María Corina Machado tem "um entusiasmo e resiliência quase sobrenaturais". E agora é Nobel da Paz
Desapareceu da vista pública há meses, perseguida pelo regime que tenta há décadas derrubar. Vive em fuga, mudando de esconderijo como quem muda de roupa, com os olhos sempre atentos a um país que já não dorme. “María Corina foi violentamente intercetada quando saía da manifestação em Chacao. As forças do regime dispararam contra as motos que a transportavam”, denunciou o Comando Venezuela a 9 de janeiro, quando a oposição decidiu, mais uma vez, sair à rua. Desde então, o silêncio.
Esta sexta-feira, esse silêncio transformou-se em louvor ao que ela fez: em Oslo, o Comité Nobel decidiu premiar “a coragem civil e a luta pela democracia na Venezuela” da mulher que desafia há mais de 20 anos um dos regimes mais repressivos da América Latina.
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— The Nobel Prize (@NobelPrize) October 10, 2025
The Norwegian Nobel Committee has decided to award the 2025 #NobelPeacePrize to Maria Corina Machado for her tireless work promoting democratic rights for the people of Venezuela and for her struggle to achieve a just and peaceful transition from dictatorship to… pic.twitter.com/Zgth8KNJk9
María Corina Machado, 58 anos, é engenheira formada em Yale, mãe de três filhos, liberal convicta e inimiga declarada do Chavismo. Ela que, há mais de uma década, ousou olhar Hugo Chávez nos olhos dentro da Assembleia Nacional e dizer-lhe o que nenhum outro deputado ousara.
"Presidente, estamos há oito horas a ouvi-lo falar de um país muito distante daquele que todas as mulheres e mães venezuelanas estão a sentir. Chegámos ao cúmulo de ouvir que há aumento na produção do leite, quando o senhor sabe que, atualmente, há mulheres, mães, que vão às mercearias, aos supermercados e lutam fisicamente por um litro de leite porque não têm o que levar para casa. Este é o momento de dar uma resposta ao país, às mais de 180 mil mães e mulheres que, nestes 13 anos, perderam os filhos, os maridos, os pais e às quais não foi feita justiça. É isto que queríamos ouvir, a Venezuela decente, e aquela que não quer de todo avançar para o comunismo, a quer respeito à propriedade. Queremos uma Venezuela de solidariedade, uma Venezuela de justiça, uma Venezuela de superação. Como pode dizer que respeita o setor privado na Venezuela quando se dedicou a expropriar - que é roubar -, roubar a propriedade de empresários, comerciantes, até pequenos negócios que nem sequer foram indemnizados pela sua propriedade. Diga a verdade à Venezuela. Aqui há uma Venezuela decente, que quer uma transformação profunda. É hora de enfrentar com seriedade e responsabilidade este desafio histórico que temos pela frente. Esse tempo acabou, é hora de uma nova Venezuela."
Em 2023, María Corina Machado venceu as eleições primárias da oposição, com 93% dos votos, mas foi impedida de concorrer às presidenciais de 2024. Mesmo desqualificada, empurrou outro candidato, Edmundo González Urrutia, para uma vitória eleitoral que nunca foi reconhecida.
“Ela foi uma das candidatas nas eleições presidenciais da Venezuela no ano passado - na verdade foi uma quase-candidata porque foi impedida de concorrer”, recorda Carmen Fonseca, professora e investigadora em Política Externa na Universidade Nova de Lisboa. “Acabou por lançar Edmundo González, percorreram o país juntos e a oposição venceu, mas a vitória foi-lhes roubada. Os tribunais nunca entregaram as atas e os resultados foram manipulados pelo governo de Nicolás Maduro.”
Foi essa “vitória roubada” que precipitou a nova fase da vida de María Corina: a da invisibilidade. Desde então, nem os aliados sabem onde está, mantendo contacto apenas por chamada telefónica. “Na altura das eleições já não se sabia onde estava. Gravava mensagens de locais desconhecidos e depois desaparecia. É uma incógnita perceber se irá receber o prémio pessoalmente.”
Mas é essa ausência física mas também ausência palpável que, na opinião de Carmen Fonseca, reforça o simbolismo do Nobel. María Corina Machado é, neste momento, mais do que uma líder política: é um "mito de resistência".
O eurodeputado Sebastião Bugalho conheceu-a em 2024, quando viajou para a Venezuela. Mais tarde, foi um dos principais promotores da candidatura de María Corina Machado a Prémio Sakharov. O Parlamento Europeu acabaria mesmo por atribuir o prémio à líder da oposição venezuelana em consenso formado entre Roberta Metsola e os líderes dos principais partidos políticos.
"O seu entusiasmo e resiliência são quase sobrenaturais. Quando escrevemos, negociámos e aprovámos a resolução do Parlamento Europeu que reconheceu a vitória eleitoral do seu movimento democrático, foi a primeira a telefonar, a dizer ‘obrigado’, a dizer ‘não desistam’, ‘não se esqueçam de nós'", recorda Sebastião Bugalho, em declarações à CNN Portugal.
“O fenómeno eleitoral mais esmagador desde Chávez”
A imagem é conhecida: veste-se sobretudo de branco, uma cruz sobre o peito, o lema “Hasta el final” nas costas. Atravessa o país em caravanas improvisadas, protegida por motociclistas que a anunciam como uma chefe de Estado em campanha. E, nas ruas, gritam-lhe o nome como quem grita uma promessa.
“Ela é uma mulher extremamente corajosa”, considera Raquel Patrício, professora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Politicas (ISCSP) da Universidade de Lisboa. “Uma ativista contra o regime venezuelano de extremo gabarito. O prémio está muito bem atribuído porque chama a atenção para as atrocidades que o regime de Maduro vem cometendo - não só contra a oposição, mas contra os próprios cidadãos.”
Foi essa coragem que a levou a fundar, ainda em 2002, a organização Súmate, um movimento de fiscalização eleitoral que irritou profundamente o Chavismo. Três anos depois foi recebida na Casa Branca por George W. Bush, um gesto que a marcou como “inimiga do regime”. Desde então foi tudo uma escalada: agressões, difamações, censura, mandados de prisão, até à inabilitação de 15 anos que a impediu de concorrer à presidência.
Mas nem a proibição nem o medo nem as armas conseguiram travar o que o jornal El País chamou “o fenómeno eleitoral mais esmagador na Venezuela desde Chávez em 1998”.
Numa única palavra: “lixo”
Em 2023, María Corina Machado varreu a oposição tradicional nas eleições primárias. “Não é o fim, é o começo do fim”, afirmou na altura, emocionada, ao saber que tinha conquistado basicamente nove em cada dez votos.
O seu movimento "Vamos Venezuela" parecia imparável. Nas ruas, as multidões esperavam-na com flores, bandeiras e bilhetes rabiscados com súplicas. Ao El Colombiano, confessou que houve um desses bilhetes, vindo das mãos de uma menor, que a marcou especialmente: dizia “María Corina, quero abraçar o meu pai de novo.”
A sua promessa era simples e poderosa. Queria trazer de volta ao país os 7,7 milhões de venezuelanos que "fugiram durante os anos de convulsão económica e política". “Este regime já está derrotado. Os nossos filhos retornarão à Venezuela”, prometia. Mas o Supremo Tribunal venezuelano tratou de travar a ascensão meteórica da candidata. Inabilitou-a por “atos contra a moral pública e a soberania”, acusando-a de ter apoiado sanções internacionais e colaborado com o autoproclamado presidente Juan Guaidó, além de acumular o mandato de deputada com o de "representante alternativa da delegação da República do Panamá na Organização dos Estados Americanos".
Na altura, María Corina Machado respondeu com uma única palavra: "lixo".
A partir daí, o regime fechou o cerco. Edmundo González Urrutia foi lançado como candidato substituto, venceu as eleições, mas foi forçado ao exílio em Espanha. María Corina Machado, por sua vez, desapareceu.
“A atribuição do Nobel é muito relevante porque reforça a ideia de que lutar pela democracia é também lutar pela paz. E traz de volta o olhar internacional para a Venezuela, onde há uma crise humanitária que o mundo teima em esquecer", diz Carmen Fonseca.
"Não te preocupes, meu amor"
Filha de um dos empresários mais poderosos do país, María Corina cresceu no coração da elite de Caracas. Estudou Engenharia Industrial, formou-se em Yale e podia ter seguido uma vida tranquila - mas escolheu o combate. Desde cedo foi apelidada “Dama de Ferro”, tanto pela origem privilegiada como pela determinação que lembra a antiga primeira-ministra britânica Margaret Thatcher.
Enquanto o mundo aguarda para ver se aparecerá em Oslo ou se o prémio será recebido em seu nome, o que permanece é o eco da sua voz e o símbolo que ela se tornou para milhões de venezuelanos.
“Não te preocupes, meu amor. É agora”, escreveu um dia a um dos filhos, que lhe deixou um desenho com a frase “O sol brilhará amanhã”. Para Sebastião Bugalho, talvez esse “agora” tenha finalmente chegado.
"Esta é uma vitória de todos os democratas venezuelanos, dos que resistem e dos que foram forçados a abandonar o seu país, dos presos políticos aos obrigados a mudar de morada todas as semanas. É deles que não nos esquecemos. São eles que María Corina representa. São eles, hoje, que vencem o Nobel da Paz."