O melhor é pôr "a América em 'lockdown'": cientista Maria Manuel Mota diz que a sociedade precisa de mais conhecimento

Agência Lusa , MJC
20 abr, 09:41
Professora e cientista Maria Manuel Mota posa para a fotografia no laboratório da Fundação GIMM (Faculdade de Medicina de Lisboa)  (Lusa/ André Kosters)

A presidente executiva do Gulbenkian Institute for Molecular Medicine (GIMM) deixa um conselho aos jovens investigadores: "Sejam ambiciosos". "Acho que devem ambicionar um dia receber o prémio Nobel", desafia

A cientista Maria Manuel Mota afirma que vê como um "impacto brutal" a atual situação dos EUA, algo que nunca previu, e brinca dizendo que se calhar o melhor é "pôr a América em 'lockdown'" até ficar curada.

A investigadora vai presidir o 34.º congresso da APDC - Associação Portuguesa para o Desenvolvimento das Comunicações, que este ano decorre a 1 e 2 de julho sob o mote "Science & Business: Working Together", a ciência e o negócio a trabalharem em colaboração.

Questionada como vê a atual situação dos EUA, não só em termos geopolíticos, como também nas políticas antidiscriminatórias e posições relativas à vacinação, a investigadora afirma que "é um impacto brutal". No início deste mês, uma segunda criança que não estava vacinada contra o sarampo morreu nos EUA.

"O mundo, como o conhecemos, deixa de existir, esperemos que seja por um período de curto tempo, mas é um impacto brutal", sublinha a presidente executiva (CEO) do Gulbenkian Institute for Molecular Medicine (GIMM).

"Temos que pensar que não foi de um dia para o outro que isto foi acontecendo, mas claro que o impacto desta natureza em tão poucos meses, com a entrada de um novo presidente, num país que tem um poder enorme sobre o mundo e de influência", tem impacto. Até porque "vivi em Nova Iorque durante uns anos e nunca previ que os EUA pudessem chegar a este ponto, esperemos que dure pouco tempo, que haja uma contraproposta, uma contrarrevolta e que simplesmente não se enverede por estes caminhos", prosssegue a investigadora.

Mas "acho que isto não é só a América, estamos num mundo todos um pouco assim", lamenta Maria Manuel Mota. Se outrora era "muito natural" que num grupo de amigos, em que uns votam direita e outros esquerda, debater vários temas entre todos e até gozar com quem está no poder, o que "faz parte de um exercício [...] saudável", tal já não acontece, aponta. "Neste momento, e não é de agora, esse exercício deixou de ser saudável. Se alguém não está connosco, é nosso inimigo, isso é algo que é, obviamente, um clima pré-guerra e nós temos que escolher o que queremos ou o que não queremos", enquadra a cientista e CEO do GIMM.

A investigadora defende mais conhecimento para que as decisões sejam racionais. "Se nós tivermos uma sociedade que tem mais conhecimento, que entende melhor o mundo, as decisões podem ser mais racionais, especialmente se nós compreendermos os métodos que a ciência usa para encontrar respostas, que são métodos racionais", considera.

"Acho que podemos encontrar sempre formas de discutir de forma saudável e não de discutir de forma pouco saudável e em clima pré-guerra", insiste. Embora não tenha uma bola de cristal para resolver a questão, diz a sorrir que o melhor é "pôr a América em 'lockdown' até estar curada".

Agora, "não podemos permitir contágio", pensar que o mundo todo vai ficar assim, adverte. "Não acho, esperemos que não, e temos que lutar para que isso não seja a realidade", conclui.

Cientistas precisam de melhores salários e condições para trabalhar

A investigadora Maria Manuel Mota defende que para reforçar o investimento na ciência é preciso aproximar a ação política do discurso político, recordando que o talento vai para as paragens que dão melhores condições.

"Se fizerem aquilo que dizem, em termos de discurso político para a ciência", isso "é muito importante", afirma a presidente executiva (CEO) do Gulbenkian Institute for Molecular Medicine (GIMM), em vésperas de eleições. Até porque, acrescenta, "deve ser o raro um discurso de Estado que não mencione este aspeto e, portanto, é só preciso ter a ação aproximada daquilo que é dito".

"Os talentos vão sempre para as paragens que lhes oferecem as condições para desenvolver o seu talento, é tão simples quanto isso", afirma, quando questionada sobre se estes continuam a fugir do país.

Professora e cientista Maria Manuel Mota posa para a fotografia no laboratório da Fundação GIMM (Faculdade de Medicina de Lisboa)  (Lusa/ André Kosters)

A investigadora recorda que uma "grande parte da vida é passada a desenvolver talento", pelo que é normal que as decisões das pessoas sejam tomadas com base na oferta de melhores condições, as quais não passam apenas por um melhor salário, o qual também tem um "grande impacto". Além do salário, qualquer cientista tem que ter "condições para ter a paz, para ter o ambiente que possa seguir a sua curiosidade", algo que aponta como "mesmo muito importante".

Mas, acima de tudo, "o que os cientistas querem é ter instituições que lhes forneçam o ambiente que os apoie a poder fazer esse caminho", prossegue. Ou seja, "estas instituições têm que ser instituições fortes, com um bom financiamento, que apoiam as próprias experiências", reforça Maria Manuel Mota.

Agora, se a instituição não souber "quando é que o financiamento vem, como é que vem e em quantidade, é quase impossível criar essas condições", adverte. "Acho que, no fundo, é o que nós vivemos em Portugal, são instituições que não são fortes o suficiente para simplesmente criarem as condições para captar e manter essas pessoas porque até podemos atrair, mas depois de atrair é preciso mantê-las aqui e esqueçam, o sol, o clima e a gastronomia não são suficientes de todo", remata a cientista.

A CEO do GIMM defende ainda que a sociedade tem que ter "expetativas distintas" para que haja mais mulheres nas áreas STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática). "Ultrapassámos os 60% de mulheres nos nossos postos de trabalho na nossa instituição, incluindo como cientistas", mas se for para o grupo de pessoas que lideram uma equipa científica "provavelmente vai abaixo dos 30%", diz.

Portanto, "há uma grande disparidade e essa é a diferença que está aqui, para outras áreas, mais da engenharia, que já começa na base, também já não há muitas mulheres".

E como é que isto muda? "Eu não tenho, obviamente, uma bola de cristal, mas tenho que dizer que quando era mais nova, quando comecei esta área, achei que ia ser uma questão de uma década, duas décadas" e todos diziam que estava a fazer o seu caminho. "Sim, está a fazer o seu caminho, a passo de caracol" e "as pessoas têm que ter esta noção", sublinha.

Desta forma, "nunca vamos chegar, e eu não digo uma igualdade porque não acho que temos que ser iguais, acho que o bonito do mundo" é ser diferente e diverso, "mas é um lugar onde ninguém, pelas suas características, se sente que deve ser mais ou menos".

Para a investigadora, a sociedade abre oportunidades para todos, se uma pessoa não pode ser uma coisa, pode ser outra. "A sociedade abre esse caminho e isto é verdade para qualquer grupo da sociedade, incluindo as minorias", mas a questão é que "nós lidamos com o problema entre homens e mulheres como se as mulheres fossem uma minoria", o que não corresponde à verdade pois são cerca de 50% da população.

"Este problema só ficará resolvido quando a sociedade o resolver" e enquanto houver uma sociedade em que o papel "é tão diferente" no cuidado de descendentes e ascendentes pois "se pusermos logo as mulheres com o papel principal" de 90% desses cuidadores, "obviamente não vão para as outras áreas", enfatiza.

Até porque os filhos e cuidar dos ascendentes surgem em "duas alturas da vida que são muito importantes para ascender na carreira", a primeira quando se pode fazer uma "progressão mais exponencial" e outra onde "têm mais lugares" direção. "Ora, se nós simplesmente nestas duas fases estamos a tirar as mulheres do mercado de trabalho ou a impedir que elas se dediquem e tenham vontade de o fazer, obviamente, aí temos um problema", considera.

No fundo, trata-se de um "problema societal", "temos que dar oportunidade, e não é uma questão de escolha, gostaria de deixar isto bastante claro", insiste. "Não é uma questão de escolha, se for esperado de nós um determinado papel", a sociedade "é que tem que ter expectativas distintas", defende Maria Manuel Mota. Isso inclui "todos nós e aqueles que nos governam", sintetiza.

Instada a dar um conselho aos jovens que almejam chegar aonde a investigadora chegou, esta é perentória: "Sejam muito ambiciosos". "Acho que devem ambicionar um dia receber o prémio Nobel", desafia.

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