Folhetim de Voto: Marcelo falhou duas vezes. Mas também tem uma maioria absoluta

3 fev 2022, 06:42
Marcelo Rebelo de Sousa (TIAGO PETINGA/LUSA)

O Presidente da República quis evitar uma crise e falhou. Quis promover um “acordo de cavalheiros”, mas este morreu de maioria absoluta. O papel de Marcelo nos próximos 4 anos dependerá das suas caraterísticas: não gosta de confrontos, ao contrário de Soares, nem de distância, ao contrário de Cavaco. A sua força vem dos afetos, da popularidade e da capacidade de ler tendências, escreve Filipe Santos Costa no seu texto diário de análise e opinião. Não precisa de ser o líder da oposição, basta-lhe liderar a sua própria maioria absoluta

O cenarista. Marcelo Rebelo de Sousa fez o inevitável: ouvidos os partidos com representação parlamentar (já não se viram o CDS nem Os Verdes em Belém), indigitou António Costa para formar Governo. Não era este papel de escrivão dos resultados eleitorais que o Presidente da República imaginaria para si próprio esta semana. Marcelo supôs que, por estes dias, tudo giraria à sua volta, quer as eleições deixassem um Parlamento muito parecido com o que existia, quer as hipóteses de governabilidade fossem um “berbicacho”, como o próprio chefe do Estado chegou a admitir, com a sua linguagem colorida.

Ainda Portugal não era uma democracia, e já Marcelo Rebelo de Sousa era o mais brilhante e mais influente cenarista da política portuguesa. Ninguém faz cenários como ele, ninguém especula com o seu brilhantismo, ninguém inventa matrioskas de possibilidades políticas como o Professor Marcelo, entretanto reinventado como Presidente Marcelo. Abundância e imaginação não são, porém, sinónimo de acerto. Em todo o processo que levou ao desfecho eleitoral de domingo, Marcelo traçou cenários e fez planos, e falhou. Terá agora quatro anos para acertar. É o tempo que lhe resta de mandato presidencial. É também o tempo que teremos de maioria absoluta do PS. A ironia desta coincidência é todo um tratado.

 

Plano A. O plano A de Marcelo, há três meses e meio, era impedir uma crise política. Quando avisou, a 13 de outubro, que um chumbo do Orçamento do Estado levaria a eleições antecipadas, o Presidente da República esperava que essa ameaça fosse suficiente para travar a escalada à esquerda e garantir que, mesmo que tarde e a más horas, o OE teria votos para passar. A clareza de Marcelo foi útil e esclarecedora, mas também era utilitária. Marcelo esperava que essa ameaça bastasse para, fosse como fosse, a esquerda não implodir a sua maioria.

Podia ter resultado? Podia. O país tinha acabado de sair de umas eleições autárquicas, bastante claras sobre a erosão e desmobilização do eleitorado de esquerda, e que deram pistas suficientes para se intuir que uma crise política só beneficiaria a direita - e o Chega em particular. A crise pandémica, a crise económica, a crise energética, o avolumar de sintomas da crise social, também estavam à vista. Marcelo supôs, racionalmente, que o seu aviso e o instinto de sobrevivência dos partidos à esquerda bastariam para riscar do mapa qualquer crise política. Enganou-se.

 

Plano B. A caminho das eleições, Marcelo corria o risco de que no Parlamento tudo ficasse parecido, e a ingovernabilidade fosse a consequência de não haver um vencedor com força, uma maioria clara de esquerda ou direita, ou condições de diálogo para forjar essas maiorias (sobretudo à esquerda, a lamber as feridas do fracasso da geringonça). Contra esse risco, Marcelo tinha um plano: um “acordo de cavalheiros” entre os dois maiores partidos, que assegurasse condições mínimas de estabilidade para quem quer que vencesse. Foi o seu plano B. O Presidente da República deu conta disso, em devido tempo, em cirúrgicas fugas de informação para os jornais.

Podia ter resultado? Podia. Uma das consequências mais prováveis das eleições antecipadas era - como se verificou - o reforço dos dois partidos do centrão. Porque não interpretar esse reforço como um estímulo aos entendimentos ao centro? Sobretudo, tendo em conta que há muitos anos que a soma de PS e PSD não chegava à fasquia dos 70%, como chegou agora. Rui Rio defendeu durante quatro anos esses acordos, e na reta final da campanha, quando todas as sondagens apontavam para um “empate técnico” entre PS e PSD, apesar da vantagem dos socialistas, Augusto Santos Silva admitiu essa escapatória, assumindo que poderia haver vantagens nesse “acordo de cavalheiros”. Como no plano B de Marcelo. Mas esse plano morreu de maioria absoluta. 

 

Bibelô. Tanto no plano A como no plano B, Marcelo ficaria no centro do regime, com o protagonismo que tem tentado assumir desde o dia em que foi eleito Presidente da República. Seria ele o grande desbloqueador da governabilidade, o tutor da governabilidade, o pai da Pátria. O seu consabido brilhantismo para fazer cenários e inventar soluções poderia desatar os nós de um Parlamento preso por fios. Nada disso será necessário. Como comentou Ana Gomes, com estas eleições, Marcelo "colocou-se naquela situação de ir buscar lã e sair tosquiado". Agora, como todos os Presidentes que antes de si coabitaram com maiorias absolutas, terá de dar utilidade ao seu papel. Sob pena de se transformar, não no epicentro do regime, mas no bibelô do regime.

 

Soares. O exemplo clássico e definitivo do Presidente da República que se afirmou como contraponto a uma maioria absoluta é o segundo mandato de Mário Soares, que praticamente coincidiu com a segunda maioria absoluta de Cavaco Silva. É sabido como Soares coabitou nesses quatro anos com Cavaco: em pé de guerra. Em Belém, teve sempre a porta aberta a todos os críticos e desvalidos do cavaquismo, fora de Belém cada Presidência Aberta era mais uma estocada na imagem do país de sucesso que os sociais-democratas promoviam. Soares mostrou aos portugueses o reverso do país bem sucedido e do “homem novo” cavaquista, e com isso moeu a narrativa oficial e pôs mais pauzinhos na engrenagem do que toda a oposição junta. Teve também, nessa estratégia trituradora, a sorte de poder contar com um dos momentos mais vivos da comunicação social portuguesa, com o surgimento de títulos que mudaram tudo, como o Público e, sobretudo, O Independente, que se tornou um aliado objetivo dos petardos disparados por Belém. O surgimento das televisões privadas, livres do cinzentismo e da oficialite aguda da televisão do Estado, completaram essa revolução.

Soares tornou-se o dínamo da oposição a Cavaco, muitas vezes para irritação do seu próprio PS. A questão, e o então PR nunca o escondeu, é que Soares considerava que António Guterres (e, antes dele, Vítor Constâncio) não fazia oposição suficiente ao absolutismo cavaquista. E Soares nunca foi de deixar lutas em mãos alheias. Partiu a loiça toda - e com isso desgastou um governo que tudo podia.

 

Cavaco. O caso de Cavaco, que conviveu com a única maioria absoluta de José Sócrates, foi muito menos relevante e impactante. Numa primeira fase, Cavaco viveu enamorado com o novo primeiro-ministro socialista - afinal, ele, Cavaco, tinha sido um dos principais promotores do defenestramento de Santana Lopes, que antes habitara em São Bento. Cavaco não disfarçava o fascínio com a clareza programática de Sócrates, o seu ímpeto reformista, e até a costela autoritária que emergiu desde cedo. Não há como não achar que Cavaco se reviu, durante bastante tempo, nesse perfil.

Quando rompeu com Sócrates, Cavaco fê-lo de forma por vezes demasiado sibilina, por vezes simplesmente atabalhoada. Ficou para a História uma comunicação ao país, com ar grave e recriminador, sobre o Estatuto dos Açores, aprovado pelos socialistas - no fim, toda a gente se perguntou que disparate tinha sido aquele. O fascínio de Cavaco pela distância presidencial, pelos silêncios, e pelo peso que queria dar à sua própria palavra, acabaram por a tornar, muitas vezes, incompreensível e inconsequente. Perdeu-se a conta à quantidade de vezes que Cavaco Silva se citou a si mesmo, para poder dizer: eu avisei. É um facto interessante e revelador, pois não há melhor barómetro do falhanço de Cavaco no contraponto à maioria absoluta de Sócrates do que a quantidade de vezes que se queixou de ter falado e ninguém o ter ouvido.

 

Marcelo. O atual Presidente da República tem um perfil muito distinto de Mário Soares e de Cavaco Silva. Marcelo não é um lutador de rua, como Soares foi a vida toda. Pelo contrário, se há traço que o carateriza é o horror ao confronto. Marcelo quer ser querido pelos portugueses, a sua vantagem política não está na luta, mas nos afetos. Prefere contornar os obstáculos do que ir de frente contra eles. Lembremo-nos que Marcelo já foi líder do PSD, na oposição - e a principal linha definidora desses três anos, para além de um frenesi inigualável, foi a forma inventiva que encontrou para se poupar ao momento por excelência de confronto entre quem governa e quem lidera a oposição. Marcelo resolveu o problema de ter de se posicionar todos os anos em relação ao Orçamento de Estado de um governo minoritário anunciando à partida que viabilizaria todos esses documentos. Encontrou um bom argumento: a entrada de Portugal no euro. Essa foi a sua forma de escapar ao principal confronto anual que lhe estava reservado.

Marcelo também está nos antípodas de Cavaco no culto da distância e dos silêncios enigmáticos. Com Marcelo não há distância nem silêncio. Há proximidade e prolixidade. Como dizia alguém, o seu silêncio é como o das crianças: se não se ouvem, é porque alguma coisa está errada.

 

Popularidade. A força de Soares, nos anos de fogo contra o cavaquismo, vinha da sua disponibilidade permanente para assumir mais uma briga, denunciar mais um problema, acolher e projetar mais uma queixa. A suposta força de Cavaco (na sua teoria, não na minha análise) vinha do uso parcimonioso da palavra presidencial. A força de Marcelo vem da sua popularidade, da sua proximidade ao comprimento de onda dos portugueses comuns, e das suas elevadas taxas de aprovação. E de uma capacidade lúdica de olhar a política, fazendo-a muitas vezes de forma desarmante, imaginativa e inesperada.

Tem os seus limites. Mesmo com a maioria relativa que Costa liderou até agora, Marcelo nem sempre levou a água ao seu moínho. Discordou várias vezes do primeiro-ministro, tentou levá-lo outras tantas vezes a infletir posições, mas nunca esticou a corda para além de certos limites. Diria que Marcelo, mesmo tendo muita latitude de ação por não haver uma maioria absoluta até agora, nunca correu o risco de ir longe de mais aos olhos da opinião pública. Tem sido sempre essa a sua linha vermelha. Dois exemplos rápidos: pressionou para a saída de Constança Urbano de Sousa do Governo após a calamidade dos fogos de 2017, e conseguiu forçar Costa a fazê-lo, mesmo se não fosse essa a sua vontade. Mas nunca conseguiu obrigar Costa a afastar Eduardo Cabrita, apesar da sucessão de polémicas em que o ministro arrastou o Governo - Cabrita saiu quando era impossível segurá-lo mais, e porque havia eleições em breve, não por causa da pressão do PR. 

Noutros tempos, Jorge Sampaio obrigou António Guterres a remodelar membros do Governo porque esticou até ao limite a capacidade de influência (ou de pressão) presidencial - Marcelo não é assim. Toca na ferida, mas não deixa lá o dedo. Talvez por ser hipocondríaco.

 

Vento útil. Marcelo foi muitas vezes, ao longo dos anos, apelidado de “catavento”. Que me lembre, o último a colar-lhe esse epíteto foi Pedro Passos Coelho, quando liderava o PSD e resistia a apoiar para Belém alguém que descrevia como um “catavento mediático”. Considero uma boa metáfora, e não necessariamente uma crítica ou uma falha de caráter ou de firmeza política. A má fama dos cataventos não faz justiça à sua utilidade.

Marcelo tem um instinto raro para perceber para que lado sopra o vento da opinião pública e mediática. Intui, muitas vezes antes de toda a gente, tendências que ainda se estão a começar a formar. Porque gosta de cavalgar a onda e surfar a popularidade, Marcelo desenvolveu ao longo de muitos anos esse faro para perceber as simpatias, as antipatias e os humores do eleitorado. Isso pode ter uma enorme utilidade para o Presidente da República, mas também para o Governo.

Com esse faro político e a presença constante nas ruas, Marcelo pode ser um catalisador e agregador de descontentamentos, o recetáculo de queixas, o árbitro de abusos. E pode sê-lo sem parecer o lutador de rua que era Soares ou o boneco seráfico que era Cavaco. Pode cumprir, à sua maneira, a tarefa de controlar o Governo, escrutinar as políticas e as suas consequências, alertar para erros ou riscos, contrapor realidade às fantasias das narrativas oficiais (e sabemos como elas tendem a ser açucaradas nas maiorias absolutas). 

Marcelo tem uma visão transversal da realidade, um ponto de vista, o acesso aos dados, inúmeras boas fontes de informação, e a penetração na comunicação social que lhe permitirá fazer os contrapontos necessários à maioria absoluta. O à-vontade com que se movimenta na comunicação social poderá ser uma das suas armas mais eficazes, sem necessidade de se desgastar permanentemente na linha da frente. Não é por acaso que, neste domingo à noite, visitou o Clube dos Jornalistas. A tal dimensão lúdica com que encara a política, e que muitas vezes lhe dá uma leveza excessiva, pode também ser um bom antídoto no caso de as coisas ficarem feias. 

 

A outra maioria absoluta. Por outro lado, António Costa pode ganhar muito em dar atenção aos avisos, recados, farpas, reivindicações, alertas, travões, vetos - e tudo o mais que saia de Belém. O Presidente vai mostrar para onde o vento sopra. E caminhar contra o vento costuma ser desgastante e inútil.

Sabemos bem como as maiorias absolutas acabam, muitas vezes, em circuito fechado, numa espiral de arrogância e auto-suficiência. Costa assumiu o encargo de mudar essa má fama, mas a tentação é grande e a carne é fraca. Dar atenção a Marcelo pode ser o melhor remédio, em doses diárias e homeopáticas, contra a arrogância e a auto-suficiência da maioria absoluta. 

Pode ser também a melhor hipótese de Portugal fazer reformas que não fez até agora em áreas que vão da Justiça à Administração Pública, da Economia ao SNS. Marcelo deixou bem claro, na sua mensagem do dia de reflexão, o seu desejo de que o novo governo encete “mudanças de fundo”. Talvez não esperasse este desfecho, mas grandes mudanças - como aquelas que muita gente pede hoje nas leis eleitorais e no sistema político - precisam sempre do PS e do PSD, pelo menos. Esse centro é o espaço natural do Presidente da República, que não quererá sair de Belém sem alguma marca reformista em que se possa rever. Cabe-lhe também puxar por isso. Tem caraterísticas pedagógicas que podem ser úteis.

Por falar em reformas, Marcelo será central no controlo e avaliação do destino dado aos milhões da bazuca. Em tempos, o Presidente lançou a ideia de que teria um gabinete sombra em Belém para acompanhar esse dossiê. Bem vai precisar dele.

É um caderno de encargos pesado, mas Marcelo pode cumpri-lo com o savoir fair único que tem demonstrado ao longo de toda uma vida política. Com outra vantagem: não é apenas António Costa que tem uma maioria absoluta. Marcelo também tem, e mais gorda do que a que saiu este domingo aos socialistas. Não precisa de ser o líder da oposição. Basta-lhe ser o líder da sua própria maioria.

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