A Rússia funciona como um espelho implacável das fraquezas do Ocidente. Sem uma resposta firme da União Europeia, a ameaça não será apenas passageira, mas a nova normalidade.
A Rússia funciona como um espelho implacável das fraquezas do Ocidente. Sem uma resposta firme da União Europeia, a ameaça não será apenas passageira, mas a nova normalidade. Em 2025, ao assinalar os oitenta anos do fim da Segunda Guerra Mundial, a Europa quis celebrar uma memória. Acabou por confrontar o presente. Houve discursos coreografados, coroas depositadas, orquestras em tom de reconciliação. Mas, sob o verniz cerimonial, ouvia-se um murmúrio incómodo: o da guerra presente, sem armistício, sem tréguas. A história, que os europeus julgavam arquivada, voltou a pulsar no centro do continente. Reemergiu nas crateras de Kharkiv, nas colunas blindadas em Donetsk, nos olhos dos líderes que finalmente compreendem, tarde demais, que 1945 não foi um ponto final.
Durante décadas, a Europa alimentou-se da ficção da irreversibilidade. A queda do Muro. O colapso soviético. O alargamento a Leste. A moeda única. Tudo parecia anunciar um percurso linear, estável, imune ao retrocesso. A paz vendia-se como automatismo. A estabilidade, como destino. Mas cedo o século XXI começou a escrever noutro sentido. A guerra dos Balcãs, abafada como um acidente periférico, deixou cicatrizes que Bruxelas tentou emendar com alargamentos. A Chechénia foi ignorada. O 11 de Setembro veio redefinir ameaças. A China mostrou que o poder pode crescer em silêncio. E no Kremlin, o ressentimento foi alimentado. A Geórgia foi a centelha. A Crimeia, a fogueira. A Ucrânia, o incêndio.
Foi nesse contexto que a Europa hesitou. Entre o apoio condicionado e a prudência acomodada, cedeu iniciativa a Washington, confiou em Londres e escudou-se em Varsóvia. Repetia-se nos corredores que a força não era o seu registo. Que prefere comunicar, legislar e regular, mesmo que não haja interlocutor. Mas nenhum tratado protege hoje Mariupol. Nenhum comunicado se opõe a uma coluna de tanques ou a um enxame de drones.
A guerra na Ucrânia é mais que um teste à resistência de Kyiv. É o espelho da hesitação europeia, moral e estratégica. Entre as cinzas das cidades bombardeadas e os milhões desviados do orçamento ucraniano para sustentar a sua defesa, debate-se em Bruxelas: o que fazer com os 200 mil milhões de euros em ativos russos congelados através do Euroclear.
A resposta deveria ser evidente: colocá-los ao serviço da reconstrução de um país brutalmente agredido. Mas a Europa, mãe das convenções e das cimeiras, hesita. E hesita com argumentos que parecem ponderados, mas soam a pretexto. França, Bélgica, o Banco Central Europeu e outros guardiões da ortodoxia jurídica e financeira temem violar tratados, minar a confiança dos mercados ou criar precedentes perigosos. Eric Lombard invoca a estabilidade do euro. Bart De Wever alerta para consequências sistémicas. O BCE evoca o espectro da credibilidade da moeda única. E fora da Europa, a Arábia Saudita insinuou que poderá vender parte das suas obrigações europeias, caso o confisco avance.
Esta linha de raciocínio é politicamente anémica e moralmente discutível, dificilmente resistindo a um escrutínio sério à luz do direito internacional. O confisco de ativos do Banco Central da Rússia pode ser juridicamente justificado face à guerra de agressão desencadeada contra a Ucrânia, uma violação direta da Carta das Nações Unidas.
Embora os bens dos bancos centrais gozem de imunidade soberana, esta não é absoluta, sobretudo quando o Estado em causa comete uma agressão flagrante. Segundo a doutrina da responsabilidade do Estado, os países lesados têm o direito de aplicar contramedidas proporcionais e não violentas, com vista a pôr termo à violação e a obter reparação.
Mesmo os Estados não diretamente lesados podem agir quando estão em jogo normas fundamentais do direito internacional, tendo o Tribunal Internacional de Justiça reafirmado que uma agressão viola a paz internacional e compromete a ordem jurídica global.
A prática crescente entre Estados e a jurisprudência sustentam a legitimidade de canalizar os ativos russos congelados para a reconstrução da Ucrânia, desde que se respeitem os princípios da proporcionalidade e legalidade. Trata-se, em última análise, de garantir que o direito internacional não se torna cúmplice. Que direito tem a Rússia a ver os seus ativos mais protegidos do que as vidas ucranianas?
Mas o impasse mantém-se. A Europa tem medo. Medo de retaliações. Medo dos mercados. Medo de si própria. Mas confiscar os bens do Kremlin seria um gesto firme e justo. Em vez disso, opta por fórmulas diluídas, como usar apenas os juros dos ativos congelados. Mas nem todos concordam. O Reino Unido sugeriu que os ativos fossem transferidos para um fundo autónomo de investimento, enquanto a Polónia e os Países Bálticos defendem que à linguagem da força só se responde com força. O seu apoio ao confisco total não é belicismo. É lucidez. Enquanto isso, os gigantes da zona euro hesitam, como se os tratados pudessem, sozinhos, deter mísseis.
As soluções esperavam-se de fora da Europa. Mas, sem surpresa, Donald Trump não as trouxe. Trouxe, antes, desconfiança e ambiguidade – no G7, em Haia e na Casa Branca. Não obstante, ao intermediar o cessar-fogo entre Israel e o Irão, revelou algo que a Europa há muito perdeu: o instinto. O dele é errático, cínico, mas é instinto. Move-se por perceções de força. Reage a custos, não a proclamações. Respeita quem age, não quem espera. Neste xadrez, os 200 mil milhões em ativos russos congelados não podem permanecer num limbo jurídico. São mais do que uma esperança para a reconstrução da Ucrânia. São um teste. Um teste à capacidade de agir sem pedir licença. À coragem de transformar a apatia em ação. E, sobretudo, à vontade de contrariar a narrativa dominante de que tudo depende dos Estados Unidos, abandonando a complacência e assumindo, com coragem, o papel que lhe cabe na defesa da justiça internacional.
A Rússia deve reparar os danos causados pela sua guerra de agressão e os ativos russos podem ser usados para pagar salários ucranianos, reconstruir escolas e repor sistemas de defesa aérea. Se isso acontecer, a Ucrânia será mais forte e a Europa deixará de estar no menu para se sentar à mesa. Os princípios, sem força, são hoje inconsequentes. Além de salvaguardar a Ucrânia, o objetivo deverá ser também mostrar que não há um vazio. Que a Europa vê os Estados Unidos como um aliado, não como suserano.
Se a União Europeia quer ser mais do que um mercado com ambições geopolíticas, terá de deixar para trás a unanimidade no labirinto que é a sua política externa. Terá de tomar decisões difíceis relativamente à Hungria de Orbán – provavelmente a suspensão do seu direito de voto através do artigo 7º do Tratado da União Europeia. A reconstrução da Ucrânia e o futuro do continente não podem depender da agenda pessoal de Viktor Orbán ou dos interesses económicos de Robert Fico na Eslováquia. Não podem depender das dificuldades orçamentais da França ou da tendência de Merz para avaliar conflitos com dois pesos e duas medidas. Exigem uma afirmação inequívoca: quem destrói, paga, quem viola o direito internacional, deve ser punido.
A força é a única linguagem que Vladimir Putin entende. E é nesse terreno – o da eficácia, não da eloquência – que a Europa pode inverter o jogo. Se os ativos forem mobilizados e a ajuda sustentada com recursos próprios, Putin pensará duas vezes antes de voltar a atacar a Ucrânia. Aqueles que acreditam que o Kremlin cederá perante uma suavização das sanções revelam, na melhor das hipóteses, um otimismo ingénuo e, na pior, uma tendência para invocar o direito internacional apenas quando lhes convém.
Confiscar os bens russos seria um instrumento legítimo e justo para compensar a Ucrânia. Mas também para impedir a próxima guerra, aqui ou noutros pontos do globo. Para enviar uma mensagem à China – que pode ter “abandonado” o Irão, mas que não está disposta a deixar cair a Rússia – que a União Europeia também não pode admitir que a Ucrânia perca a guerra que foi ilegalmente e brutalmente iniciada pelo Kremlin.
A guerra na Ucrânia ensinou-nos várias coisas. Que os tratados são frágeis. Que sempre existirão aqueles – os idiotas úteis – que estarão convencidos de que o mundo será um lugar melhor caso Vladimir Putin vença e a Europa seja humilhada. Que a paz não é garantida e que o apaziguamento custa sempre mais do que a firmeza. Mas ensinou-nos sobretudo que o tempo das ilusões acabou. O mundo não espera pela Europa. E se esta quiser contar, terá de agir como se já não houvesse tempo para hesitar, porque não há.
Os ucranianos continuarão a lutar, porque a alternativa é o fim da sua soberania, da sua liberdade, da sua língua e da sua própria vida. Resta saber se a Europa terá memória para não os trair.
Ou coragem para não se trair a si mesma.