Faria 100 anos mas no Parlamento disseram esta sexta-feira que FAZ 100 anos. Porque "Mário Soares não foi fixe - É fixe". A Assembleia da República deu lições sobre tempos verbais na evocação do centenário do nascimento de uma das personalidades portuguesas mais agregadoras (para uns) mas também mais divisivas (para outros): e quem falou fez críticas violentas ou elogios magníficos - e por vezes isso tudo ao mesmo tempo. Nuno Melo abandonou o Parlamento durante o discurso do Chega
Era das intervenções mais esperadas: o PCP e Mário Soares convergiram e desencontraram-se em momento decisivos de Abril - mas também antes e depois da Revolução - e o comunista António Filipe não fechou os olhos ao bom e ao mau do percurso que cruzou o partido e Soares. "Estivemos em lutas comuns contra o fascismo, em momentos de confronto sobre os caminhos a seguir pela Revolução Portuguesa, em convergências e divergências que marcaram o relacionamento entre comunistas e socialistas ao longo das décadas que levamos da democracia portuguesa", afirmou António Filipe, que discursou em nome do PCP na cerimónia parlamentar.
"Mas este reconhecimento não apaga o que nunca silenciámos na crítica e também no combate ao papel negativo que Mário Soares desempenhou para travar a Revolução e viabilizar o processo contra-revolucionário na sua opção de procurar o apoio para a sua ação nas forças de direita e mesmo em quem, a partir do estrangeiro, conspirou contra Abril e a jovem democracia. Na Revolução Portuguesa é sabido que não só não tivemos o mesmo percurso como em questões decisivas - como o papel do movimento das Forças Armadas no processo revolucionário, o movimento sindical, a legislação laboral, a reforma agrária, o controle público e alavancas fundamentais da economia nacional - estivemos mesmo em campos diametralmente opostos."
O PCP lembrou ainda que "após a cessão de funções como Presidente da República, Mário Soares manteve uma intervenção política de que nunca abdicou". "Como deputado ao Parlamento Europeu, como candidato à Presidência da República, como dirigente da fundação que tem o seu nome, desenvolveu uma intervenção política intensa com elementos diferenciados que, no entanto, não iluminam opções cujas consequências negativas são hoje visíveis na realidade do nosso país."
Que "desumano"
O CDS evocou a memória de Mário Soares no Parlamento lembrando que "em democracia não há inimigos, mas simples adversários". Discursando perante a Assembleia da República, João Almeida afirmou que "a democracia deve fazer-se no confronto, por vezes sem tréguas, de ideias, de sistemas e de projetos políticos diferenciados, mas nunca deve dar lugar à destruição ou ao amesquinhamento dos homens".
"O CDS reconhece o contributo decisivo e convicto de Mário Soares para o triunfo da democracia em Portugal, desde logo no combate sem tréguas à extrema-esquerda e às suas intenções totalitárias. É justo reconhecer que Mário Soares, quando estava em causa a governabilidade e o interesse nacional, sempre procurou equilíbrios e apoios à sua direita e não à sua esquerda. Com Soares nunca houve maiorias construídas à esquerda do PS", afirmou. Um recado para António de Costa.
João Almeida insistiu que existe "diferença para a parte significativa do Partido Socialista de hoje, que tantas vezes cede à tentação do radicalismo e do frentismo de esquerda". O CDS lembrou ainda o importante papel de Mário Soares no 25 de novembro, assim como no comício da Fonte Luminosa e da integração europeia em Portugal.
Por outro lado, o CDS foi muito crítico num ponto muito específico: "Não poderíamos recordar o legado de Mário Soares sem lembrar os portugueses que a 25 de abril de 1974 viviam nos territórios ultramarinos e que foram vítimas de uma descolonização apressada, desumana e irresponsável". Mas fez uma ressalva: "Com a mesma frontalidade com que criticamos o legado de Mário Soares na descolonização, reconhecemos a sua importância na derrota do comunismo e do extremismo de esquerda e na consolidação definitiva de uma democracia liberal e de uma sociedade livre, bem como na integração europeia de Portugal".
João Almeida falou também "sobre as várias gerações de políticos do CDS que travaram batalhas muito duras com Mário Soares", nomeadamente "as candidaturas presidenciais de Diogo Freitas do Amaral e de Basile Ward". "Nunca deixámos de lhe dar combate e nunca deixámos de contar com a sua réplica sagaz. A democracia é isso mesmo, oposição leal, acutilante e honesta. Mário Soares é uma figura histórica incontornável para os seus opositores e para os seus seguidores."
Nuno Melo abandona durante discurso do Chega
O presidente do Chega - partido que se contestou a sessão solene -, falou sobre “o papel incontornável” de Mário Soares no 25 de Novembro e nos primeiros passos do país na Europa, mas fez o discurso mais crítico. “Não podia estar hoje neste plenário se não deixasse claro e transmitisse em nome do partido que esta cerimónia solene desta forma, neste modelo, não deveria estar a acontecer”, afirmou André Ventura.
O líder do Chega acusou Mário Soares de ter sido “cúmplice e ativista de um sistema de donos disto tudo, que se iniciou à sua sombra e se manteve à sua sombra”. “À sombra de Mário Soares, o espírito do PS apoderou-se do aparelho do Estado.”
O ministro da Defesa e líder do CDS-PP, Nuno Melo, saiu a meio deste discurso e já não ouviu Ventura dizer que “nenhuma cerimónia evocativa podia esquecer um legado profundamente negro” como o que considera ter sido o de Mário Soares.
Pedro Nuno rejeita que Soares tenha sido contraditório
O líder do PS defendeu que a vida política de Mário Soares “vale como um todo” e recusou que o seu percurso seja marcado por contradições, considerando que “esteve sempre do lado certo das lutas” em que participou. Pedro Nuno Santos, que se afirmou socialista desde que nasceu, referiu que o antigo Presidente da República foi o político português que “mais admirava” e com quem mais se identificava.
“Quem dedicou sete décadas da sua vida à política expressou, em momentos distintos, diferentes opiniões e tomou diferentes posições, mas tal não significa que o seu percurso seja marcado por contradições”, defendeu. Segundo o secretário-geral do PS, “Mário Soares esteve sempre do lado certo das lutas em que tomou parte”.
“Em tempos sombrios, Soares esteve do lado certo na luta contra a longa noite da ditadura, batendo-se com toda a sua inteligência e coragem. Gabava-se, e tinha esse direito, de nunca ter cedido perante a tortura de sono a que foi submetido”, enalteceu.
Pedro Nuno Santos deu como exemplos do “lado certo” onde considera que o fundador do PS sempre esteve a “prioridade dada ao processo de descolonização”, a adesão de Portugal à CEE, o empenho na fundação do SNS, a revisão constitucional de 1982 - que “pôs fim à tutela militar do regime democrático” - a “crítica feroz” à austeridade durante a ‘troika’ ou a procura da união da “esquerda contra um direita radicalizada”.
“Se, aos olhos de muitos, entrou em contradição ao longo do tempo, a minha convicção é a oposta. É minha convicção que o mundo mudou, nestas décadas, muito mais do que Mário Soares e que as inflexões no seu posicionamento resultam mais dos efeitos do pêndulo da História do que de incoerências no seu pensamento”, afirmou. Para o líder do PS, “Soares viveu a História não como espectador mas como protagonista e lutador incansável”, considerando que “contra a ditadura foi resistente, conspirador, agitador”.
Segundo Pedro Nuno Santos, “a vida política de Soares vale como um todo”, recusando que, para a avaliar, se escolha o período que “mais convém ou mais agrada”, de acordo com a conjuntura do momento ou a posição que se quer defender.
"Animal político com personalidade forte e pouco dada a consensos"
O PSD defendeu que Mário Soares seria hoje, como foi no passado, um lutador contra radicalismos e populismos, mas aponta-lhe erros na descolonização. O deputado António Rodrigues defendeu, por outro lado, que recordar o histórico socialista “é celebrar Abril e o papel de todos aqueles que contribuíram para a construção da democracia, sem atender a dogmatismos ideológicos e dissidências políticas”, recebendo aplausos quer do PS quer do PSD. "Ele era um animal político com personalidade forte e pouco dada a consensos", vincou.
“Falamos do homem que, a par de Francisco Sá Carneiro, lutou intransigentemente contra os radicalismos da extrema-esquerda e da extrema-direita durante o PREC. Falamos do europeísta convicto, que foi determinante para a adesão de Portugal às Comunidades Europeias.” António Rodrigues lembrou também Soares como alguém pouco dado a consensos e “cujos detratores lhe atribuem responsabilidades num incómodo processo de descolonização” e projetou o que Soares faria se estivesse vivo: “Estaria hoje na linha da frente do combate contra os radicalismos que assolam o nosso país e, em particular, contra todos aqueles que querem tornar este parlamento numa mera política do espetáculo. Por mais tarjas que se pretendam pendurar e muros que se pretendam erguer, não devemos nunca dar por adquirida a luta iniciada por Mário Soares após o 25 de Abril: a democracia não é um dado adquirido, constrói-se todos os dias, com todos e para todos.”
Pela Iniciativa Liberal, o líder parlamentar, Rodrigo Saraiva, afirmou que todas as grandes personalidades da História "criaram luzes e têm sobras" - e Mário Soares é uma delas. “Neste centenário do seu nascimento, devemos concluir que o balanço global da sua atuação política é positivo. Em momentos fundamentais da nossa democracia, ele esteve do lado certo”, disse, apontando o combate ao Estado Novo ou o posicionamento contra o comunismo.
Do lado negativo, apontou a Soares responsabilidades em características negativas do sistema que perduram como “o centralismo, um Estado omnipresente, o compadrio, o despesismo e o dirigismo”, e aludiu igualmente ao seu papel na descolonização e à forma como geriu, já em Belém, os “assuntos de Macau”.
Quase no fim da cerimónia, o presidente do Parlamento, Aguiar-Branco, deu uma lição sobre tempos verbais. "Mário Soares não foi fixe - É FIXE. Mário Soares não faz parte do passado, é bem presente."