O milagre luso nos Jogos Olímpicos que começou numas férias de Natal

15 fev 2022, 09:17

Ricardo Brancal começou a esquiar aos três anos e conseguiu o melhor resultado de sempre de Portugal

«Mais longe e mais alto» é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

Ricardo Brancal até é da Covilhã. Mas para ‘brincar’ com neve sério, todos os anos, no Natal, a família ia passar uns dias aos Pirenéus.

Isso começou quando ele teria três anos. Mas foi a preparação para o que seria um percurso cheio de zig-zags para o esquiador que, na madrugada de domingo, conseguiu o melhor resultado de sempre no slalom gigante português em Jogos Olímpicos de Inverno.

Ricardo nunca mais largou o esqui. Mas precisou de sacrificar muito, quase sempre por conta própria, para escalar até ao topo da montanha, conseguir cumprir o sonho de criança e tornar real o que via com «um milagre».

Foi já em Pequim, onde se realiza a 24.ª edição dos Jogos Olímpicos de Inverno, que Ricardo atendeu o telefone ao Maisfutebol para contar a história da ligação aos desportos de inverno num país de verão.

«Eu sou da Covilhã e o meu pai sempre impulsionou a prática desportiva. Como ele gostava de desportos de inverno, costumávamos fazer férias de natal na neve, em Espanha ou França, e foi aí que comecei. Devia ter uns três anos, ainda não tinha autonomia para esquiar sozinho, mas esquiava com o meu pai», introduz.

Ora, apesar de ser de um país sem tradição de neve, Ricardo começou a esquiar quase ao mesmo tempo que deu os primeiros passos. Contudo, durante muito tempo, só durante os tais 10 dias anuais de férias de natal tinha contacto com neve. O que não fazia augurar que pudesse vir a tornar-se um atleta olímpico.

Mas o querer tem muita força.

«Aos 12 ou 13 anos tive o primeiro contacto com a Federação, cuja sede até era na Covilhã, e a partir daí comecei a representar Portugal em competições internacionais. Mas só estava na neve 20 ou 30 dias por ano, no máximo», recorda.

Mesmo para ter esses dias na neve, a logística não era a mais fácil. Implicava, por exemplo, durante cerca de cinco anos, viagens de carro até à Serra Nevada para estar uma semana a treinar.

Ricardo Brancal não se arrepende dos sacrifícios, mas mesmo estando no palco que sempre ambicionou, recorda que a motivação com que ia para as provas não era a maior.

«A minha preparação ao longo do ano vinha do ténis que pratiquei a um bom nível. Mas se a competição me permitia manter bons níveis físicos e mentais, o tipo de treino é completamente diferente do que preciso para o esqui», diz, referindo a tal menor motivação que sentia depois.

«Quando tinha de competir no esqui sem treinar na neve, desmotivava bastante. Ia para as provas sem ter treinado naquelas pistas, o que era duro. Porque tinha noção que seria muito difícil conseguir resultados. Estava ali sem estar a lutar por nada e sabia que se pudesse treinar, os resultados poderiam aparecer», explica.

E se fosse a pandemia a abrir o caminho?

2020.

O ano marcado na vida de toda uma geração que jamais esquecerá o momento em que uma pandemia fechou o mundo em casa, também vai ser sempre recordado por Ricardo Brancal.

Mas ele tem bons motivos para isso. Foi em 2020, e devido às adaptações que o mundo teve de fazer para não parar devido à covid-19, que Ricardo teve a oportunidade de se dedicar com mais afinco ao esqui.

«Foi para conseguir ir aos Jogos Olímpicos que me mudei para Itália. Nem pensava em mais nada», sublinha.

Em outubro de 2020, pouco depois do que seria considerado o primeiro pico mundial da pandemia, Ricardo rumou à Alta Badia, em Itália, um dos países europeus mais atingidos pela doença, para dar força ao sonho.

«Foi uma fase muito complicada. A maioria das estâncias nem chegou a abrir. Das milhares de pistas que existem lá, só uma ou duas o fizeram e foi para os atletas poderem treinar. Mas mesmo assim, foi dos países que mais abriu», revela.

Com uma licenciatura em Ciências Biomédicas e a frequentar o Mestrado em Engenharia Biológica, foi a possibilidade de ter aulas à distância que lhe permitiu estar a treinar em Itália e não descurar a vertente académica.

«Nesse sentido, a pandemia ajudou. Já terminei o Mestrado em Itália e consegui também fazer uma pós-graduação que acabei em janeiro», orgulha-se.

Ao mesmo tempo que deu passos significativos na formação, o atleta preparou-se da melhor forma para a qualificação para os Jogos.

Sendo de um país sem tradição nos desportos de inverno, Ricardo precisava de ser o atleta com melhor média em provas pontuáveis para a qualificação, num universo de entre oito e dez atletas portugueses inscritos na federação internacional.

Depois, o 40.º lugar no último mundial, disputado em Cortina d’Ampezzo, em Itália garantiu-lhe um lugar em Pequim.

«Fazer um lugar no top-40 nos Jogos só por milagre»

Apesar do bom resultado no Mundial, Ricardo Brancal avalia esse resultado com… realismo.

«Essa classificação não quer dizer que sou um dos melhores 40 do mundo. Nos Mundiais há limites de participação por país, o que faz torna possível outros países conseguirem este tipo de resultados», explica.

«Nós não temos nível para competir com países como a Áustria, a Suíça, ou os países escandinavos. A nossa luta é com países sem tradição de neve como o Irão, o Líbano, por aí», conclui.

Nesse sentido, quando falamos com Ricardo, no primeiro dia de descanso em Pequim, e a cinco dias da primeira competição, o slalom gigante, o discurso do atleta português é puramente realista.

«Eu comparo-me apenas comigo mesmo. Não vale a pena estar a olhar para o que fazem os melhores esquiadores do mundo. O meu termo de comparação é o nível que tinha há dois meses e a forma como evoluí desde então».

Ricardo Brancal foi porta-estandarte na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno

Por isso, quando lhe perguntamos o que ele espera nessa primeira das duas provas em que vai competir – a prova de slalom está marcada para quarta-feira -, a resposta é… modesta.

«Espero terminar num top-60 ou 50. A competição aqui é muito exigente e não permite a mínima falha. Para fazer melhor do que tp-40 seria preciso um milagre», antecipava Brancal.

Acontece, que esse suposto ‘milagre’ apareceu mesmo e o português foi o 37.º classificado, melhorando o resultado de Arthur Hanse, que tinha sido 38.º em 2014, em Sochi.

«Foi um dia histórico para o nosso país. Estou bastante satisfeito com o resultado, um 37.° lugar em slalom gigante, o melhor resultado de sempre em jogos olímpicos de inverno para Portugal!», escreveu nas redes sociais, numa publicação na qual acrescentou um lamento por ter sentido não ter estado no melhor que conseguia.

«[Sinto] emoções mistas. Não esquiei o meu melhor, mas o objetivo era chegar ao fim da prova, num dia em que as condições climatéricas foram muito adversas».

O melhor de sempre. Não se esperava menos de alguém que assumiu ao nosso jornal estar a viver uma competição para a qual se preparou a vida toda

«Desde miúdo, sempre vi os Jogos Olímpicos de Verão e de Inverno e sempre quis representar Portugal. Este é o melhor momento da minha vida. Um momento para o qual me estava a preparar desde que nasci».

E pensar que tudo começou naquelas férias de Natal.

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