"Fico a sentir-me mal por tamanha aflição". Livro de Maria Francisca Gama está a fazer chorar nas redes sociais

13 jul 2024, 18:00
Maria Francisca Gama

ENTREVISTA || Está a fazer muitos chorar nas redes sociais e tudo se deve à já muito falada obra "A Cicatriz", lançada em fevereiro. Maria Francisca Gama, de 26 anos, não se estreou com este livro, mas foi ele que lhe trouxe o reconhecimento. Já vai na quarta edição, esgotou várias vezes e tem tido lugar permanente nos rankings dos mais vendidos. À CNN Portugal, a jovem formada em Direito conta como está a viver o sonho da escrita e antecipa o próximo livro

Estamos no Jardim das Amoreiras. Que lugar é este?

Em primeiro lugar, é relativamente perto da minha casa e eu sou uma pessoa que anda maioritariamente a pé por Lisboa. E costumo procurar, tanto procurei que encontrei, sítios onde possa ler descansada, para sair um pouco de casa, porque o meu trabalho é feito maioritariamente em casa. A maioria das pessoas aqui já me conhece, o rosto pelo menos é-lhes familiar e ninguém me importuna. Estou a escrever, estou a ler e passo aqui sempre um bocadinho, gosto muito de estar aqui.

Escrever é um trabalho solitário?

É, mas acho que tem de ser, ou seja, não é uma tristeza o trabalho ser solitário, é uma constatação de uma realidade que dificilmente pode ser mutável, porque a escrita tem de vir de um lugar de introspeção e nós somos poucas vezes introspetivos com os outros, mas sempre connosco. É uma profissão solitária, que depois é quebrada muitas das vezes com os encontros com os leitores, onde é tudo menos solitário e é um bom balanço.

O livro "A Cicatriz" está a ter muito sucesso. Como surgiu a ideia para o livro? Dizes que és pessimista e que pensas sempre no pior cenário possível. Foi assim?

Eu estive no Rio de Janeiro uma vez e adorei e adoro e voltarei ao Rio de Janeiro tantas vezes quanto as minhas finanças me permitirem, mas a verdade é que sempre que se viaja para o Brasil há esse aviso constante de que é preciso ter cuidado e que as coisas não acontecem só aos outros. E eu, apesar de gostar muito do Brasil, consigo reconhecer todas as coisas menos positivas do país relacionadas principalmente com a questão da segurança. Quando lá estive a última vez, no ano passado, tive uma viagem maravilhosa que gostei muito, que vou recordar para sempre, mas havia sempre qualquer coisa aqui dentro, na minha cabeça, que me dizia que era preciso ter cuidado e que há muitas histórias infelizes no Brasil e no mundo - a questão aqui não é o Brasil - de pessoas que passaram por coisas horríveis, porque o ser humano não é inteiramente bom e há pessoas que parecem não ser nem um bocadinho boas. Depois de regressar dessa viagem, quando contava às pessoas o quão fantástica tinha sido, pensava que realmente podia não ter corrido bem. Correu bem e que bom que é, mas a tristeza é um motor, pelo menos para mim, mais profícuo à criação literária do que a alegria, por isso é que os meus livros normalmente fazem as pessoas chorar.

Maria Francisca Gama na apresentação do livro "A Cicatriz", no restaurante Cobaia, em Lisboa (Cortesia de Maria Francisca Gama)

Descreves o Rio de Janeiro e dizes exatamente o que sentiste. Sentiste receio de ser mal interpretada ou de o livro poder ser visto como um ataque aos brasileiros?

A criação literária não pode reger-se pelo medo de quem a cria. Os livros são só livros, neste caso então, que é uma história ficcional, é só uma história. Acho que de forma nenhuma fui xenófoba ou racista, aliás, pelo menos na minha interpretação, “A Cicatriz” é um livro que homenageia muito o Rio de Janeiro e as pessoas do Rio de Janeiro e a forma bonita e leve como, daquilo que eu conheço, vivem. E enquanto escritora não sou responsável por aquilo que as pessoas interpretam, nem essa pode ser uma preocupação minha, porque vai haver sempre quem interprete mal ou de uma forma diferente daquela que eu queria quando escrevi e isso faz parte dos ossos do ofício da profissão.

Como se desenrolou o processo criativo a partir daí? Há uma nota em que admites que tiveste de te afastar.

Comecei a escrevê-lo numa fase da minha vida em que estava a viver por grandes períodos de tempo em Londres - em junho, julho, agosto, setembro -, em que só chovia. Estava fechada em casa a escrever e, tendo em conta o tema do livro e aquilo que acontece aos personagens principais, acho que é comum a muitos escritores existir um período na criação literária em que há uma confusão entre eles próprios e as personagens. Isto é muitas vezes o responsável por os leitores dizerem que nem parece uma história ficcional, o que é um elogio, porque se estamos a criar alguma coisa que as pessoas acham tão verosímil que lhes parece real, é sinal de que cumprimos o nosso trabalho e eu confundi-me com a personagem muitas vezes. Isso obrigou-me por vezes a afastar-me do livro e quando o terminei de escrever estive cerca de um mês ou dois meses sem o enviar para a editora porque não tinha a certeza se queria que fosse publicado. Sabia que era um livro muito duro e muito difícil e ainda que não me preocupe especialmente, para ser honesta, aquilo que os outros pensam sobre o meu trabalho, não penso nos leitores quando estou a escrever, penso naquilo que acho que devo escrever. Depois quando acabei percebi que ia ser um livro que podia fazer as pessoas sofrer e às vezes não sei se faz sentido também pôr as pessoas nesse lugar, mas decidi em conjunto com a minha editora, principalmente tendo em conta aquela que foi a opinião dela, que era um livro importante, que era um livro bonito e com qualidade e por isso foi publicado.

O livro descreve uma violação. Foi a maneira que encontraste para dar voz a pessoas que passaram por isso?

Parece-me que cada vez mais protegemos os outros do choque, os que observam a arte, os espectadores que veem televisão. Tanto que hoje em dia nas plataformas de streaming, antes de se começar a ver qualquer coisa, aparecem todos os trigger warnings, todas as coisas que podem acontecer e ferir a suscetibilidade. E isso, na minha opinião, vai-nos impreparando para a vida e vai criando uma sensação de que as coisas são muito mais leves do que o que são. Eu quis escrever “A Cicatriz” na esperança de que seja lida por homens, coisa que não acontece por aí além, mas vai acontecendo, porque o meu público é maioritariamente composto por mulheres. Se os homens souberem pelo que uma mulher passa e a forma como tantas vezes nos sentimos objetificadas, assediadas ou violentadas, como é o caso da personagem, acho que é essa mudança, é esse mostrar sem medo de ferir as suscetibilidades, que pode efetivamente fazer com que as coisas melhorem. Quando somos crianças, se empurrarmos um colega nosso e ele cair e sangrar do joelho mas não virmos o sangue, não sabemos que o magoámos assim tanto e, portanto, provavelmente vamos empurrá-lo novamente. Isso tem acontecido muito na arte, andamos a proteger muitas pessoas e isso faz com que às vezes também não tenhamos noção da dimensão da dor.

Dizes que a arte deve causar desconforto e as tuas palavras causam exatamente isso. Como é que alcanças isso?

Acho que tem a ver muito com as leituras que faço, com o preferir também livros mais pesados, diria assim, porque quero escrever aquilo que acho que é importante e há um ano e tal achei que era importante escrever “A Cicatriz”. Desde fevereiro, desde que o livro saiu, continuo com a convicção de que foi importante tê-lo escrito, para mim pelo menos, para um ou outro leitor talvez, e as palavras não foram escolhidas propositadamente para chocar ou para magoar, foram as palavras que achei que faziam sentido na situação descrita.

Maria Francisca Gama no Jardim Botânico do Rio de Janeiro em abril de 2023 (Cortesia de Maria Francisca Gama)

Optas por não dar nomes às personagens principais. É uma outra forma que encontraste de fazer o leitor relacionar-se com a protagonista?

Exatamente. Quando dizemos que aconteceu alguma coisa à Maria ou ao João, essa coisa aconteceu-lhes a eles, mas quando dizemos que aconteceu a ele ou a ela podemos substituir este pronome pessoal pelo nome da nossa mãe, da nossa irmã, da nossa avó, da nossa melhor amiga e foi por causa disso que decidi não apelidar as personagens.

Como é que o livro foi recebido pela comunidade brasileira?

A maioria das pessoas, pelo menos aquelas que me disseram, gostaram muito, mas outras sentiram que o livro poderia afastar a comunidade portuguesa de visitar o Rio de Janeiro, coisa que não era e não é o meu objetivo com o livro. Até porque, volto a frisar, é só uma história.

"A Cicatriz" já vai na quarta edição, esgotou várias vezes na Feira do Livro de Lisboa e está nos tops de várias livrarias. Como é que estás a lidar com tudo isto?

Com alegria, mas acima de tudo com muita descontração e tranquilidade, porque a literatura, a pintura, a música é moda. Fora alguns bons escritores que são lidos anos e anos sem fim e que as pessoas vão continuar a procurá-los, grupo no qual não me enquadro ainda, sei que é uma questão de tempo até passar a ser outro livro tão falado quanto este, mas fico muito lisonjeada e muito contente por tantas pessoas me estarem a ler. Sempre quis escrever, sempre quis ser escritora e é muito bom sentir que cada vez mais isso parece possível, tanto aos meus olhos como aos olhos dos outros.

Há alguma reação ao livro que tenha sido mais marcante?

Tenho recebido com mais frequência do que aquela que gostaria mensagens de mulheres que passaram por coisas semelhantes e que de alguma maneira se encontraram ou encontraram uma parte daquilo que sentiram no livro e agradeceram-me por isso. Fico sempre muito confrangida, preocupada e nervosa, porque não tenho ferramentas para responder a esse género de mensagens. Não sou psicóloga nem psiquiatra e não fico feliz de as receber - fico honrada, talvez, por tantas pessoas confiarem em mim e partilharem uma coisa tão íntima. Deixa-me triste que a questão que é abordada no livro seja um problema que se passa no mundo e não apenas no Brasil.

@evacmak Lê comigo o livro A Cicatriz da @Maria Francisca Gama | Acho que devia ser leitura obrigatória para todos | Obrigada @PenguinLivros #booktokportugal #booktok #booktokpt #livros ♬ som original - Eva 📖✨

"A Cicatriz" não é o teu primeiro livro. Entraste no mercado muito nova. Como é que foi todo o processo?

Publiquei o meu primeiro livro aos 15 anos, depois outro aos 17, numa editora mais pequena. Na altura já queria ser escritora mas não acreditava que fosse possível. Passados poucos anos, digamos, publiquei o meu primeiro livro. Não é que tenha uma carreira de dez anos, mas a verdade é que há dez anos que dou palestras em escolas e em bibliotecas e que apresento os livros que escrevo. Foi um golpe de sorte e de generosidade de um escritor português, o João Tordo, que leu o livro que lhe enviei, gostou e enviou para a Penguin - o mesmo livro que eu tinha enviado meses antes e que ninguém tinha aberto e gostaram e quiseram publicar-me. Obviamente, foi um ato de generosidade e foi também uma demonstração para mim, que tinha 24 anos quando publiquei “A Profeta”, de que havia uma luz ao fundo do túnel. Tenho a vida toda pela frente e muitos livros para escrever, espero que cada vez melhores e estou claramente a abrir - eu e outras escritoras - a porta a escritoras mais jovens que agora olham para a frente e já veem nomes que eu não via quando tinha a idade delas, porque as escritoras que admirava quando tinha 14, 15, 16 anos, e já queria ser escritora, tinham já na altura 50, 60 anos. O mercado editorial português está a mudar e está a mudar para melhor.

Fazes parte do Clube das Mulheres Escritoras. É uma forma que encontraram de se apoiarem e fazerem o mundo editorial expandir-se? 

Acima de tudo, é um grupo de ativistas, de mulheres que acreditam que a literatura não tem género e que não é por sermos mulheres que devemos ser lidas exclusivamente por mulheres. E é um grupo que tem como principal objetivo mostrar que se escreve em português, que mulheres escrevem em português e que somos tão válidas quanto os homens portugueses que também escrevem muitíssimo bem e que por isso tem de existir mais igualdade, mais paridade e mais respeito pelo nosso trabalho.

Há algum livro que tenhas lido e que te tenha feito perceber que era isso que querias fazer da tua vida?

“Uma Pequena Vida” de Hanya Yanagihara e “O Ano da Morte Ricardo Reis” de José Saramago. Foram os dois livros que li até hoje que mais me despertaram inveja, porque gostava de ter sido eu a escrevê-los [risos].

Recentemente entraste na lista dos 30 da Forbes. O que é que isso significa para ti?

Há muitas pessoas talentosas em Portugal e ser destacada como uma das 30, com menos de 30 anos, é uma honra e é uma responsabilidade e vou-me esforçar para que o meu nome seja indicado nos 40 e nos 50.

Há muitas pessoas que surgem a chorar nas redes sociais depois de ler "A Cicatriz". Como olhas agora para o fenómeno do BookTok e do Bookstagram?

Acho que o importante é as pessoas lerem e há algum snobismo com isso por parte dos escritores mais velhos, ainda que disfarçadamente muitos deles agora também estejam a aderir ao TikTok. A verdade é que não interessa como é que os livros chegam à casa das pessoas, interessa que cheguem, até porque vivemos num país em que durante muitos anos não chegavam. As redes sociais têm sido muito importantes para incentivar os jovens a regressarem ou a começarem na leitura. Com “A Cicatriz”, sou diariamente identificada em entre cinco a 15 publicações nos últimos quatro meses, o que é completamente surreal e tenho de agradecer muito a todos os leitores que partilham a sua experiência de leitura. Muitas das vezes afligem-me com os vídeos a chorarem, fico a sentir-me verdadeiramente mal por tamanha aflição e dor que provoca nos outros, mas realmente se não fossem eles aquilo que está a acontecer, os livros que vendi e que continuo a vender, não seria possível.

O que se pode esperar para o futuro? Um livro mais feliz?

Felicidade não é o meu forte. Apesar de ser uma pessoa feliz, não escrevo desse lugar. Agora estou a escrever o meu próximo livro, que sairá eventualmente no próximo ano, daqui a dois, no máximo. É uma história completamente diferente daquilo que escrevi até agora e é inspirada num caso real que aconteceu em Portugal em 2016. Não posso dizer mais nada. Não sei se é um livro triste, acho que é um livro macabro pelo menos e isso também é um adjetivo que acho interessante na arte. 

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