preferiu o facilitismo de deixar tudo na mesma. Segundo, porque revela, após a falta de força para demitir um rival (Pedro Nuno), a fraqueza de não segurar uma aliada (Temido). Terceiro, porque o capital que lhe permitiu segurar Azeredo, Urbano de Sousa e Cabrita muito para lá do aconselhável, pura e simplesmente, está esgotado. E esgotou-se precisamente quando o primeiro-ministro mais necessitaria dele. Numa crise.
António Costa ia para a Europa, mas a Europa chegou-lhe primeiro. Em forma de guerra, inflação, recessão, estagflação e, esta madrugada, demissão. Amarrado em cordas de maioria absoluta, o primeiro-ministro encontra-se perante uma nuvem negra de instabilidade ‒ que obviamente não criou, mas para a qual infelizmente pouco preparou.
O “mata-borrão”, como provocava Marcelo na conversa com Anabela Neves, não chega para todos os borrões nem para todas as pastas. Em tempos de bonança, com um superávite no bolso, um homem chegava para governar um governo, já que o país, na sorte de não arder, parecia governar-se a si mesmo. Foi isso que Costa fez, até à pandemia e durante a pandemia. Foi primeiro-ministro e ministro de quase tudo.
Agora, em crise, com o regresso da pobreza, já não é assim ‒ já não será assim.
A resignação de Marta Temido, outrora tão popular e tão alegremente ideológica, significa muito mais do que uma alteração na tutela da Saúde. É de um tempo ‒ e não só de uma ministra ‒ que nos estamos a despedir.
Estará António Costa à altura desse tempo?
Nota: Foto no topo (arquivo): Marta Temido e António Costa no início da pandemia, em abril de 2020. Créditos: Horacio Villalobos Corbis via Getty Images