Como quatro sargentos e nove praças da Marinha portuguesa incorrem em penas disciplinares graves após "um grito de alerta": o caso Mondego

CNN Portugal , MJC
14 mar 2023, 22:17

Missão: acompanhar um navio russo que passou na Madeira. Decisão de 13 militares: não, não o fazemos. Denunciaram uma grave falta de meios depois, a Marinha considera grave o sucedido - e chamou a PJ Militar porque alegou insubordinação. Vêm aí sanções disciplinares - até lá, vai-se discutindo também as condições precárias em que os militares portugueses atuam

Treze militares - quatro sargentos e nove praças - recusaram-se no sábado a embarcar no navio-patrulha Mondego para cumprir uma missão invocando falta de condições de segurança. Desta forma, não foi possível cumprir a missão de acompanhamento de um navio russo a norte da ilha de Porto Santo.

Entre as várias "limitações técnicas graves que comprometem a segurança do pessoal e do material e o cumprimento da respectiva missão" constava o facto de um motor e um gerador de energia elétrica estarem inoperacionais. Incluem-se "a entrada de água em dois momentos diferentes, falta de manutenção do único dos dois motores que equipam a embarcação, um dos três geradores de energia inoperacionais e diversas fugas de óleo", segundo um documento elaborado pelos militares a que o jornal Público teve acesso. Um dos motor estará inoperacional e o outro precisa de manutenção há duas mil horas.

De acordo com os militares, o próprio comandante do NRP Mondego “assumiu, perante a guarnição, que não se sentia confortável em largar com as limitações técnicas” do navio.

Marinha está a "fazer uma avaliação mais profunda das condições do navio"

A Marinha admite que o NRP Mondego estava com “uma avaria num dos motores”, mas referiu que a missão que ia desempenhar era “de curta duração e próxima da costa, com boas condições meteo-oceanográficas”. No que se refere às limitações técnicas, a Marinha referiu que os navios de guerra “podem operar em modo bastante degradado sem impacto na segurança”, uma vez que têm “sistemas muito complexos e muito redundantes”.

Entretanto, seguiu segunda-feira para a Madeira "uma equipa para fazer uma avaliação mais profunda das condições do navio".

As questões relativas à manutenção de navios da Marinha devido a carência de verbas, bem como a falta de pessoal que obriga à repetição de escalas para os militares, são os problemas mais sentidos no ramo, segundo afirmou recentemente na comissão de Defesa o chefe de Estado-Maior da Armada, almirante Gouveia e Melo.

O que vai acontecer a estes militares?

A Marinha considerou que os 13 operacionais “não cumpriram os seus deveres militares, usurparam funções, competências e responsabilidades não inerentes aos postos e cargos respetivos”. Assim, foi aberto um processo interno de âmbito disciplinar: “Estes factos ainda estão a ser apurados em detalhe e a disciplina e consequências resultantes serão aplicadas em função disso”, referiu a Marinha em comunicado.

"Por poder estar em causa eventual matéria criminal, a Marinha remeteu à Polícia Judiciária Militar informação sobre o incidente.  Os militares revoltosos incorrem em penas disciplinares graves, que podem ir até à privação da liberdade, segundo o Regulamento de Disciplina Militar.

Até esta terça-feira, os 13 militares permaneciam retidos no navio, sem licença de saída, tendo começado a ser ouvidos pela Polícia Judiciária Militar. Mas a Marinha garante que "serão rendidos com a brevidade possível" enquanto decorre o processo interno de âmbito disciplinar.

"Um grito de alerta"

O presidente da Associação Nacional de Sargentos (ANS) considerou que as anomalias do navio representavam “grave risco” para a tripulação. “Isto não foi uma crise no momento, foi fruto de muitas situações já vividas a bordo”, afirmou Lima Coelho. “A Marinha mostrou mais vontade em matar o mensageiro do que em resolver a situação”, afirmou, acrescentando: “Independentemente do posto ou da função que assumimos, temos um dever de tutela para com os subordinados”.

Já a Associação de Praças (AP) considerou  que os 13 militares que recusaram embarcar na missão tentaram dar um “grito de alerta” face ao “grande desinvestimento que tem sido feito nas Forças Armadas a nível de material mas também a nível de pessoal”, defendeu o presidente, Paulo Amaral,

A Associação recebeu esta notícia “com extrema preocupação”, considerando que o incidente “é elucidativo das paupérrimas condições de segurança que o navio comporta”. “A experiência acumulada destes homens, que estão embarcados no NRP Mondego, leva-nos a acreditar que de facto a decisão que tomaram foi ponderada e sensata perante as condições em que estão embarcados”, acrescentou.

“Ao tomarem esta decisão foi demonstrativo de que estão preocupados e estavam preocupados com a sua segurança e também estão e estavam preocupados com a segurança do próprio meio naval. Porque uma das condições que está associada à condição militar é nós zelarmos pelo bem-estar e pelo bom comportamento dos meios que nos são colocados à disposição”, sublinhou.

Para a AP, “não se trata de [os 13 militares] terem cometido qualquer crime”: “O que estamos a ver por parte da instituição é que estamos a aplicar o Regulamento de Disciplina Militar, do Código de Justiça Militar, mas não nos estamos a focar no que deve ser o foco desta questão, que é a questão da segurança e do desinvestimento em termos materiais”. 

Ministra da Defesa remete tudo para a Marinha, Marcelo aguarda

A ministra da Defesa Nacional, Helena Carreiras, sustentou que é da competência da Marinha aferir da operacionalidade dos meios, bem como conduzir os procedimentos disciplinares de acordo com o regulamento militar. "Todos esses processos estão em curso dentro do quadro legal e do normal funcionamento institucional das Forças Armadas”, afirmou em comunicado.

O Presidente da República afirmou que tem estado em contacto com a ministra da Defesa e aguarda os resultados da investigação que está em curso "para verificar o que se passa com o navio e, por outro lado, o apuramento do porquê da atitude dos militares - que apresentaram um conjunto de razões para fundamentarem a sua posição".

A propósito deste episódio, o chefe de Estado e comandante supremo das Forças Armadas defendeu que "é uma das prioridades no presente e no futuro próximo a manutenção" de equipamentos militares. Marcelo Rebelo de Sousa referiu que "o Orçamento para 2023 já reforçou muitíssimo a manutenção – que, aliás, é comum a todos os ramos das Forças Armadas, não é só na Armada, a necessidade de manutenção" – e que "a Lei de Programação Militar que está em preparação vai reforçar o financiamento da manutenção".

"Como nós sabemos, e como a senhora ministra [da Defesa] ainda há dias numa entrevista disse, sem manutenção há riscos de obsolescência e, portanto, de degradação das capacidades militares, e daí a importância dada à manutenção em todos os níveis", reforçou.

Partidos querem ouvir a ministra

“Perante o estado atual em que se encontram as Forças Armadas, com recorrentes acontecimentos que apontam para uma degradação de equipamentos e falta de condições para os recursos humanos", a Iniciativa Liberal requereu a audição parlamentar urgente da ministra da Defesa Nacional e do chefe do Estado-Maior da Armada, salvaguardando a possibilidade de a audição ser feita à porta fechada, "caso o nível de classificação ou sensibilidade dos assuntos em questões assim o justifiquem".

“Atendendo a que o presente episódio apresenta uma situação grave de insubordinação, especialmente numa missão com elevada relevância, importa saber quais as motivações e as causas materiais que conduziram a uma atitude tão drástica por parte dos 13 militares”, refere o requerimento da IL.

Chega e PSD também sublinharam a importância de ouvir a ministra."Não sendo a primeira vez que são reportados casos graves e persistentes de avarias nos navios da Marinha, como foi o caso ocorrido num dos motores da Fragata Bartolomeu Dias (F 333), e sendo do conhecimento público que a Marinha este ano terá menos 33 milhões de euros para manutenção de navios (um défice de 41% face às necessidades), importa esclarecer qual é o real estado dos navios da Marinha Portuguesa e as reais necessidades financeiras necessárias para que situações" como esta "não se voltem a repetir", sustenta o Chega.

“Nada deste episódio aconteceu por acaso, nem é sequer isolado. A verdade é que as Forças Armadas portuguesas hoje estão depauperadas nos seus meios e equipamentos, têm um défice de efetivos, como é sabido, e esta dupla circunstância coloca, como não podia deixar de ser, graves constrangimentos à sua operacionalidade”, argumentou o deputado social-democrata Jorge Paulo Oliveira.

Também o PCP defendeu que “mais do que punições” é preciso que o Governo resolva os problemas de operacionalidade dos meios. “Estamos a falar de militares e por certo não foi de ânimo leve que assumiram a atitude conhecida”, considerou o PCP, frisando que "tem alertado e questionado em momentos diversos para problemas que crescem em torno da operacionalidade dos meios, bem como das condições proporcionadas aos militares".

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