CRÓNICA || Viagens de coração cheio com "Ninguém, Ninguém"
Só pessoas com mais de 40 anos poderão perceber à queima-roupa o título desta crónica. Sem pistas nem legenda, sem chave nem enigma, elas sorrirão com a palavra “karaoke” atrás dos lábios, num imaginário coletivo que as (nos) transporta para uma rua comum onde subitamente nos sentimos menos sozinhos, um lugar-tempo de referenciação, de identificação. Chama-se cultura pop.
Até pessoas com menos de 40 anos sabem trautear canções do Marco Paulo. Ainda agora fiz uma sondagem à boca da urna aqui na redação e não houve vintanista que não respondesse com “ninguém” ou “dois amores”, de lábios abertos e prontos a cantar, num real coletivo que nos transporta de uma festa ou farra ou feira onde dançámos como parvos e nos rimos de nos rirmos. Chama-se cultura popular.
Depois, em cima destes tapetes voadores da cultura ocidental, cada um se arrima e se destralha nas suas vidas, biografando uma espécie de singularidade semibreve num movimento maior. No dia da morte de Marco Paulo (1945-2024), venho aqui para irmos ali, ao o-amor-é-um-lugar-estranho dos filmes e livros e canções dessa tal rua comum onde nos encontramos uns aos outros, por vezes até a nós mesmos.
Oriente
O “Lost in Translation” foi um amor geracional, e foi por causa daquela sequência lampejante, daquela eufórica corrida para a derrota que acaba com Bill Murray a cantar o “More Than This” num karaoke no Japão, que se venderam milhões de perucas cor de rosa e se compraram milhões de bilhetes imaginários de avião para a janela de um hotel que se despenha em vidro sobre Tóquio. Nenhuma mulher foi alguma vez tão bonita como naquela janela. E nunca duas pessoas se aproximaram tanto nas suas solidões, dançando no barulho das luzes e reconhecendo-se na desolação de um último canto desafinado, “more than this / there’s nothing”, qual é o momento da nossa vida em que mais do que isto não há nada?
Médio Oriente
Era precisamente isto que eu estava a contar à Joana no meio da rua a meio da noite em Istambul: que semanas antes tinha cantado o “More Than This” para a Helena em Shibuya, no raio de um karaoke histriónico tipo árvore de natal por dentro, cumprindo sem prestidigitação o mais piroso dos ensaios romântico-turísticos, “sa lixe, dá cá o micro”, o Paulo e Marta tinham feito o mesmo e nunca mais se esqueceram disso na vida. A Joana riu-se, pegou no telemóvel, procurou “karaoke Istambul” e topámos num mesmo aos nossos pés.
Chamava-se Rosso, entrámos e estava às moscas, ficámos com a sala só para nós, o Zé Pedro foi para a mesa de mistura, e a noite ficou para sempre, “passámos a noite no Rosso”, diríamos mil vezes depois, naquela noite afundámos solidões, fundeámos amizades e fundámos legiões de esperança, nem uma dúzia éramos e troávamos como uma multidão, estávamos ali pelo João e pela Selay, elas iam casar dali a dias, o João e a Selay têm a história de amor mais bonita de sempre, são o único casal do mundo que tem gravada a conversa do momento em que se conheceram, ele estava em trabalho e ia entrevistá-la, “excuse me”, ela vira-se e percebe-se logo na voz dele o relâmpago à primeira vista.
Naquela noite no Rosso íamos só beber um copo mas acabaríamos de manhã a molhar os olhos no Bósforo, de madrugada dançámos horas sem parar e nisto o João pega no microfone e debaixo daquele teto raiado de vermelhíssimos néons canta o “Ninguém Ninguém”, Marco Polo encontra Marco Paulo em Istambul, e depois haveria de subir ao mini-palco e discursar para nós dizendo a letra do Ninguém Ninguém e aquela noite foi nossa para sempre. Seria depois estendida aos outros: cantámo-la todos, portugueses e turcos, já na noite do casamento em Ancara, cantámo-la depois num bar outra vez só para nós, o “Ninguém Ninguém” foi a banda sonora daquela viagem, a Paula estava lá e foi ela que hoje me fez escrever este texto, “Por favor escreve sobre o Marco Paulo aquilo que só tu podes escrever: ninguém, ninguém poderá mudar o mundo. Ninguém, ninguém é mais forte que o amor. Ninguém, ninguém, ninguém.”
Ocidente
“Ninguém, Ninguém” é uma canção de 1979 e é essa a época em que ele, sendo uma invenção-imitação de outros cantores populares da Europa-América para onde então emigrávamos, foi mais único. Foi o primeiro cantor intensamente romântico intensamente popular depois do 25 de abril, pré-pimba do atrevimento sem descaramento, exageradamente romântico, insuportavelmente apaixonado, emparedado por discos de ouro e de platina, coroado de caracóis triunfantes e dono de um vozeirão, o cantor das feiras, o cantor das rádios, o ídolo acessível por quem as fãs se despedaçavam em assolapadas e platónicas paixões.
Eu Tenho Dois Amores (que ele gravou contra a sua vontade, porque não gostava da letra), Sempre que Brilha o Sol, Maravilhoso Coração, Joana, Anita, Morena Morenita, músicas para os mais de e menos de 40 anos, ainda hoje, e qual é a razão do sucesso? “É a minha voz”. Manuel Luís Goucha, o grande conversador da televisão portuguesa, explica aqui.
Esta crónica não é, pois, uma elegia nem uma exaltação, é um reconhecimento perante um cantor que se transformou numa personagem e que preenche as memórias auditivas de baby-boomers, geração X, millenials e até alguns geração Z. Foi por causa da Scarlett Johansson (ou talvez da Sofia Coppola) que eu cantei Marco Paulo num karaoke a oriente, e talvez sem Marco Paulo Portugal tivesse sido o mesmo mas de outro modo.
Qual é o momento da nossa vida em que mais do que isto não há nada? A única resposta é sempre dada pelos amantes, que irrepetivelmente repetem muitas vezes esse momento. Uma fortuna, isto de amar. Afinal, a Selay e o João é que sabem:
Ninguém, ninguém
Poderá mudar o mundo
Ninguém, ninguém
É mais forte que o amor
Ninguém, ninguém, ninguém