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Marcelo, no seu labirinto

7 mai 2023, 14:49

O “regular funcionamento das instituições” nunca fez cair um primeiro-ministro no Portugal Democrático e é essa ausência de precedente uma das razões para a tempestade desta semana

Mais do que garantir a independência e a unidade do Estado, a responsabilidade presidencial mais frequentemente relembrada é a do regular funcionamento das instituições; e é assim por uma razão simples. Trata-se de uma responsabilidade que confere um poder ‒ a demissão do governo ‒ e em Portugal, em período de normalidade democrática, tal nunca aconteceu.

Formalmente, Jorge Sampaio dissolveu a Assembleia da República e foi o governo de Santana Lopes a demitir-se; não o oposto. Em 1978, Ramalho Eanes exonerou o primeiro-ministro, Mário Soares, mas graças ao fim do acordo partidário que sustentava a coligação PS/CDS, estando a Presidência de hoje severamente mais limitada do que a de então. 

Quer isto dizer que o “regular funcionamento das instituições” nunca fez cair um primeiro-ministro no Portugal Democrático e é essa ausência de precedente ‒ de jurisprudência política, se quisermos ‒ uma das razões para a tempestade que vivemos na última semana. Não que a Constituição seja insuficiente como fonte de previsibilidade; pelo contrário. Mas por uma tradição constitucional incapaz de responder na íntegra à incerteza da situação política. 

Dito de outro modo: o irregular funcionamento das instituições de hoje é menos aferível por nunca ter sido confirmado no passado, por mais evidente que se mostre em casos como o do SIS e do computador de Frederico Pinheiro. 

De uma forma objetiva, o Presidente da República enfrentou a crise política deste mês na plena posse dos seus poderes: podia dissolver, podia demitir, podia renunciar. Mas, de uma forma igualmente objetiva, Marcelo Rebelo de Sousa foi enfrentado nesta crise política devido às consequências do uso desses poderes: se dissolvesse, uma eventual ingovernabilidade; se demitisse, uma eventual humilhação; se renunciasse, a desistência certa. 

A manobra política do primeiro-ministro encontrou espaço nesse aperto do Presidente. Costa entrou por onde Marcelo não tinha saída. Dissolver o parlamento era arriscar um resultado inconclusivo; demitir o governo era arriscar o PS apresentar-lhe um executivo exatamente igual; renunciar seria mergulhar o país numa crise de regime.

Insisto no ponto: Costa só arriscou tanto porque Marcelo não podia arriscar nada. 

A resposta do Presidente à afronta do primeiro-ministro, ignorando a geladaria, ilustrou essa camisa de forças. Marcelo tudo disse, mas nada fez. Diagnosticou sem receita. Acusou sem sentença. A sua comunicação solene ao país, tão brutal quanto pífia, encarcerou-o ainda mais nessa caverna. 

Se pensarmos bem, a sua demolição do comportamento do ministro João Galamba vira-se inevitavelmente contra o Presidente, na medida em que cada vez que Galamba surgir, falar, negociar, privatizar, etc., atingirá diretamente a palavra presidencial. Cada dia de sobrevivência do ministro é um enfraquecimento do Presidente que o vexou, primeiro por escrito, depois por dito. 

Ao identificar tão explicitamente as falhas deste governo (respeitabilidade, credibilidade, autoridade) sem nada fazer no imediato, Marcelo corre o risco de ferir a eficácia de futuras críticas que venha a fazer. Ao arrasar Costa na reação a Costa, qualquer remoque que se siga será interpretado como retaliação, rancor ou vingança, o que obviamente lhe retirará peso político. Apesar de popular, é ingénua a ideia de que se possa redobrar a pressão quando se perdeu força ou, no fundo, ferver em lume brando quando se ficou sem gás, ser último fusível numa luz apagada.

Durante meses, Marcelo encheu o balão da dissolução mesmo que com ares de mera possibilidade. Lamentou até que a oposição não estabelecesse um “governo-sombra”, pronto a assumir funções se necessário. Mas, muito ironicamente, não deixava de ser um soprar gratuito do Presidente, visto que a mão que enchia convivia com uma mão que não picaria. O Marcelo que colocava o cenário de eleições ‒ que não exige legalmente qualquer irregular funcionamento das instituições ‒ era o Marcelo que, ao mesmo tempo, declarava a ausência de “alternativa”. 

E é esse o ângulo mais curioso e menos explorado desta crise política. À primeira vista, ela é uma sobreposição de São Bento a Belém, quando não foi mais do que uma relocalização involuntária da Presidência para o seu suposto lugar. À segunda vista, ela foi um embate de titãs entre Costa e Marcelo, quando não é só o primeiro-ministro, na verdade, a queixar-se dos excessos do Presidente. São todos. 

É Santos Silva, nas comemorações do 25 de Abril, a defender o cumprimento integral da legislatura contra as antecipações calendarizadas por Marcelo, sentado ao seu lado. É o líder da oposição, assim como todos os presidentes do PSD que com ele conviveram, ora substituídos na crítica, ora contrariados pela relativização. São os partidos políticos, que nem chamados ao Palácio foram e que têm uma Comissão de Inquérito a decorrer. E é, sim, António Costa, cuja exasperação era notória há meses (“Em funções não-executivas fala-se, mas não se faz nada”, em finais de abril) e que não se podia dar ao luxo de aguentar uma legislatura subalternizado pela omnipresença de Marcelo. 

O Presidente foi útil ao primeiro-ministro no seu primeiro governo, quando este não tinha a mesma maioria, estabilidade ou legitimidade eleitoral, e juntos dançaram múltiplas valsas políticas, da banca às relações com Angola, da PGR aos exames nacionais. No segundo governo, com a pandemia, a fusão institucional era desejada e também fruto da recandidatura presidencial de Marcelo, descaradamente apoiada por António Costa. No terceiro governo, com a maioria absoluta, da lista de ministros divulgada sem o conhecimento do Presidente à manutenção em guerra de João Galamba, a música é outra. Desafinou. Mas o facto de não conseguirmos sair dela tem a ver com tudo o que antes tocou. 

O impasse ‒ entre a ingovernabilidade incumbente e a ingovernabilidade eleitoral ‒ é fruto da sobreexposição do Partido Socialista à governação. Já deveria ter sido aliviado de si mesmo há muito tempo. E o Presidente, na forma como se confundiu com o governo e contrariou as oposições, tem responsabilidades nesse prolongamento não natural de António Costa no poder. Sem a dissolução precoce de 2021, afinal, teríamos legislativas este ano.

Incontornavelmente, Marcelo não é só um dos pais desta crise política. É o autor da sua própria. Perdeu-se no labirinto que desenhou. E não é líquido que encontre uma saída.

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