Presidência aberta, fiscalização ou poder da palavra. Como vai Marcelo escrutinar o Governo?

ECO - Parceiro CNN Portugal , Mariana Espírito Santo
6 mai 2023, 12:43
António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa

O Presidente avisou que vai estar mais atento à atuação de Governo de António Costa. Discordância pública é diferente do habitual, mas outros Presidentes já fizeram uma fiscalização apertada

Depois de uma discordância relativamente à permanência de João Galamba enquanto ministro das Infraestruturas, o Presidente da República prometeu uma vigilância mais apertada ao Executivo de António Costa. Resta agora saber como esse escrutínio se vai materializar, sendo que na história portuguesa existem exemplos como as Presidências Abertas de Mário Soares ou o uso da fiscalização dos diplomas. Pelo perfil de Marcelo Rebelo de Sousa, certo é que fará uso do poder da palavra e trará as divergências a público, apontam politólogos ao ECO.

Numa declaração ao país, após a polémica divergência com António Costa, o Presidente assegurou que vai “estar mais atento e interventivo no dia-a-dia” para evitar “o aparecimento e o avolumar de fatores imparáveis e indesejáveis”. António Costa, em resposta ao Chefe de Estado, garante que “todos os portugueses desejam a vigilância ativa do Presidente da República e o Governo não se sente nada incomodado”. O primeiro-ministro reconheceu que existe uma divergência “rara” com Marcelo Rebelo de Sousa, mas “não são necessários dramatismos”.

Mas de que forma se vai materializar essa vigilância mais apertada? “O Presidente não pode ultrapassar limites constitucionais, mas podemos interpretar de forma mais extensa no sentido que tem magistratura de influência, no regime semipresidencialista”, salienta Paula Espírito Santo, professora de Ciência Política, ao ECO, com a qual pode assumir um papel “mais vigilante e escrutinador da ação do Governo e do primeiro-ministro”.

João Cardoso Rosas também aponta ao ECO que Marcelo “pode fazer algo sobretudo através da intervenção que já é muito forte e contínua, aumentar ainda mais o nível de intervenção pública chamando a atenção de forma pública, dizendo algo que usualmente diria apenas em conversas privadas com o primeiro-ministro”, passando assim a “exercer maior pressão sobre o Governo”.

Isto só por si já traz alguma “novidade”, indica o politólogo, já que “discordâncias sempre houve, mas eram dirimidas em privado e eram negociadas e resolvidas nesse âmbito”. Ter “declarações solenes do primeiro-ministro e Presidente de confronto em relação à escolha de membros de Governo é novo nível no modo como discordâncias são publicitadas e proclamadas”, ganhando assim uma “nova dimensão”.

Desta forma, a relação institucional pode assim tornar-se numa “coabitação negativa, em que Chefe de Estado e Chefe de Governo estarão numa permanente relação de forças”, destaca Hugo Ferrinho Lopes, ao ECO.

Para Cardoso Rosas, a nova postura “pode caminhar para uma situação de conflito institucional, entre Presidente e Executivo, ou pode caminhar simplesmente para uma certa tensão entre dois polos, que está dentro do âmbito normal de freios e contrapesos, sem que degenere num conflito”.

O politólogo destaca que “tipicamente quando há um sistema de coabitação, quando a cor política do Presidente é diferente do Executivo, geralmente há maior fricção e sobretudo — está-se a transformar numa lei — no segundo mandato do Presidente e à medida que se encaminha para o seu meio, a fricção aumenta”. Os Presidentes “começam a ser mais interventivos, sobretudo a partir da segunda metade do segundo mandato e nesse aspeto da relação atual não é muito diferente do que aconteceu noutros casos”.

Presidências abertas, fiscalização ou poder da palavra?

Paula Espírito Santo recorda, como exemplo deste tipo de relação entre os órgãos institucionais, que Mário Soares “teve também um papel muito vigilante, particularmente no mandato de Cavaco Silva enquanto primeiro-ministro, em que foi muito fiscalizador na medida em que os diplomas eram enviados ao Tribunal Constitucional ou pedia fiscalização preventiva ou sucessiva (antes de entrar em vigor)”.

Assim, Marcelo tem, “num plano mais formal e legal, o poder da fiscalização preventiva e sucessiva das leis ou dos diplomas que são enviados, neste caso também os do Governo”, e poder de veto ou promulgação dos diplomas.

Voltando ao exemplo de Mário Soares, no segundo mandato este “optou mais pelas presidências abertas e passou a deslocalizar a ação presidencial, que acaba por estar muito centrada em Belém e Lisboa”.

Hugo Ferrinho Lopes afiança que Marcelo Rebelo de Sousa poderá optar também por uma abordagem semelhante, ao “começar a visitar instituições e entidades ligadas às áreas onde o Estado tem sido menos capaz de dar respostas às necessidades dos cidadãos e onde mais se sentem os efeitos da inflação”.

“Desta forma, chamaria à atenção para as falhas da ação governativa e assumiria uma postura de oposição indireta ao governo“, aponta, sublinhando que “o final da intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa é também um apelo à mobilização cidadã, o que denota que poderá fazer uso da sua popularidade para influenciar as avaliações dos cidadãos face ao Executivo”.

Ainda assim, o estilo de Marcelo “é diferente de Mário Soares”, nomeadamente pela “vontade evidente em comunicar mais através dos media, o que pode gerar uma presidência aberta ainda mais interventiva”.

Por sua vez, Cardoso Rosas não se arrisca a dizer qual será o curso de ação escolhido por Marcelo, mas considera que “o Presidente tem uma forma própria de intervir, muitas vezes em ocasiões formais ou muitas vezes informais e isso em si mesmo, se for contínuo e feito de forma mais atenta ao dia a dia do Executivo, será uma forma de aumentar a pressão sobre o Governo”.

Ambas as figuras saem simultaneamente fortalecidas e enfraquecidas, considera. “Com a iniciativa de Costa de considerar que e ele que escolhe os ministros e decide quando saem, transformando ação do Presidente numa mera formalidade, por um lado fortalece posição do primeiro-ministro, mas noutro sentido enfraquece-a, porque deixa de contar com a solidariedade do Presidente”, nota. Já do lado do Presidente, a mudança no papel na nomeação dos ministros “por um lado enfraquece, porque já não tem influência na escolha dos membros do Governo, mas por outro liberta-o da corresponsabilidade dessa escolha, portanto, pode ser mais assertivo na crítica”.

Independentemente da forma escolhida de atuação, a relação entre ambos entra numa nova fase que “vai implicar maior escrutínio e fiscalização por parte do presidente: se vai materializar na palavra do PR ou fiscalização dos diplomas, o tempo dirá“, conclui Paula Espírito Santo.

Governo

Mais Governo

Patrocinados