Há até casos de envenenamento por mercúrio de uma fonte incomum: um hidratante facial
Num episódio de “The Pitt”, uma série dramática sobre hospitais da HBO Max, uma jovem influenciadora de beleza do TikTok chamada Nandi é encontrada a vaguear pelas ruas de Pittsburgh, caminhando perigosamente no meio do trânsito enquanto grita com carros e pessoas.
(A HBO Max é propriedade da empresa-mãe da CNN, a Warner Bros. Discovery.)
Nandi está a sofrer de insónia grave, tremores e psicose, e a sua condição, que se deteriora rapidamente, deixa a equipa das urgências perplexa. Finalmente, um residente empreendedor descobre que ela sofre de envenenamento por mercúrio proveniente de uma fonte incomum - um hidratante facial importado que ela promove nos seus vídeos.
No espírito da arte a imitar a vida, o episódio chama a atenção para a proliferação de produtos químicos potencialmente tóxicos nos produtos que muitos de nós espalhamos diariamente no rosto, no corpo e no cabelo.
De acordo com uma análise de 2021 a 231 cosméticos comprados nos Estados Unidos e no Canadá, 52% contêm produtos químicos chamados PFAS, ou compostos per- e polifluoroalquílicos - conhecidos desreguladores hormonais que têm sido associados a inúmeros problemas de saúde.
Alguns dos níveis mais elevados foram encontrados em bases (63%), rímel à prova d'água (82%) e batom de longa duração (62%). O relatório também descobriu que 88% dos produtos com PFAS não divulgavam a sua presença no rótulo, deixando os consumidores sem nenhuma maneira de se protegerem.
Sabe-se há muito tempo que os produtos de beleza comercializados para mulheres negras contêm ingredientes perigosos. Por exemplo, cerca de 50% dos alisantes de cabelo contêm produtos químicos tóxicos, como o formaldeído, que está associado ao cancro.
No entanto, há uma luz no horizonte — pelo menos nos Estados Unidos — de acordo com o Relatório de Inteligência sobre Ingredientes de Beleza e Cuidados Pessoais 2025, compilado pela ChemFORWARD, uma organização sem fins lucrativos dedicada a analisar dados sobre riscos da indústria para incentivar os fabricantes a usar produtos químicos mais seguros nos seus produtos de cuidados pessoais.
“A verificação de segurança está a aumentar, com os produtos químicos preocupantes a aparecerem em menos produtos e a diminuir 2% no total”, indica Stacy Glass, cofundadora e diretora executiva da ChemFORWARD. “Isto mostra que é possível identificar e gerir a exposição a produtos químicos tóxicos em produtos de higiene pessoal com a cooperação da indústria.”
No entanto, o relatório da ChemFORWARD também constatou que quase 4% dos produtos continuam a utilizar frequentemente um “pequeno mas crítico grupo de produtos químicos de alto risco”, especialmente em batons, cremes hidratantes, corretores, champôs e condicionadores.
Embora essa percentagem pareça pequena, é importante lembrar que os 50.000 produtos analisados pela ChemFORWARD são uma pequena fração da indústria global de cuidados pessoais, refere David Andrews, diretor científico interino do Environmental Working Group (EWG), uma organização sem fins lucrativos dedicada à saúde do consumidor que fornece a sua própria base de dados com informações sobre a toxicidade de produtos específicos de mais de 6.000 marcas.
“Mesmo quando as empresas formulam os seus produtos para remover substâncias químicas perigosas, essas substâncias podem não ser removidas de todo o mercado”, diz Andrews. “Isso deixa os consumidores vulneráveis — que produtos devem eles evitar quando vão à loja?”
Subsistem perigos desconhecidos
A ChemFORWARD analisou as listas de ingredientes de quase 50.000 produtos fornecidos pelos seus parceiros da indústria, que incluem a Dow, a Counter, a Credo Beauty, a Inolex, a Sephora, a The Honest Company e a Ulta Beauty. Todos fazem parte da rede de colaboração Know Better, Do Better (KBDB).
Mais de 71% dos 1,25 milhões de ingredientes analisados para o relatório foram considerados seguros ou de baixo risco para a saúde humana e o ambiente. Investigações realizadas pela ChemFORWARD e pela EWG descobriram que esses ingredientes incluem glicerina e ácido hialurónico, que ajudam a pele a reter a hidratação. Outros exemplos incluem óxidos de ferro — que adicionam cor à maquilhagem e protegem contra o sol e a luz azul — e acetato de tocoferol, uma forma sintética de vitamina E que protege a pele dos radicais livres.
No entanto, cada pessoa é diferente, por isso ainda podem ocorrer reações alérgicas ou sensibilidade cutânea em algumas pessoas, ressalta Glass.
Mais de 24% dos produtos químicos analisados, no entanto, não puderam ser avaliados devido à falta de evidências sobre o seu perfil de segurança, “representando um grande ponto cego na segurança do consumidor e no risco da marca”, de acordo com o relatório.
“Assim como um lanche ‘sem gordura’ pode estar repleto de níveis prejudiciais de sal e açúcares, um cosmético ‘sem’ [tóxicos] pode estar repleto de produtos químicos para os quais não há evidências de segurança”, é sublinhado no relatório.
Os produtos botânicos são um bom exemplo de casos em que pode ser difícil determinar a toxicidade, indica Heather McKenney, líder científica e de química mais segura da ChemFORWARD.
“Existe a suposição de que são seguros, mas são muito difíceis de caracterizar — a raiz versus a folha versus o caule e como foram cultivados e processados — para ter dados suficientes para compreender se são ou não potenciais carcinógenos, mutagénicos ou tóxicos para a reprodução”, refere McKenney.
O Conselho de Produtos de Higiene Pessoal, que representa a indústria, disse à CNN que se orgulha de trabalhar em estreita colaboração com legisladores do Congresso para aprovar a Lei de Modernização da Regulamentação de Cosméticos, ou MoCRA.
“A lei impõe vários requisitos aos fabricantes de cosméticos, incluindo comprovação da segurança dos cosméticos, manutenção de registos de eventos adversos e notificação de eventos adversos graves, além da listagem obrigatória de produtos e ingredientes na FDA (Food and Drug Administration, o regulador norte-americano)”, diz a porta-voz do PCPC, Tesia Williams, num e-mail enviado à CNN.
Leia atentamente os rótulos
A indústria está constantemente a adicionar novos produtos químicos, por isso haverá sempre ingredientes que precisam de ser examinados quanto à sua potencial toxicidade, sublinha McKenney.
“O consumidor não deve ser responsável por essa decisão”, adianta. “Isso deve caber aos fabricantes desses produtos, e para isso precisamos de envolver mais a indústria. Qualquer marca que reconheça que tem trabalho a fazer está, na minha opinião, no lado oposto do ‘greenwashing’.”
Os consumidores podem verificar nos rótulos os produtos químicos mais utilizados com classificações de perigo D e F no relatório ChemFORWARD.
Frequentemente adicionados a produtos para a pele e cabelo para criar uma sensação sedosa e não oleosa, os silicones com classificação F ciclopentasiloxano e ciclometicona foram os ingredientes tóxicos mais prevalentes em todos os produtos, de acordo com o relatório. A União Europeia limitou o uso de ambos os produtos químicos em cosméticos laváveis devido a preocupações com danos aos animais aquáticos.
Outro ingrediente com classificação F a ser observado nos rótulos é o metilparabeno — investigações iniciais descobriram que os parabenos imitam o estrogénio e podem perturbar o sistema hormonal ou endócrino do corpo, de acordo com o relatório. O metilparabeno é usado em maquilhagem, hidratantes, champôs, protetores solares e outros produtos para inibir o mofo.
O D&C Red 27, 28 ou Acid Red 92, que receberam classificação D, são considerados prejudiciais para o sistema reprodutivo, hormonal e imunológico e podem acumular-se tanto em humanos quanto em animais selvagens, de acordo com a mesma análise. Os corantes são frequentemente usados em batons de longa duração.
O butilhidroxitolueno, ou BHT, outro ingrediente classificado como D na análise, é facilmente absorvido pela pele e considerado um desregulador endócrino, além de ser tóxico para a vida aquática. É um conservante usado em muitos produtos — loções, cremes, desodorizantes, fragrâncias, batons, delineadores e sombras, para citar alguns.
A boa notícia é que existem substitutos mais seguros que podem ser usados pela indústria, à medida que mais fabricantes encetam ações para reduzir as toxinas, diz Glass.
“Sentimo-nos muito encorajados na área da beleza e cuidados pessoais, pois há muito que pode ser alcançado com a substituição estratégica”, ressalta. “Acreditamos que o nosso relatório mostra que a transição para uma química mais segura está ativamente em curso.”
PRINCIPAIS PRODUTOS QUÍMICOS PREOCUPANTES (Fontes: ChemFORWARD, EWG)
- Cloreto de behentrimónio
- Butilhidroxitolueno
- Butilparabeno
- Butilfenil metilpropional
- Carbómero (se clorado)
- Cloreto de cetrimónio
- Alcano C13-14; Isoalcano C13-14; Isoalcano C13-16
- CI 77288 (óxido de crómio)
- Ciclopentasiloxano; Ciclometicona
- Diazolidinil ureia
- Ftalato de dibutilo
- DMDM hidantoína
- Etilhexil metoxicinamato
- Imidazolidinil ureia
- Butilcarbamato de iodopropinilo
- Metilisotiazolinona; metilcloroisotiazolinona
- P-fenilenodiamina
- Pigmento Vermelho 181/D&C Vermelho N.º 30
- Propilparabeno
- Quaternium-15
- Resorcinol
- Cloreto de estearalconio
- Trietanolamina