Maria Ressa, Nobel da Paz: "Estamos a caminho de outra era de fascismo em que o controlo sobre nós é o controlo da mente"

4 jul, 07:00
Maria Ressa jornalista Filipinas CEO Rappler Prémio Nobel da Paz

ENTREVISTA || Já só falta um processo judicial para Maria Ressa ser ilibada de todas as acusações fabricadas pela administração Duterte. Com o ex-presidente filipino agora detido em Haia, a jornalista laureada com o Nobel da Paz em 2021 fala num momento de esperança no país-natal, ainda que o panorama global esteja longe de ser esperançoso

Em entrevista exclusiva à CNN Portugal, Maria Ressa destaca a urgência de combater a “impunidade”, quer de “líderes no mundo real, como Putin e Netanyahu”, quer dos chamados ‘tech bros’, como Elon Musk e Mark Zuckerberg. “Estamos a enriquecer as tecnológicas à custa da nossa humanidade, o que incentiva o pior do que somos enquanto pessoas.”

Em tempos alvo de 90 mensagens de ódio por hora, a antiga jornalista da CNN "fartou-se" de esperar que gigantes tecnológicas como o Facebook "protegessem os factos e os jornalistas" e tomou as rédeas do combate à desinformação em mãos. Em 2011, lançou o Rappler, o site de jornalismo de investigação no centro dos processos judiciais interpostos pela anterior administração filipina, através do qual tem batalhado numa "tripla frente" pelos factos, a verdade e a democracia. "Quando se está nas trincheiras, é preciso sobreviver. E nós não só sobrevivemos como a nossa comunidade prosperou connosco."

Numa “era de mentiras exponenciais”, em que cada um tem de “ajudar a redefinir o significado de participação cívica”, Ressa aborda conceitos que ainda não entraram no léxico do cidadão comum, como o de “merdificação”, que mostram “como já não conseguimos distinguir factos de ficção”. E entre o Matrix e o Truman Show, com tecnológicas "a governar o mundo”, também o jornalismo precisa de se reinventar, destaca a Nobel da Paz. “Quando se trava uma batalha pelos factos, é preciso chamar os bois pelos nomes.”

 

Houve eleições intercalares nas Filipinas em maio e os resultados foram algo agridoces. Por um lado, o partido da senadora Leila de Lima conquistou alguns ganhos inesperados, por outro, o ex-Presidente, Rodrigo Duterte, foi novamente eleito autarca de Davao apesar de estar a aguardar julgamento no Tribunal Penal Internacional, em Haia. Há poucos dias, a Maria foi absolvida num dos vários processos que a administração Duterte abriu contra si.

Sim, já só me resta mais um processo judicial.

É mais um bom sinal nesta encruzilhada em que o seu país se encontra? Há algum tempo disse que, com Rodrigo Duterte, as Filipinas estiveram no inferno e que agora, sob a administração Marcos, estão no purgatório. Que ponto da situação faz após estas eleições?

A principal conclusão é que as coisas podem melhorar. E isto é interessante para outros países em todo o mundo, porque o que nos aconteceu a nós está a acontecer a vocês, em que, mais uma vez, as coisas dependem da adoção da tecnologia, das redes sociais, da Inteligência Artificial (IA) generativa, dos chatbots, certo? No fundo, a tecnologia é o fósforo que incendeia a lenha seca. 

Nas Filipinas, digo que passámos do inferno ao purgatório porque Rodrigo Duterte foi preso em março por alegados crimes contra a humanidade, no âmbito da sua brutal guerra contra as drogas, que matou muita gente. Os números variam dependendo com quem se fala, e veja-se a loucura disto – não fazemos ideia de quantas pessoas foram efetivamente mortas nessa guerra. Essa é a primeira baixa na batalha do meu país pela verdade, pelos factos.

Depois, em 2022, elegemos Ferdinand Macros Jr., o único filho do homem que este país expulsou numa revolta popular em 1986. E ele, o atual Presidente Marcos, mandou prender Rodrigo Duterte, o que trouxe uma sensação de esperança de que o Estado de Direito existe.

Passou quase uma década desde que Duterte tomou posse, em 2016, até ser preso este ano, agora está detido em Haia, a aguardar julgamento, que julgo que começará em setembro. E se olharmos para o que estava a acontecer em todo o mundo em 2016, e agora para o tipo de impunidade que está a acontecer com a Rússia na Ucrânia, com Israel em Gaza, para o que está a acontecer nos Estados Unidos e noutros países em todo o mundo, ficamos com a sensação de que a maior batalha que temos de travar neste momento, a nível global, é perceber se ainda existe ou não uma ordem internacional baseada em regras.

Julgamento de Rodrigo Duterte no TPI por suspeitas de crimes contra a humanidade deverá arrancar em setembro foto: Daniel Ceng/Anadolu via Getty Images

Há cada vez mais dúvidas sobre isso.

Sim. Mas temos de nos questionar: será que o Estado de Direito existe? Em março, foi realmente maravilhoso regressar a Manila, cheguei a casa no sábado em que o mandado de captura foi emitido pelo TPI, Duterte foi preso na terça-feira de manhã e, nessa mesma noite, foi levado de avião para Haia. Mas voltando à questão de como estamos nas Filipinas. Está longe de ser perfeito, mas o que as Filipinas nos mostram é que podemos passar de um lugar lúgubre para um sítio melhor, podemos passar de um lugar onde morriam pessoas todas as noites…

Na tal guerra contra as drogas de Duterte?

Sim. Durante esse período, registámos uma média de oito cadáveres por noite, segundo dados recolhidos por um repórter que enviámos para as ruas. Mas, entretanto, a polícia disse que houve uma média de 33 pessoas mortas a cada noite nesse período – repare, estes são números da polícia. O que as Filipinas podem mostrar é que passámos desse período para um momento em que os ataques aos meios de comunicação diminuíram, o número de pessoas mortas nessa guerra contra as drogas diminuiu… Não posso dizer que essa guerra tenha desaparecido completamente, mas tenho esperança de que possamos avançar.

Estamos literalmente a eleger líderes iliberais democraticamente. E o que depois vemos é que estas contas falsas que espalham desinformação trabalham em conjunto, a nível global"

O importante é que o fim da administração Duterte, após um mandato de seis anos, só aconteceu porque a polícia e os militares decidiram seguir as regras do Estado de Direito. Daí dizer que passámos do inferno para o purgatório. E estas intercalares deram-me mais esperança de que, se a guerra de informação for reduzida, se o Governo não utilizar a desinformação como política, podemos recuperar a nossa agência, a nossa capacidade de ação, e começar a restaurar os princípios da democracia.

Ainda assim, a desinformação continua muito presente em todo o mundo. Aqui em Portugal acabámos de ter eleições legislativas antecipadas e, dias antes da votação, um estudo mostrou o peso brutal das contas falsas e bots em redes sociais a favor da extrema-direita, que é agora a segunda maior força política no Parlamento. Isto é um fenómeno que, como refere, não é exclusivo das Filipinas ou de Portugal, nem da Roménia ou da Polónia, vemo-lo em todo o lado. Nesse sentido, quão livres somos, enquanto seres políticos, nesta era da desinformação? Temos realmente independência e poder de ação?

Foi exatamente com essa ideia que fechei o meu discurso no Fórum da Governação da Internet, na semana passada, em Oslo. Essa é a grande questão que temos de nos colocar: ainda temos agência, ainda temos poder de ação? Estes dispositivos [smartphones], e as plataformas que nos manipulam insidiosamente, fazem mais dinheiro quanto mais atenção nossa captam. E como é que fizeram isso? Piratearam a nossa biologia. Se eles souberem que espalho fobia, não há factos aborrecidos, então incitam ao medo, à raiva e ao ódio. E, portanto, o nosso poder de ação é uma grande questão.

Quando menciona todos esses casos, fico perplexa, porque já estamos a ver os efeitos na democracia dessa manipulação ao nível celular. Em março, o V-DEM da Suécia disse que 72% do mundo está agora a viver sob regimes autoritários. Estamos literalmente a eleger líderes iliberais democraticamente. E o que depois vemos é que estas contas falsas trabalham em conjunto a nível global.

As respostas também têm de ser globais?

Exato, não é possível encontrar uma solução apenas num país. Temos de encontrar uma solução global. Veja, 2014 foi o ano em que este tipo de experimentação, em que a semeadura de meta-narrativas começou, pela Rússia, tendo como primeiro alvo a anexação da Crimeia, que foi a meta-narrativa que viria a usar oito anos depois, em 2022, para invadir a Ucrânia. Foi isso que Putin usou. E foi em 2016 que o dominó político começou realmente a cair. Duterte foi eleito em maio. Cerca de um mês depois, deu-se o Brexit no Reino Unido. Depois, em novembro, tivemos Donald Trump 1.0. E em França, o Governo exigiu que o Facebook eliminasse contas falsas – entre 30 mil e 50 mil contas falsas foram eliminadas – e foi assim que Emmanuel Macron ganhou as eleições em janeiro de 2017. Caso contrário, isso não teria acontecido. A questão é que, desde 2016 e até hoje, apenas uma nação teve a coragem de anular eleições devido a este tipo de interferência eleitoral.

A eleição de Duterte em maio de 2016 e a votação pelo Brexit em junho do mesmo ano foram as primeiras manifestações práticas dos efeitos da desinformação na sociedade foto: Isabel Infantes/EPA

Fala da Roménia?

Precisamente, uma nação mais ou menos do tamanho da Malásia, recorrendo à realidade nesta parte do mundo onde vivo. Uma nação que, vendo a interferência ocorrida sobretudo no TikTok, anulou o processo eleitoral e convocou novas eleições para maio deste ano. E o que aconteceu na segunda volta dessas eleições foi que um génio da matemática foi eleito Presidente. Ele continua a ser conservador, mas é um conservador de centro. Porque o que importa agora não é o partido político, se os líderes são de esquerda, de direita, ou de centro. O que deveria importar é que os líderes eleitos são a escolha do povo. E é aí que reside o problema.

Quando vivemos neste ambiente online corrompido, a estrutura de incentivos é corrompida, as coisas erradas, o poder e o dinheiro, é que são incentivadas. Se as mentiras se espalharam seis vezes mais rápido [do que a verdade] em 2018, como mostrou um estudo do MIT nesse ano, as coisas pioraram significativamente até hoje, depois de Elon Musk ter comprado o Twitter e tê-lo transformado na X. Todos os estudos o mostram. Como é que os governos podem aceitar que têm integridade eleitoral neste contexto, como é que podem continuar a agir como se tivessem? Este é o mundo atual em que vivemos.

Estamos a caminhar para o tecnofascismo?

Estamos a assistir a uma mudança para um estilo mais autoritário, uma palavra bonita que corresponde a fascismo. É para onde estamos a ir. E se nós, as pessoas, não nos unirmos e exigirmos melhor… Repare, houve dois grupos que abdicaram da sua responsabilidade. Em primeiro lugar, as empresas de tecnologia. Em 2014, a Big Tech, as redes sociais, tornaram-se o distribuidor de informação e os grupos noticiosos perderam o seu poder. No passado, [os meios de comunicação social] detinham tanto o poder da criação do jornalismo quanto o poder de distribuição, mas isso mudou em 2014, quando as grandes tecnológicas abdicaram da responsabilidade de proteger as pessoas. Não se trata de uma questão de liberdade de expressão. 

A questão é que agora, com esta segunda administração Trump, temos as grandes tecnológicas totalmente infiltradas no governo do país mais poderoso do mundo. Como é que se combate este tipo de poder? O que é que nós, cidadãos e países, podemos fazer? Neste momento, a União Europeia (UE) está em negociações comerciais com os EUA e, segundo várias fontes, o grande ponto de contenda é, precisamente, a regulação das tecnológicas, que a UE quer implementar e que a administração Trump quer ver eliminada.

Isto mostra exatamente.. Chamam-lhe a ‘broligarquia’, certo? Porque este tipo de consolidação do poder levou a que se desse poder e dinheiro aos oligarcas. Anne Applebaum chamou-lhe Autocracia, Inc. Nós chamamos-lhe cleptocracia, já passámos por isto várias vezes nas Filipinas. O problema, aqui e agora, é a ausência de liderança americana. O que está a acontecer na própria América? A privacidade dos dados é um mito. Elon Musk utilizou uma agência governamental [DOGE] para obter dados pessoais dos americanos que estão agora a ser processados por voluntários para serem utilizados como? Estes ‘bros’ da tecnologia estão a conseguir o que querem, mas o que é que isso significa para as pessoas?

A liderança hoje é difícil, na melhor das hipóteses, e impossível, na pior, por causa da forma como as pessoas recebem notícias, em particular os jovens"

Aqui fica o apelo à ação, o desafio para todos nós, especialmente para os líderes na UE e no Sul Global. Veja-se como o Brasil está a enfrentar Elon Musk, como França está a enfrentar isto, ao mandar deter o fundador do Telegram… Temos de acabar com a impunidade, quer no mundo real, com Putin e Netanyahu, quer com os ‘tech bros’, como Elon Musk e Mark Zuckerberg.

Essa é uma das ideias centrais do seu livro, “Como fazer frente a um ditador”...

Sim, no meu livro há dois líderes com impunidade, Duterte e Zuckerberg. Qual deles é o maior ditador? Quem é que tem um impacto global? Eles usam táticas semelhantes de manipulação para ganhar poder. E como é que se trava essa impunidade? O que é que podemos fazer? Como é que é a liderança? Hoje, a liderança é difícil, na melhor das hipóteses, impossível, na pior, por causa da forma como as pessoas recebem notícias, em particular os jovens. Eles não as recebem pelos media, mas através das plataformas de redes sociais, que espalham mentiras mais rapidamente, que nos manipulam para obter lucro. Então, o que é que precisamos de fazer? Pegando novamente no caso do Brasil, porque estive lá há pouco tempo e vou lá voltar na próxima semana: tal como as Filipinas, o Brasil passou do inferno para o purgatório e vai ter eleições [presidenciais] no próximo ano, os brasileiros conhecem o perigo desta desinformação.

Usando a citação de um antigo chefe da União Soviética e antigo chefe do KGB, Yuri Andropov: “A desinformação é como a cocaína – se a tomarmos uma ou duas vezes, estamos bem, mas se a consumirmos a toda a hora, ficamos viciados”. Nós, cidadãos de todo o mundo, tornámo-nos viciados, o que significa que não conseguimos ajudar-nos a nós próprios. Não somos saudáveis. Perdemos o nosso poder.

"É difícil para um país fazer o que a Roménia fez, caso contrário, mais países já o teriam feito mais  cedo" foto: Andreea Alexandru/AP

E como é que resolvemos isto? 

Precisamos de A) identificar o problema, e B) trabalhar para encontrar soluções. E quanto aos líderes, este é o momento de liderar. Roménia, obrigado! É difícil para um país fazer o que a Roménia fez, caso contrário, mais países já o teriam feito mais cedo. 

Fala da Roménia, mas tomemos, por exemplo, o caso da Polónia. Todos tinham esperança de que, na segunda volta das presidenciais há poucas semanas, o candidato pró-UE ganhasse. Mas depois, Trump enviou a sua secretária de Segurança Nacional a Varsóvia para apoiar o candidato populista e nacionalista, que acabou por ser eleito Presidente.

Mas por isso é que sinto que este é o momento em que não podemos… Se somos cidadãos numa democracia, não podemos ficar de braços cruzados. Este é o momento em que, mesmo que se ganhe num passo e se perca noutro, é preciso estar atento e continuar a avançar. Este é o momento em que cada cidadão tem de ajudar a redefinir o significado de participação cívica numa era de mentiras exponenciais. E este é um momento – já agora, obrigado por perguntar sobre o nosso poder de ação – em que precisamos de garantir que mantemos o pensamento independente. Caso contrário, a tendência do mundo é clara. 

E o que podem os jornalistas fazer no atual contexto? Muitos apoiantes de Trump, de Duterte, de André Ventura aqui em Portugal, dizem que votam nestes líderes porque eles “dizem a verdade”. Mas a verdade deles não é o que podemos empiricamente provar que é verdade, antes uma forma de falar sem filtros em que não interessa realmente se o que dizem é factual, o que dificulta mais o nosso trabalho enquanto jornalistas. Ao mesmo tempo, há esta complexificação dos fenómenos cibernéticos, para além das redes sociais, temos agora a IA generativa, que representa todo um novo conjunto de desafios… Como é que os jornalistas podem lutar pelos factos? No seu caso, como é que o Rappler está a travar essa luta?

Diria que o primeiro passo é perceber de que forma é que estas plataformas estão desenhadas e como é que estamos a ser manipulados por elas. Na verdade, de uma forma estranha, ser alvo dos ataques que fui foi, ao mesmo tempo, uma maldição e uma bênção – foi doloroso receber 90 mensagens de ódio por hora, mas isso também significou que não tive de pedir os dados às plataformas, porque estava a recebê-los diretamente. E isso deu-nos uma oportunidade de realmente os analisar.

Penso que muitos jornalistas em todo o mundo têm o dever de cobrir a tecnologia e o seu impacto na humanidade, mas não enquanto fãs da tecnologia. Também adoro esta tecnologia, enamorei-me desta tecnologia – e criámos o Rappler porque acreditamos que podemos usá-la para nos empoderar para melhor. Nunca pensámos que pudéssemos ser manipulados da forma como o somos hoje, então devíamos estar a comunicar isso mesmo.

Citando um antigo chefe da União Soviética e antigo chefe do KGB, Yuri Andropov: 'A desinformação é como a cocaína – se a tomarmos uma ou duas vezes, estamos bem, mas se a consumirmos a toda a hora, ficamos viciados'. Nós, cidadãos de todo o mundo, tornámo-nos viciados, o que significa que não conseguimos ajudar-nos a nós próprios. Não somos saudáveis. Perdemos o nosso poder"

Há muitos estudos que estão a sair agora sobre a forma como os seres humanos podem estar a perder a sua capacidade de ação e a forma como as democracias podem ser destruídas a partir do seu interior. Porque quando elegemos democraticamente um líder iliberal, esse líder não se fica pelo seu país, alia-se a outros líderes noutros países, e isso está a mudar o mundo. Essa é a primeira ideia.

Qual é a segunda?

A segunda é que a forma de fazer jornalismo também tem de mudar. Digo isto aos meus colegas americanos a toda a hora. No passado, por exemplo na CNN, quando estava lá, as únicas vezes em que se cobria um protesto era se fosse enorme ou se fosse violento. Mas na era de Trump, está a haver centenas, milhares de protestos, e essa é a resistência que se está a formar perante ações largamente ilegais e inconstitucionais que estão a ter lugar.  O que está a acontecer nos EUA é o mesmo que aconteceu nas Filipinas, ou seja, temos os três ramos do governo coiguais, quando é suposto que o ramo legislativo mantenha o executivo sob controlo – só que agora foi cooptado, coagido, ou corrompido, como lhe quisermos chamar. O único ramo que resta é o judiciário e o que estamos a assistir nos EUA é muito semelhante ao que aconteceu nas Filipinas.

O que é que isso significa na prática?

Significa que os jornalistas têm de chamar os bois pelos nomes. Nas Filipinas, Duterte mentiu muito e muito cedo e nós dissemos desde o início que ele estava a mentir, mas mesmo assim levou muito tempo até outros jornalistas usarem essa palavra, porque quando usamos a palavra ‘mentir’ parece que estamos a tomar um dos lados, quando estamos só a noticiar um facto. É um facto. E eis a última coisa que aprendemos nas Filipinas: quando se trava uma batalha pelos factos, o jornalismo torna-se ativismo. É preciso noticiar os factos. Utilizem a capacidade de análise que têm para mostrar a imagem do mundo tal como ele é. 

Nós, jornalistas, somos muitas vezes diretamente atacados e ficamos pessoalmente vulneráveis e penso que as organizações noticiosas têm de se aperceber disto e começar a adaptar-se a isso. Mais uma vez, vou dar um exemplo americano: quando Volodymyr Zelensky estava na Casa Branca, entre as 13h e as 19h daquele dia, ouvi os repórteres de última hora em todos os canais a repetir o que o Presidente Trump disse, mas o Presidente Trump mentiu. Talvez um correspondente estrangeiro tivesse feito um trabalho melhor, no sentido de transmitir uma sanduíche de verdade.

"Quando Volodymyr Zelensky estava na Casa Branca, entre as 13h e as 19h daquele dia, ouvi os repórteres de última hora em todos os canais a repetir o que o Presidente Trump disse, mas o Presidente Trump mentiu" foto: Jim Lo Scalzo/Pool/EFE via EPA

Uma sanduíche de verdade?

Sim, neste caso noticiar as declarações de Trump da seguinte forma: a Rússia invadiu a Ucrânia, aqui está o que o Presidente Trump disse e, novamente, a Rússia invadiu a Ucrânia e, em cima disso, quatro dias antes, na segunda-feira anterior, os EUA votaram [na ONU] contra um dos princípios do mundo multilateral que ajudaram a construir, votaram contra esse valor.

A primeira coisa que os jornalistas precisam de fazer é perceber o mundo em que vivemos, chamar as coisas pelos nomes e compreender também que temos de colaborar, de trabalhar em conjunto. As organizações noticiosas já não são só esta marca ou aquela. Estamos todos do mesmo lado, do lado dos factos. E tudo isto resume-se, como já disse anteriormente, em factos, verdade, confiança. É preciso lembrarmo-nos de que não estamos sozinhos, que o jornalismo faz parte da sociedade civil.

De que forma é que a sociedade civil pode organizar-se?

Essa é a segunda coisa que aprendemos nas Filipinas. Em 2022, ajudámos a organizar cerca de 150 grupos diferentes da sociedade civil naquilo a que chamámos “pirâmide dos factos primeiro”, uma pirâmide de quatro camadas. O objetivo era utilizar estas plataformas de redes sociais que nos estavam a atacar, que estavam a destruir a verdade e os factos, para criar um sistema de distribuição à vista do público, para que se pudesse juntar a sociedade civil aos factos – e conseguimos fazê-lo, esta coligação está viva ainda hoje.

Nunca pensámos que pudéssemos ser manipulados da forma como o somos hoje, então, enquanto jornalistas, devíamos estar a comunicar isso mesmo"

A terceira parte é algo que construímos e lançámos para as nossas eleições de maio, com base na ideia de que a tecnologia é um de três pilares interligados: jornalismo, comunidade e tecnologia. No que respeita ao jornalismo, continuamos a fazer o nosso trabalho e evoluímos à medida que a situação muda. Quanto ao segundo pilar, começámos a construir ativamente comunidades de ação. E em terceiro lugar, não existe uma pilha de tecnologia de interesse público. Como comecei por dizer, houve dois grupos que abdicaram da responsabilidade de proteger o público no mundo virtual: as empresas de tecnologia e os governos democráticos, que não criaram leis para nos proteger.

Repare, estou numa sala que sei que não me vai cair em cima, porque existem códigos de construção civil. Mas não existe nada disso na internet. O setor menos regulamentado a nível mundial é o mundo virtual. E os ‘bros’ destas empresas oligárquicas de Sillicon Valley estão sentados na fila da frente da administração Trump, tal como acontece com o TikTok na China. São estas empresas que estão a governar o mundo e estão a fazê-lo como naquele filme com o Leonardo DiCaprio, aquele em que eles entram no mundo dos sonhos, do inconsciente.

A Origem [Inception].

Exato, Inception. É exatamente isso que eles estão a fazer. E o que fizemos no Rappler foi: há três anos, fartei-me de implorar a Silicon Valley – ao Facebook, ao YouTube… – que protegesse os factos, que protegesse os jornalistas, e decidi que precisávamos de ser nós a construir tecnologia. Os jornalistas precisam de construir tecnologia para terem integridade na informação. E por isso procurámos saber onde estão os governos que têm regras de privacidade de dados. Onde é que estão? O que estão a utilizar? 

Encontraram a resposta?

Sim, encontrámos algo chamado Protocolo Matrix, que é usado nos sítios web do governo em França, do governo na Alemanha, Taiwan também utilizava o Protocolo Matrix – que é descentralizado, de código aberto e seguro. Aí começámos a construir uma aplicação de chat em cima deste protocolo, que lançámos no final de 2023, e que, no último ano, inclusivamente durante este período eleitoral, permitiu que pessoas reais falassem com outras pessoas reais sem serem manipuladas, sem fins lucrativos. 

Tem sido esta a nossa forma tripla de luta. Quando se está nas trincheiras, é preciso sobreviver. E não só sobrevivemos como a nossa comunidade prosperou connosco. Mas agora, pelo que me diz, também vou ter de me preocupar com a Polónia [risos]. O que deixa claro que temos de manter a guarda levantada.

"O problema, aqui e agora, é a ausência de liderança americana. A privacidade dos dados é um mito. Elon Musk utilizou uma agência governamental [DOGE] para obter dados pessoais dos americanos que estão agora a ser processados por voluntários para serem utilizados como? Estes ‘bros’ da tecnologia estão a conseguir o que querem, mas o que é que isso significa para as pessoas?" foto: Julia Demaree Nikhinson, Pool/AP

No seu livro aborda conceitos que já entraram no léxico comum, como ‘capitalismo de vigilância’, mas também outros que eu não conhecia, como ‘comportamentos inautênticos coordenados’, ‘astroturfing’ e um em particular, ‘merdificação’ [‘enshittification’, no original]. O jornalista que cunhou este conceito, Cory Doctorow, diz que esta ‘merdificação’ das redes sociais vai conduzir à morte das redes sociais. Concorda? Ou diria que isto é mais um desejo ilusório?

Há muita coisa que ainda vai acontecer. Esta expressão que ele cunhou, “merdificação”, significa que já estamos no ponto em que não conseguimos distinguir factos de ficção. E mais uma vez falo das três expressões que repito vezes sem conta: sem factos não há verdade, sem verdade não há confiança. Sem estas três coisas, o mundo torna-se um mundo em que não temos uma realidade partilhada e em que, portanto, não podemos resolver nenhum problema.

Se os jornalistas desaparecerem, a democracia morrerá. Diria, por isso, que é uma ilusão, ou no mínimo um pensamento muito distante. Porque se todas as tendências continuarem como estão, estaremos a caminhar para outra era de fascismo, de controlo sobre nós. E este controlo é o controlo da mente. No discurso do Nobel, em 2021, chamei-lhe um ‘sistema de modificação de comportamento’. E agora, junta-se a isto a IA generativa… 

O setor menos regulamentado a nível mundial é o mundo virtual. E os ‘bros’ destas empresas oligárquicas de Sillicon Valley estão sentados na fila da frente da administração Trump, tal como acontece com o TikTok na China. São estas empresas que estão a governar o mundo e estão a fazê-lo como naquele filme com o Leonardo DiCaprio, aquele em que eles entram no mundo dos sonhos, do inconsciente"

Houve um estudo que acabou de ser divulgado pelo MIT que mostra que, quando se está a escrever com recurso ao ChatGPT, as partes do nosso cérebro que deveriam acender não acendem. Estamos a viver um período fascinante e a pergunta que coloquei no discurso de encerramento do Fórum de Governação da Internet está ligada a isto: a humanidade vai servir a tecnologia ou a tecnologia vai servir a humanidade?

Arrisca uma resposta?

Neste momento estamos a enriquecer estas empresas de tecnologia à custa da nossa humanidade, o que, na verdade, incentiva o pior de quem somos enquanto pessoas. Acredito na bondade da humanidade. Este é o meu 39.º ano como jornalista, vivi alguns dos piores desastres e tentativas de golpe e violência. Mas, mesmo assim, nos piores momentos, há pessoas que restauram a bondade, que na pior catástrofe em que se pode estar, por exemplo, no meio de um tufão, nos dão a sua água potável, que não têm muita água, mas que nos ajudam com a pouca que têm. 

Não sei porque é que Cory Doctorow diria isto, a não ser que esteja a dizer que a IA generativa não funciona. Mas está a ser implementada pela indústria, pelo poder e pelo dinheiro – continua a ser implementada. As IA agênticas já foram lançadas, apesar de pessoas como Yoshua Bengio, que ganhou o Prémio Turing, e Geoffrey Hinton, que ganhou o Prémio Nobel, se oporem ao lançamento de IA agênticas sem barreiras. A ganância da indústria está a fazer com que sejam lançadas. E que danos nos causarão? Estamos agora a começar a ver isso.

O primeiro homem que se suicidou por causa de um LLM [modelo de linguagem de grande escala] era belga, não era do Sul Global... E agora temos vários processos judiciais a serem interpostos em várias partes do mundo [para regular a IA]. Como é que lutamos contra isto?

Enquanto jornalistas, também estamos preocupados. Vai o jornalismo sobreviver a esta era? Há pouco mais de um ano, eu disse que o jornalismo podia morrer. O nosso modelo de negócio está morto. A big tech estrangulou o tráfego em todos os sites de notícias. No ano passado, em que houve pelo menos 74 grandes eleições no mundo inteiro, o Facebook estrangulou o tráfego para os sites de notícias, a Google lançou a IA generativa...

Na cerimónia de entrega do Nobel da Paz de 2021, que venceu juntamente com o jornalista russo Dmitry Muratov (ao centro), Maria Ressa lançou uma questão mais relevante do que nunca: "agora que estamos a pisar os escombros do mundo que existiu, vamos construir ativamente um mundo melhor? Ou vamos destruí-lo ainda mais?" foto: Alexander Zemlianichenko/AP

E o impacto disso está à vista, como temos vindo a discutir…

Certo, e por causa disso, todos nós, nos media, recebemos menos tráfego nos nossos sites. A grande questão é que precisamos de escrever a história deste mundo em transição em relação ao mundo que conhecíamos.

Vou utilizar citações da conferência do Prémio Nobel: agora que estamos a pisar os escombros do mundo que existiu, vamos construir ativamente um mundo melhor? Ou vamos destruí-lo ainda mais? É uma questão existencial. E quando digo existencial, quero dizer que, se os governos errados rejeitarem as regras relativas às alterações climáticas, por exemplo – e já estamos a ver isso nos EUA – se as alterações climáticas não forem levadas a sério, estamos a matar o nosso planeta. Os objetivos de desenvolvimento sustentável foram rejeitados. Perdoe-me esta resposta tão longa, no fundo para dizer que temos de nos unir. E, na verdade, há alguns líderes de direita, alguns conservadores, que estão a fazer a coisa certa em relação ao clima, alguns líderes surpreenderam-nos.

Que líder lhe vem à cabeça?

[Giorgia] Meloni, em Itália, é um caso relativamente interessante. As pessoas estavam à espera do pior, mas na verdade ela tem-se saído bem, não? Parece estar a sair-se bem, embora não acompanhe essa realidade com muita proximidade.

Podemos argumentar que está a sair-se bem nalguns tópicos, mas noutros nem por isso, por exemplo no que toca às migrações… Quando a verdade é que está tudo interligado, certo? Se não dermos resposta ao problema das alterações climáticas, as migrações vão aumentar, e se não combatermos o aquecimento global nem acolhermos migrantes, as nossas economias vão sofrer...

Tens toda a razão, e espero que estejas a cobrir este tipo de histórias, porque não temos jornalistas suficientes a fazê-lo. E por causa disso, as pessoas são apanhadas desprevenidas. Ainda bem que falas em migrações, porque eis outra coisa em que reparámos em quase todos os países.

Acabámos agora um estudo sobre a Moldova, onde tem havido muita desinformação russa, mas aqui refiro-me também ao caso do Brasil, ao caso do Reino Unido quando se deram aqueles protestos violentos... Em quase todos os países, incluindo nos Estados Unidos agora, as duas linhas de fratura abertas à força pelas operações de desinformação são as mesmas: género e raça.

É doloroso assistir a esta abertura da linha de fratura racial na América. Está a fazer-nos retroceder em todas as conquistas. Mas eis a derradeira questão: é que a raça está profundamente ligada à imigração. O que é que [Viktor] Orbán pôs na Constituição da Hungria? O branco cristão… Soa familiar? 

"2025 está a ser um ano horrível, com muito mais violência. Quer dizer, ter a América a bombardear o Irão…? Assistir à destruição contínua de Gaza, aos ataques contínuos da Rússia à Ucrânia… As pessoas em todo o lado não se apercebem de que aquelas pessoas somos nós. Mais de 17 mil crianças mortas em Gaza... Estamos a assistir a toda esta violência. E violência online corresponde a violência no mundo real" foto: AP

Há um ano afirmou que, no final de 2024, íamos saber se a democracia vive e morre. Meio ano depois, acha que a democracia vai sobreviver? Ou vamos continuar a assistir à sua morte lenta?

Neste momento não está a conseguir sobreviver... Todos os que foram eleitos nas tais 74 eleições do ano passado tomaram posse em 2025 – e 2025 está a ser um ano horrível, com muito mais violência. Quer dizer, ter a América a bombardear o Irão…? Assistir à destruição contínua de Gaza, aos ataques contínuos da Rússia à Ucrânia… As pessoas, em todo o lado, não se apercebem de que aquelas pessoas somos nós. Se a Ucrânia perder a guerra, será que vamos sair todos para a rua e lutar pelos nossos direitos como os ucranianos estão a fazer? E o que está a acontecer com as crianças em Gaza? Quer dizer, mais de 17 mil crianças mortas... Nós estamos a assistir a esta violência. E violência online corresponde a violência no mundo real.

Na altura também deu o exemplo da Polónia como um caso de sucesso, no sentido em que os cidadãos saíram do mundo virtual, das redes sociais, e uniram-se para lutar no dito mundo real pelos seus direitos coletivos, pela comunidade e pela democracia. Ainda assim, as sociedades estão cada vez mais polarizadas. O caso polaco dá-lhe esperança?

Posso falar da Polónia porque acabo de voltar de lá, onde tive uma conversa muito boa com o ministro da Justiça. Em 2023, o anterior Governo da Polónia aprovou uma lei antiaborto que acabou por mobilizar as mulheres e os jovens nas urnas, e eles votaram para destituir esse governo. Mas agora elegeram, com apenas meio voto percentual de diferença, um Presidente que defende o retorno desta legislação.

Conseguimos ver estas forças a puxar para um lado e para o outro, são as forças e as contra forças, as tensões do nosso tempo. E não ajuda que as redes sociais estejam do lado dos ditadores, do lado dos líderes iliberais. Esta não é uma tendência boa. Citando o meu amigo Stefan Lindberg, que lidera o V-DEM na Suécia: se todas estas tendências se mantiverem, a democracia nos Estados Unidos morrerá até ao verão. E olhe-se para o nosso mundo hoje.

Em todos os países, as duas linhas de fratura que são abertas à força pelas operações de desinformação são as mesmas: género e raça"

Na parte final do meu livro, coloco uma questão a todos os filipinos a que agora todos os cidadãos que vivem em democracias precisam de responder, que é uma pergunta muito simples: o que estão dispostos a sacrificar pela verdade?

É a grande questão dos nossos dias…

É mesmo. A forma que tenho para descrever o nosso mundo agora é um cruzamento entre o Matrix e o Truman Show. No Matrix, temos o ser humano enquanto motor que alimenta um mundo a fingir, um mundo imaginário, certo? É a nossa energia, são os nossos dados, as nossas ações que movem o mundo. E depois é o Truman Show, porque cada um de nós faz a sua parte e acha que é tudo sobre si próprio. O narcisismo cresceu de uma forma… Preocupo-me com a próxima geração e isto não tem nada a ver comigo nem contigo. Vês esta pulseira que trago sempre ao pulso? É da África do Sul, com a palavra ‘ubuntu’ – ‘eu sou porque nós somos’. O mundo é porque cada um de nós é. Só espero que não seja tarde demais.

E.U.A.

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