ENTREVISTA I Margarida Saavedra, ex-vereadora da Câmara Municipal de Lisboa e deputada do PSD, foi uma das dezenas de políticos investigados pelo Ministério Público no caso Tutti Frutti. Esteve sob suspeita por ter validado pagamentos a uma assessora sua, Luzia Martins, por serviços na CML que os procuradores garantem não terem sido efetuados. Em fevereiro, viu o caso contra si ser arquivado, mas com um recado do MP que a censurou por comportamentos "negligentes" e "eticamente reprováveis". Em entrevista à CNN Portugal conta que se sentiu como uma "leprosa" e defende que quem tenha cargos públicos deve poder continuar a exercê-los mesmo tendo sido acusado formalmente de crimes
Foi alvo de um pedido do Ministério Público para que lhe retirassem a imunidade parlamentar no âmbito do caso Tutti Frutti e para a constituir arguida. Como foi esse momento?
Fui confrontada com um pedido de levantamento de imunidade parlamentar, com o qual, obviamente, concordámos. Foi levantada e, entre esse espaço e a altura em que fui constituída arguida, não fazia ideia do que é que me estavam a acusar. Fiquei surpreendida porque diziam fraude, logro. Apareceu a minha cara na televisão. Não sabia o que se estava a passar, mas já estava na praça pública, com todos os adjetivos que possa imaginar, com todas as consequências para a minha família, para os meus filhos, para os meus netos, para os meus amigos.
Que consequências foram essas?
Lembro-me que miúdos na escola diziam aos meus netos que a avó era uma bandida. Ouvi quem se dirigisse aos meus filhos para dizer ‘a tua mãe, não parece, mas, pelos vistos, cometeu uma fraude horrível’. ‘Os políticos são todos assim’. ‘Isto quem está na política é porque é do pior possível’. Tudo assim. E, ao mesmo tempo, não fazia a mais pequena ideia do que é que me estavam a acusar. Só tomei conhecimento disso quando passei à condição de arguida.
Tendo perdido a imunidade parlamentar, sentiu-se prejudicada no exercício das suas funções como deputada?
Não, não me senti, de todo. Foram impecáveis e simplesmente apoiaram, e não fui nem impedida de exercer a minha liberdade parlamentar, nem de usar da palavra quando era necessário.
Sentiu-se desamparada pela liderança da sua bancada?
Não. E depois de ter sido arquivado o processo, continuei a minha vida normalmente. Não posso dizer o mesmo dos outros cujo processo não foi arquivado, porque esses foram impedidos, nomeadamente, de concorrer a cargos públicos e políticos.
Quando se deu conta dos factos que o Ministério Público estava a investigar contra si?
Quando fui constituída arguida a minha advogada teve acesso ao processo. E apercebemo-nos de que entrei nesse processo porque validei o trabalho remoto de uma mulher a recibos verdes que tinha acabado de ser mãe. Foi isto.
Qual foi a sua reação?
Nem queria acreditar. A princípio pensei que era um erro qualquer, mas não era. Fui ouvida, expliquei as minhas razões, a minha surpresa, e consideraram que o processo não poderia andar e foi arquivado. Mas foram nove meses em que, do ponto de vista social, se tem um anátema. Tem-se uma espécie de sinal na testa como os leprosos tinham antigamente.
Esse anátema manifesta-se como?
As pessoas escolhiam as palavras quando falavam comigo, têm cuidado ao aflorar certos assuntos. Não estão tão à vontade nas conversas como estariam normalmente. Na televisão era recorrentemente falado e a pessoa tinha ali a sua cara, não como arguida, mas praticamente como condenada. É o problema dessas situações e de quando falha o segredo de justiça.
Quem segue uma carreira política tem de ter mais defesas?
Quando alguém segue uma carreira política não perde os seus direitos. Tem direitos como qualquer cidadão normal. E parece-me que os direitos que estão consignados na Constituição, num estado democrático, não podem ser alienados em circunstância alguma. É normal que haja denúncias, é normal que o Ministério Público investigue. Agora, o segredo de justiça serve essencialmente para que a pessoa seja salvaguardada da justiça popular. Um político tem deveres de seriedade e de bom nome, mas não pode ser cortado nos seus direitos. E o bom nome é uma coisa que é muito difícil de se ter, mas perde-se de um momento para o outro. Ainda hoje encontro pessoas que me perguntam como está o processo, o que acho inqualificável.
Como é que observou as averiguações preventivas abertas contra Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos e a forma como foram divulgadas?
Que saiba, nem Pedro Nuno Santos nem Luís Montenegro foram constituídos arguidos. Portanto, é um juízo ad hoc. Especialmente, porque as notícias não saem como notícias, saem como condenações. Passamos a vida a criticar políticos que só têm carreira na política e quando vão para os cargos não sabem fazer outra coisa na vida. E quando apanhamos políticos que fizeram outra coisa na vida, estraçalhamo-los. Isso é fantástico. O que acontece é que tenho ouvido cada vez mais companheiros que dizem que na política nunca se hão de meter por causa disso. Neste momento, como as coisas estão, sem segredo de justiça, qualquer pessoa escreve uma carta anónima a dizer as piores coisas e acaba-se com a cara nos jornais. Não podemos estar à mercê de denúncias anónimas, deste estraçalhamento na praça pública.
Há quem lide com este processo há vários anos.
Tive uma sorte enorme, mas isso lembra-me imenso uma condenação que havia na China antiga que era a pior condenação que podia haver, a tortura dos mil dias. Uma pessoa era condenada à morte, mas só podia morrer passado mil dias. Durante esse intervalo de tempo sofria uma tortura nova. Lembro-me de Miguel Macedo que esteve sete anos num processo (Vistos Gold) que lhe deu cabo da vida. E digo-lhe mais. Em 40 anos que tenho de profissão, isto, curiosamente, aconteceu uns meses após ter sido eleita presidente da Mesa da Concelhia do PSD em Lisboa e dois meses depois de ter sido eleita deputada. Não digo que foi de propósito, mas as coincidências prestam-se a muitas interpretações, que não faço, porque quero acreditar que estamos num estado de direito.
Mas que tipo de interpretações já lhe passaram pela cabeça?
Porquê eu? Porque aconteceu numa altura em que passei a ter mais visibilidade. Se calhar, se tivesse mantido a minha reforma mais tranquilamente, não tinha sido incomodada. Tenho de acreditar que a justiça é séria, mas temos de considerar todas essas possibilidades.
E como foi ver as suspeitas arquivadas?
Pensei que tinha sido feita justiça, porque, francamente, não conseguia perceber como é que este processo tinha dado uma acusação. Fiquei muito aliviada, porque é uma cruz que a pessoa leva às costas. Mas fiquei profundamente dececionada, porque nenhum dos órgãos de comunicação, que foi tão rápido a pôr a minha cara na televisão, foi capaz de noticiar de modo visível que o processo tinha sido arquivado. Quanto ao despacho de arquivamento, devo dizer que a minha advogada mo leu, mas recebi a carta e não a abri. Ainda está lá fechada.
No despacho de arquivamento o Ministério Público aponta o seu comportamento como "eticamente censurável e reprovável".
Isso, sobretudo, é uma desculpa do Ministério Público para justificar todo este alarido, toda esta coisa, todo este calvário que levou nove meses. Também não se podia dizer ‘ponto’. Nunca diriam enganámo-nos. É basicamente para salvar a cara, embora, tanto quanto tenha percebido junto da minha advogada, o Ministério Público não deveria tecer esse tipo de considerações.
Continua a pairar esta dúvida ética no ar?
Tenho a consciência tranquila e acho que há sempre dúvidas. As pessoas podem duvidar do que quiserem. Tenho a consciência de que procedi sempre bem. Há uma coisa que todos devemos ter: é de noite, quando nos olhamos ao espelho, olharmos de frente para a cara que temos à frente. Há pessoas que poderão criticar-nos por tudo. E, portanto, temos de nos habituar a viver com isso. Isso é um dote que qualquer pessoa que se mete na política já sabe que leva.
Como justificou a validação das notas de honorários de Luzia Martins?
Limitei-me a validar o pagamento dos seus honorários. Conhecimento direto do trabalho prestado tinha porque, repare, aquilo funcionava na Assembleia Municipal e tudo se manteve na mesma e não tinha razões nenhumas para acreditar que havia uma anomalia.
Um dos pontos principais da acusação do processo Tutti Frutti incide sobre um esquema de corrupção, que envolve contratos públicos e figuras do PS e do PSD. Isso fê-la olhar de forma diferente para o seu partido?
O que me fez foi olhar de forma mais atenta sobre o problema da morosidade da justiça, porque os partidos são impotentes para resolver este tipo de questões. E os partidos também são apanhados por isto. E têm de se defender disso. E é preciso evitar que as pessoas sejam julgadas pela população na praça pública, porque o facto de uma pessoa pertencer a um partido, logo a priori, tem prós e contras. Tem amigos e inimigos. E os inimigos são propensos a acreditar em tudo o que seja possível e isso é uma maneira miserável de se fazer política.
Mas a natureza do caso não a levou a ficar mais alerta sobre a possibilidade de quem use as instituições para se beneficiar a si próprio?
Completamente alerta. Há coisas que fazemos na melhor das boas fés e, de facto, poderíamos ou não as fazer. Às vezes também fazemos isso por uma questão de humanidade e de solidariedade, daquelas coisas que não têm especificamente a ver com a justiça e com os protocolos. Mas somos humanos e às vezes pomos isso à frente daquilo que deveríamos efetivamente fazer. Mas está feito, não vale a pena chorar sob água derramada.
Crê que as instituições estão vulneráveis a quem as queira usar para benefício próprio?
As instituições não podem estar vulneráveis para quem as use para benefício próprio. Evidentemente, há leis e as leis têm de ser cumpridas. Agora, se isto tudo aconteceu, porque é que há casos que se arrastam há oito anos? Imagine que esses casos acabam todos na absolvição, o que vai acontecer a essas pessoas? Conheço e sou amiga de muitas pessoas que também estão envolvidas neste caso e percebo a sua angústia, porque a sua vida está completamente parada e congelada até que sejam julgados.
Na sequência da acusação, vários membros do PSD demitiram-se dos seus cargos políticos, como Fernando Braamcamp, da Junta do Areeiro. Muitos outros não o fizeram, incluindo Luís Newton, que foi apontado como um dos cabecilhas do esquema, e que mantém ainda várias posições, incluindo a presidência da Junta da Estrela. Porque é que acha que existe esta diferença de posturas?
A menos que o demitam, as regras do Estado de Direito presumem a inocência da pessoa até ao julgamento. E se a pessoa em consciência considera que está inocente, porque é que se vai demitir? Quem tem de proclamar a culpa ou a não culpa da pessoa é o tribunal.
Mesmo quando perante uma acusação formal? Isso não afeta a própria serenidade do posto?
A pessoa mesmo estando acusada pode refutar a acusação. Só no fim do julgamento é que a pessoa, de facto, tem uma condenação. Até lá, a presunção de inocência está na lei. E devemos segui-la. É claro que isto depende muito, para já, da fragilidade emocional de cada um. Devo dizer que Fernando Braamcamp é uma pessoa que está muito doente. E, portanto, as pessoas estão mais vulneráveis quando estão doentes. Depois há outras que, por uma questão de consciência, por uma questão de considerarem que nada fizeram, não veem motivo para desistir do cargo. Se me pergunta se colocaria o meu lugar à disposição, tinha dúvidas: a primeira é que não ponho, porque estou inocente. A segunda era, não estou para me chatear mais, quero que vão todos passear, quero voltar à minha vida, vou-me demitir e acabou-se.
Um arguido deve candidatar-se?
Um arguido é igual a uma pessoa comum até ser julgado e condenado.
Mas não crê que possa haver uma colisão com a confiança que os cidadãos depositam nesses cargos políticos?
A quebra de confiança existe numa notícia dos jornais ou numa acusação? Qualquer interpretação que possa ser feita nesse sentido é perigosa. A menos que a pessoa seja apanhada em flagrante delito.