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Marcelo vai dormir para o sofá logo à noite

22 mar 2023, 22:06

Não rasgou, mas arranhou; não quebrou, mas rachou. A relação política mais terna e marcante da política portuguesa na última década abanou nos últimos dias. Ninguém pediu o divórcio e é possível que se evite a separação, mas o par necessitará do que hoje chamaríamos "um tempo".

O que começou com uma troca de avisos ("é preciso abrir o melão") passou a soma de ameaças (de enviar medidas para o Tribunal Constitucional) e aproximou-se da discussão naquele que é o registo mais imperdoável de todos: fora de portas, junto de ouvidos alheios, nas costas de uma das partes.

Foi isso que Marcelo Rebelo de Sousa fez, na destrutiva avaliação que fez do pacote do governo para responder à crise da habitação ("é inoperacional", "era melhor nem termos falado nisso") e hoje, no parlamento, António Costa respondeu-lhe à letra: "Uma das razões porque prefiro funções executivas é que noutras se fala, fala, fala, mas nestas faz-se".

Não é luva branca, é de boxe. 

Esse foi um dos sinais mais relevantes para futuro no debate de política geral desta tarde, na Assembleia da República. O primeiro-ministro e o Presidente da República, dupla inseparável desde 2016 e possivelmente condenada à coexistência até 2026, zangou-se.

O Partido Socialista, na voz do seu líder parlamentar, insistiu em apresentar-se como pilar único "da estabilidade" na cena política, roubando propositadamente uma bandeira sempre empunhada por Marcelo. Por outras palavras, acusou-o de ser ele -- e não o governo -- o grande desestabilizador da relação (perdão, do país). 

O balão de distanciamento, depois de hoje, está insuflado como nunca. A reação do Presidente ditará se voa para fora das mãos de ambos ou se regressará à normalidade. Costa, com um orquestrado ataque de retaliação, tirou a aliança do dedo e colocou-a na mesa do hall de entrada. 

A coisa escalou. Marcelo decidirá se irá atrás dele ou não. 

Por agora, por hoje, dormirá certamente no sofá. 

O segundo dado do debate de hoje, por certo menos colorido mas não menos relevante, é este: António Costa não prescindirá do rigor financeiro enquanto for primeiro-ministro. "Nunca podemos esquecer o que acontece quando se esgota a margem e ficamos numa situação de insustentabilidade. Nunca podemos esquecer o preço altíssimo que os portugueses pagaram e que não voltarão a pagar porque vamos manter uma gestão responsável", disse.

Que significa isto? Muito simples. Tremendamente simples, aliás. Trata-se de uma jura. Uma jura de nunca mais e de não esquecemos. Pelo contrário: aprenderam. Uma promessa solene – de António Costa ao seu eleitorado – de que o país não fará novamente tangente à bancarrota. Uma garantia pública de que, com guerra ou sem guerra, com falências bancárias na Suíça ou na Califórnia, o país não regressará ao charco de Sócrates, do resgate, da troika. 

"As contas certas sintetizam a boa política que permite adotar as boas medidas”, atirou, aos votantes do centro, aos protestantes da esquerda, aos saudosistas da direita, numa frase que poderia ser de Passos, de Dijsselbloem, de Schäuble e, hoje, do PS.

"Temos de continuar a trajetória para responder aos problemas estruturais da sociedade”, continuou, numa máxima igualmente próxima da realidade e do bom-senso. 

É o Costa-charneira, capaz de ir trocar dois dedos de conversa com Mariana Mortágua no fim do debate e, ao mesmo tempo, de ter menos 1,4% de défice no ano da maior perda de poder de compra dos portugueses em dez anos. 

A garantia de que os aumentos na Função Pública serão atualizados face aos novos valores de inflação é parte dessa ginástica, da flexibilidade que lhe proporciona supremacia política apesar de todas as turbulências.

As medidas anunciadas amanhã serão localizadas, como a Comissão Europeia obriga, e conservadoras como Costa introduziu hoje.

O pacote da Habitação visava ressuscitar o governo depois da crise da TAP – e falhou em consegui-lo. Foram as críticas de Marcelo, ironicamente, que o trouxeram de volta à vida. 

Numa década que preferiu a política às políticas, não é surpreendente.

É essa preferência em comum, afinal, que aproximará Costa e Marcelo da reconciliação. 

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