opinião

Que herança nos deixa a flotilha?

7 out, 09:00

Num mundo que é cada vez mais a preto e branco, torna-se muito difícil construir e esgrimir uma opinião equilibrada, fundamentada em factos e de bom senso. Estamos a assistir a uma espécie de futebolização da política e da sociedade que pretende obrigar-nos a escolher um lado, um “clube”. E, se somos de um ”clube”, passamos a estar obrigados a enfrentar o adversário. Sem tibiezas. Sem “ses” nem “mas”. Ou és um de nós ou estás contra nós. 

O debate em Portugal em torno da flotilha onde viajou Mariana Mortágua veio extremar ainda mais as posições sobre o conflito no Médio Oriente, com responsabilidades partilhadas pela extrema esquerda e pela extrema direita. Como se a avaliação e análise política da decisão da coordenadora do Bloco de Esquerda só pudesse ser vista de uma de duas formas: quem apoia e quem está contra. Escolham a vossa trincheira e comecem a correr. 

Se apoiam a flotilha, é porque são seres humanos sensíveis ao sofrimento dos outros e condenam regimes autoritários e genocidas, como o de Benjamin Netanyahu. Se criticam a flotilha, é porque são insensíveis ao sofrimento dos palestinianos e apoiam um ditador sanguinário. Não há como escapar.  

Pois eu recuso-me a aceitar esta lógica binária da sociedade e do mundo, desde logo porque ela tem um enorme potencial destrutivo. 

É possível condenar o Hamas e, com a mesma veemência, condenar o regime de Netanyahu. Como é possível ser-se tão sensível ao sofrimento dos israelitas como ao dos palestinianos. Isso não nos torna nem terroristas nem genocidas. 

Mas foi nisto que se transformou o debate sobre o Médio Oriente. Defendi e defendo que a decisão de Mariana Mortágua em embarcar nesta flotilha foi, simultaneamente, um ato de coragem e um erro político. Foi um ato de coragem porque admito que o fez por convicção – coisa que não desvalorizo nos dias que correm –, em nome do que acredita e em defesa de um povo que está a sofrer. Mas foi um erro político em três dimensões.

A flotilha, como já se tinha visto na viagem anterior de Greta Thunberg, acabou por chamar mais à atenção para os seus ocupantes do que para o sofrimento do povo palestiniano. O único efeito prático que teve foi o de dividir mais do que unir. 

Em segundo lugar, Mortágua aceitou viajar com gente que é incapaz de condenar – ou até reconhecer – os atos bárbaros e criminosos que o Hamas levou a cabo a 7 de outubro de 2023, faz esta terça-feira precisamente dois anos. E menos ainda são capazes de considerar este movimento aquilo que é: um grupo terrorista. Lamento, mas a vida de um israelita não vale menos do que a de um palestiniano. 

Por fim, foi ainda um erro porque Mariana Mortágua é líder de um partido que perdeu quase meio milhão de votos em três anos – e, sendo também a sua única deputada, conseguiu com esta viagem reduzir o discurso político do Bloco a um tema único, o da Palestina. Por meritória que seja a causa, parece-me um erro de avaliação política. Mas esse julgamento caberá, no final, aos eleitores. 

Uma coisa é evidente: ao contrário do que Mariana Mortágua disse à chegada a Lisboa, esta flotilha não serviu para mobilizar mais gente para a causa palestiniana. Pelo contrário, serviu para polarizar ainda mais. Acredito que não fosse essa a intenção, mas foi esse o resultado. E esta polarização da sociedade, que está cada vez mais acelerada, é uma nova pandemia. Também mata, mas de forma diferente. E não começa pelas pessoas.

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