Faz pavlova e cerveja artesanal, devora policiais, trabalha muito por ter “medo de falhar”: o outro lado de Mariana, a Mortágua mais velha por dois minutos

19 fev 2023, 18:00
Debate sobre o Orçamento do Estado para 2021

Há Mortágua. E há Mariana. Em público ou em privado, ela é a mesma: “verdadeira”. A garantia é dada por quem conhece bem aquela que deverá ser a futura coordenadora do Bloco de Esquerda. As suas paixões são como as suas causas: diversificadas. Há uma Mariana dedicada à cozinha, aos livros, ao desporto, ao teatro, ao Alentejo. E aos amigos. “Se estivermos em baixo, ela puxa-nos para cima”. É o que também se espera que consiga fazer no partido.

Há, entre a infância de Mariana Mortágua e a queda do Banco Espírito Santo, uma palavra em comum. Puzzles. Em garota, já gostava deles difíceis, de mil peças. Mas, quando colapsa um império, não é tão simples entender como tudo encaixa na perfeição. “Costumava ficar acordada até às três ou quatro horas da manhã para juntar as peças do puzzle”, contou, na altura, numa entrevista à TVI.

Embora não goste do escuro, a noite sempre foi um território desejado por Mariana Mortágua. Deita-se tarde, começa cedo. Leva o dia com a ajuda de café sem açúcar. Em miúda, no Alvito, havia uma regra: as luzes podiam apagar-se mais tarde, meia hora, se houvesse um livro. Ela agarrou-se às sagas “Uma Aventura” ou “Harry Potter”.

Hoje, quem se cruza com a deputada do Bloco de Esquerda – e potencial futura líder do partido -, além da documentação que o trabalho parlamentar faz nascer, encontra-a muitas vezes com livros nas mãos. É um sinal das características que mais lhe apontam: ser estudiosa, focada, rigorosa, metódica.

O caráter replica-se nas coisas aparentemente mais simples. Na hora de cozinhar, Mariana Mortágua prefere as sobremesas. Porque gosta de seguir a receita à risca, sem margens para invenções que podem colocar em causa o resultado final. A irmã gémea, Joana, carinhosamente, numa entrevista recente ao programa “Dois às 10”, chamou-a de “rainha das sobremesas”. “Rainha não, princesa das sobremesas”, corrigiu Mariana. Os amigos gabam-lhe a pavlova. Há uns tempos, tentou uns biscoitos, mas não correu tão bem.

Mas, antes dos doces, há outra receita que não pode faltar: o chili, seja na versão com carne ou vegetariana.

 

Mariana Mortágua no Parlamento em 2014, um dos cenários onde é mais vezes fotografada
Mariana não abdicou do seu estilo pessoal, com as sapatilhas a serem uma das imagens de marca

Leitora ávida de policiais, escritora ávida sobre economia

O tempo dedicado aos videojogos, em especial ao Call of Duty, é cada vez menor. Foi sendo ocupado pelos livros, que marcam as conversas em casa de Mariana Mortágua. Ela gosta de romances policiais e histórias sobre espiões. Ryszard Kapuscinski está entre os seus autores preferidos.

Mortágua tem também o seu apelido nas estantes. É autora de vários livros e artigos científicos. Um deles figura na mesma obra que o Prémio Nobel da Economia Joseph Stiglitz. As notas, a pesquisa com que os prepara, são feitas em letra pequena.

“Tenho um enorme medo de errar. Lido muito mal com o erro”. A confissão é feita em outubro de 2015, numa entrevista ao projeto “Capazes”. E, para evitá-lo, encontrou um caminho: o estudo. Mariana Mortágua é conhecida por analisar os temas que aborda até ao último ponto. A solidão do trabalho é, para ela, um lugar de conforto.

Quando chegou ao Parlamento como deputada, em 2013, Francisco Louçã tinha deixado já a liderança do partido, sucedido por João Semedo e Catarina Martins. Mariana Mortágua era, à altura, com 27 anos, a parlamentar mais jovem. Interrompeu o doutoramento em Londres para se sentar no hemiciclo. Foi necessário saltar nove lugares nas listas para chegar ao nome dela. Uma decisão que gerou contestação, abaixo-assinado e críticas de que era escolhida pelo seu perfil técnico.

Louçã e Mortágua haviam de trabalhar juntos noutras áreas que os apaixonam: os livros e a economia. Assinam, a quatro mãos, dois livros. “Tem uma capacidade de trabalho fenomenal, com muito esforço. E nunca teve receio de me corrigir”, diz à CNN Portugal o economista, que aprecia o facto de ela o tratar como um igual, sem hierarquias ou pompas.

Mas há uma coisa que Mariana não gosta de ler: caixas de comentários e redes sociais. Assusta-a a vertigem com que tudo se desenrola através dos ecrãs.

Mariana Mortágua em 2015, à margem, após negociação entre BE e PS, que viria a criar a geringonça (Lusa)

Cerveja, o sabor da luta (e a história da passadeira)

Num aniversário, Mariana Mortágua recebeu um “kit” para fabricar a sua própria cerveja artesanal. “Está cada vez melhor, mas não ao nível da sua intervenção política”, brinca o amigo Fabian Figueiredo. Conheceram-se através do Bloco de Esquerda, ainda antes de ambos serem militantes.

A luta, a militância e o ativismo sabem a cerveja. Mariana gosta das cervejas de trigo características do norte da Europa. E gosta delas rodeada de amigos.

“A cervejola, sim. Sempre nos demos muito bem à volta de uma cerveja”, recorda à CNN Portugal Teresa Cunha, um dos nomes que Mariana Mortágua refere sempre quando recorda os seus primeiros passos no ativismo, na Associação Jovem para a Justiça e Paz. Foi na terra natal, o Alvito, que se deu a ligação. “Era uma rapariga muito silenciosa, ouvia muito, estava muito presente, gostava da companhia das pessoas mais velhas e das tertúlias”.

As bandeiras de Mariana Mortágua são múltiplas: o feminismo, os direitos LGBTQIA+, o acesso à habitação, o combate à corrupção e aos privilégios dos mais ricos. Resumem-se no combate às injustiças e desigualdades sociais. “Não me surpreende nada a ascensão dela. É uma mulher extremamente inteligente e trabalhadora, com um percurso de ativista que lhe abre uma série de debates e ajuda a clarificar a sua posição no mundo”, acrescenta Teresa Cunha.

Mas, ainda o ativismo não sabia a cerveja, e já Mariana fazia das suas: na escola primária, com a irmã, foram à câmara municipal pedir que fosse colocada uma passadeira à frente da escola. Não ficaram satisfeitas com a explicação da professora, de que as coisas eram assim. E conseguiram que a passadeira fosse pintada.

Foco sempre esteve nos temas económicos, como aqui, no Orçamento do Estado para 2016 (Lusa)

Como Mariana ganhou a própria voz e enfrentou “o monstro”

24 de junho de 1986. Mariana é a irmã mais velha. Dois minutos mais velha do que Joana. Mas podia ter sido ao contrário, porque nasceram de cesariana. Nunca fizeram questão de serem iguais, inseparáveis, o cliché das gémeas, embora a vida as tenha colocado sempre lado a lado.

“Elas são diferentes. Em linguagem antiga, eu diria que a Mariana é marrona, agarra-se aos livros, trabalha e leva isso muito a sério. Gosta dos números e da matemática. A Joana gosta muito de trabalhar com as ideias e é mais intuitiva, mais espontânea, menos estruturada”, descrevia-as o pai, Camilo Mortágua, numa entrevista ao “Público” em 2015.

Durante muitos anos, em pequena, por vergonha ou timidez, Mariana pedia à irmã que fosse a sua voz. Estudaram na mesma escola, até ao nono ano, no Alvito. No secundário, Mariana foi estudar para Beja, Joana para Viana do Alentejo.

Mas como se transforma esta menina aparentemente tímida na mulher com uma voz capaz de afrontar, com respeito e sem reverência, figuras de poder, que pareciam intocáveis, como Ricardo Salgado, Zeinal Bava, Joe Berardo ou Luís Filipe Vieira?

“Não acho que a Mariana seja tímida. Tem é um traço de caráter muito interessante: é silenciosa porque está a escutar com muita atenção. Ela mantém essa forma de ser. Está a articular o pensamento”, explica Teresa Cunha.

Também Francisco Louçã não tem dúvidas: “A Mariana conhece os temas, está segura e é muito verdadeira. Não tem o defeito do calculismo, não anda à procura de se adaptar a uma carreira ou de criar favores. Ela destapou o monstro que existe em Portugal, esse poder financeiro imenso. E isso, por si só, faz-lhe inimigos”.

“Tudo o que a Mariana faz leva muito a sério. E tenta fazer o melhor possível. Ela é uma economista brilhante, mas precisa de trabalhar muitas horas. E é ela que faz o trabalho. Nunca vi a Mariana a encostar-se”, completa Fabian Figueiredo à CNN Portugal.

Já a irmã Joana, nesta fase em que o futuro de Mariana se desenha à frente do Bloco de Esquerda, prefere o silêncio. O que havia para dizer sobre elas, responde por mensagem, está nas entrevistas que foram dando ao longo dos anos.

Mariana Mortágua na sessão em que confrontou Zeinal Bava, ex-presidente executivo da PT

Banda sonora de uma vida eclética

Num serão, com amigos, na casa de Mariana Mortágua, a banda sonora é sempre uma surpresa. Gosta de Silvia Pérez Cruz ou de Florence + The Machine. Mas também de Mind Da Gap, Capicua, Sam the Kid, Dino D’Santiago, Mayra Andrade ou Branko. É provável que, ao vê-la passar de auscultadores, esteja a ouvir jazz ou música clássica. Para dançar, costumava preferir house e trance.

Sim, é possível caber tudo isto na mesma pessoa. Mariana tem, para os amigos, essa capacidade – tal como a de fazer malabarismo com três bolas ou de, no seu quotidiano, introduzir as mais variadas tarefas. Formou-se em Economia. Enquanto estudava, na licenciatura e no mestrado, de onde saiu com a melhor nota, sempre trabalhou. O doutoramento em Londres foi conciliado com a azáfama parlamentar. E, agora, também é docente universitária no ISCTE.

Mariana Mortágua também é presença assídua no espaço mediático, nas televisões. Muitos desses confrontos foram feitos com Adolfo Mesquita Nunes, que pertenceu ao CDS-PP. A primeira vez que estiveram frente a frente foi na TVI, em 2015, quando se estava a desenhar a geringonça. Ganharam depois, os dois, lugar cativo na SIC Notícias.

“Era uma pessoa com quem o debate era bastante correto, que me exigia uma grande preparação, porque se preparava bem para os temas, embora estivéssemos em pontos completamente divergentes na maior parte do tempo. Mantive com ela uma relação cordial, de respeito mútuo”, recorda Adolfo Mesquita Nunes.

Mas nem sempre Mariana sentiu que, enquanto jovem e mulher, mereceu o devido respeito dos seus intervenientes. “Condescendência”, descreveu numa entrevista com Rita Ferro Rodrigues para o "Capazes".

Mariana Mortágua, em outubro de 2020, discursa. É ouvida pelo primeiro-ministro, António Costa (Lusa)

Alvito e a raiz chamada Camilo

É de mota que Mariana Mortágua faz centenas e centenas de quilómetros. Há muito que deixou o carro. Estava podre e só dava chatices. Entre Lisboa e o Alvito, terra natal. Alentejo é casa. Alentejo é o ritmo cardíaco a abrandar, a história do “Peixinho Voador”, as sopas de feijão, as cabanas nas árvores, os joelhos esfolados. Ali o céu é verdadeiramente azul, uma das suas cores preferidas. Alentejo são memórias e a consciência de uma realidade dura para quem fica e resiste.

Alentejo é mãe e pai. É dele que herda o espírito contestatário: Camilo Mortágua, o revolucionário antifascista que participa no assalto ao navio Santa Maria, no desvio de um avião da TAP, num assalto ao Banco de Portugal da Figueira da Foz e lidera a ocupação da herdade da Torre Bela. “A extrema-direita gosta muito da minha família, em particular do meu pai, a quem chamam terrorista e assaltante”, desabafou numa entrevista ao podcast “Miss Yolo Pod” no início deste ano.

Camilo educou as filhas gémeas com um princípio: “A liberdade é total e a responsabilidade é total.” E nenhuma, aos seus olhos, se tornou rebelde. Por mais que essa imagem de rebeldia se tenha colado a Mariana Mortágua, pelos seus longos cabelos, pelos olhos outrora acentuados de negro, pelas roupas escuras, pelas sapatilhas.

“Ela conhece muito bem o país. Sabe o que é viver num dos concelhos com menos população, sabe o que é a perda de referências, de serviços públicos”, destaca à CNN Portugal o amigo Fabian Figueiredo, que aderiu ao Bloco de Esquerda em 2007 – e que, com ela, partilhou o blogue “Adeus Lenine”. No partido, havia de ser chamada por José Gusmão, quando este se tornou deputado, como assessora para as questões financeiras.

Mariana Mortágua em 2015, na preparação de uma entrevista na TVI

É agora, é hora?

Mariana gosta do anonimato da cidade. Em Lisboa jogou futebol e fez boxe e kickboxing. Os últimos convites para os amigos, em matéria desportiva, têm sido para corridas. Outra das paixões que a cidade permite alimentar é a do teatro. Mariana, inclusive, já escreveu folhas de sala para espetáculos.

Mas agora estará a preparar-se para um dos papéis mais desafiantes da sua vida: a de coordenadora do Bloco de Esquerda.

“É uma figura que não tem anticorpos, tem a frescura de um novo líder, e a notoriedade de ser reconhecida publicamente, com obra feita, sobretudo em questões de foro económico. Creio que haverá aqui um início de um estado de graça e um rejuvenescimento interno do partido. Se é suficiente para a reconquista do que perdeu, já é uma questão diferente”, analisa a politóloga Paula do Espírito Santo à CNN Portugal.

Internamente, diz à CNN Portugal o bloquista José Manuel Pureza, Mortágua é um dos nomes que encaixa “perfeitamente” no desejo de um líder que seja “capaz de combinar o conhecimento do partido com uma grande ligação ao movimento social”.

Os amigos, como Fabian Figueiredo, esperam que ela continue a ser a mesma de sempre: “É alguém a quem se pode pedir conselhos. Não há truques na amizade com ela. Se estivermos em baixo, ela puxa-nos para cima”. Conseguirá o mesmo com o Bloco?

Mariana Mortágua não gosta de atrasos. Para se proteger daqueles que a deixavam à espera, começou, ela própria, a ceder na sua pontualidade. Chegou agora o tempo dela?

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