Numa comunicação em que Marcelo demorou quase o dobro do que tinha demorado na altura da demissão de António Costa, o Presidente da República não deixa Montenegro descolar-se do caso Spinumviva, mas faz um derradeiro apelo: que o escândalo político não ofusque aquilo que são as preocupações dos portugueses
Quem é próximo de Marcelo Rebelo de Sousa notou, no seu discurso de quinta-feira à noite, um cansaço e um desgaste por a situação política não ter sido aquela que idealizou há um ano. Ao confirmar que o país vai para novas eleições, o Presidente da República fez um diagnóstico da crise que levou à demissão do Executivo de Montenegro, sublinhando o próprio conflito ético em que o primeiro-ministro se deixou envolver por permitir que uma empresa da sua esfera familiar continuasse a receber avenças de grupos económicos enquanto desempenhava funções.
Eventualmente, o Presidente da República teria preferido uma outra solução que lhe permitisse manter alguma estabilidade política até deixar o cargo. Mas, nota fonte próxima de Marcelo, essa alternativa estaria condenada à nascença já que, por um lado, Luís Montenegro descartou qualquer cenário que implicasse a saída pelo próprio pé e, por outro, lutar por esse caminho implicaria um braço de ferro para o qual já não tinha forças.
Assim, num discurso longo e faseado, Marcelo procurou ser pedagógico ao explicar aos portugueses a razão de serem convocados às urnas mais uma vez - a terceira em três anos. Ao fazê-lo, contudo, não deixou de colocar o ainda primeiro-ministro em cheque. Primeiro disse-lhe durante o Conselho de Estado, perante todos os conselheiros, que não concordou com a moção de confiança apresentada e, mais tarde, durante o discurso, voltou a insistir nesse tema, deixando uma questão no ar: “Porque é que o Governo anunciou e apresentou a moção de confiança e as oposições rejeitaram essa moção?”
Dúvidas houvesse sobre a responsabilidade política da queda do Governo, aponta o politólogo João Pacheco, “Marcelo Rebelo de Sousa aponta o dedo muito nitidamente a Luís Montenegro” e isso “fragiliza o primeiro-ministro, como é evidente”. “Marcelo Rebelo de Sousa usou os primeiros minutos da sua intervenção para contar uma história que todos conhecemos, mas de facto aquilo que parecia só um enquadramento mais ou menos genérico serviu para justificar aquilo que é um apontar do dedo de Marcelo Rebelo de Sousa a Luís Montenegro. No fundo, Marcelo responsabiliza Luís Montenegro pela crise política”.
O discurso, em si, demorou 10 minutos e 50 segundos, quase o dobro do que demorou o Presidente da República na comunicação ao País em novembro de 2023 quando anunciou a queda do governo de António Costa. Se a demissão de Costa levou Marcelo a elogiá-lo pela sua “elevação do gesto” e pelos oito anos de “profunda dedicação ao país”, na demissão de Montenegro o Presidente da República colou a sua imagem à do escândalo Spinumviva, e confundiu os méritos deste Executivo com os anteriores, preferindo destacar os sucessos políticos dos “últimos anos”, como o equilíbrio das contas do Estado ou a redução do desemprego.
Essa colagem é talvez mais óbvia quando o Presidente da República constata que Montenegro o deixou sem quaisquer opções. “Não havia meio caminho”, disse na mensagem, salientando que “não se pode ao mesmo tempo confiar e desconfiar do primeiro-ministro”. Para João Pacheco, o “facto de termos a instituição Presidente da República a dizer de forma declarada, quando anuncia a dissolução do Parlamento, que o primeiro-ministro é o principal e único responsável pela crise política, isso é um dado que joga contra o candidato Luís Montenegro e a favor, nomeadamente, do líder da oposição e de toda a oposição, como é óbvio”.
As relações de coabitação entre São Bento e Belém nem sempre foram as melhores ao longo desta legislatura, mas, nas últimas semanas, a amargura tornou-se mais notória, especialmente depois de Luís Montenegro não ter telefonado a Marcelo antes de se dirigir ao país, pela primeira vez, para uma comunicação formal sobre a sua empresa familiar. “O primeiro-ministro tem direito de não ligar, mas podia ouvir a minha opinião”, referiu o Presidente da República, no final de fevereiro, considerando este comportamento típico do primeiro-ministro: deixar tudo para o último segundo, ser pessoal nas decisões e não ouvir Belém.
Esta crise “inesperada”, como definiu Marcelo, acontece também aliada às crescentes dificuldades dos portugueses que encontram problemas no funcionamento do Estado. São questões que “a todos preocupam”, disse o Presidente da República, apontando para a necessidade de “gerir melhor a Saúde e a Educação” e “acelerar na Habitação”, tal como “não desperdiçar fundos que vêm lá de fora e são únicos”. “Tudo isto aconselhava a estabilidade, ou seja, não haver crises nem sobressaltos que atrasem o que é urgente fazer e fazer bem”.
“Não é saliente uma palavra de apreço pelo trabalho feito”, nota a politóloga Paula do Espírito Santo. “No fundo, é como se este ano não tivesse tido grandes efeitos políticos e económicos”. A especialista em comunicação política encontra também neste discurso de Marcelo Rebelo de Sousa a versão de um Presidente “conformista” que se vê num “rol de acontecimentos” sem que tenha “conseguido ter intervenção”. “Marcelo vira-se, então, para as duas únicas coisas que consegue apelar: a não contaminação total do debate nas questões éticas do primeiro-ministro e o pedido para que os eleitores continuem a defender a democracia”.
Com a campanha eleitoral já marcada para as primeiras duas semanas de maio, é nesse contexto que surge um derradeiro apelo do Presidente da República aos partidos no advento desta nova fase política. O de que o debate “de natureza pessoal e ética” e do qual não surgem consensos não ocupe a totalidade da discussão política até à data das eleições. Isso seria “um desperdício imperdoável” e ofuscaria aquilo que “tanto preocupa no dia a dia dos Portugueses nestes e nos próximos tempos”: “A economia e o seu crescimento, o emprego, o controlo da inflação, os salários e os rendimentos, a saúde, a habitação, a educação, as desigualdades, a justiça, a mobilidade humana, o lugar dos menos jovens e também o lugar dos mais jovens na nossa sociedade, a segurança, e, claro, a transparência e o combate à corrupção”.